30/08/2013

Rosário Breve n.º 322 - in O RIBATEJO de 29 de Agosto de 2013 - www.oribatejo.pt

Ficamos a Ermelinda

Aqui na taberna da Ermelinda, o Chico Júlio da oficina de bicicletas acha normal que a versão SG Lights do Salazar, vulgo Passos Coelho, vocifere canivetes contra o Tribunal Constitucional em calção-de-banho. Já o Manel-Zé das peças Volvo, a quem a respectiva São pôs os cornos por distracção, acha normalíssimo que o Estado compre submarinos para nada em vez de helicópteros para o bombeiral. Sempre categórico e raso como é timbre dos idiotas sérios e sem leitura, o Serafim da Genoveva afiança a quem o quer ouvir que o Jorge Jesus está no Sporting não tarda nada. E eu deixo crescer barba, bigode & boina com estrelinha para ao menos fisicamente me parecer com o poster do Che Guevara. Brandindo oleaginosamente a bela cabeça de chicharro frito, o Artur Malacueco, que é reformado da Marinha desde os 42 anos, grunhe que “esta maltosa não quer é trabalhar”. Definitivamente provisório, o Ibraim Chamiça, que foi quem fez aquilo com a São ao Manel-Zé das peças da Volvo, entre outros, não acha nada por causa de tanta gasosa espanhola no vinho-de-cozinha. O Serafim da Genoveva continua a arengar com aquilo de Jesus em Alvalade etc. E eu deixo que as barbas à Che se me encaneçam para ao menos fisicamente me parecer com o poster do Karl Marx. Já o Arnaldo Melão, que tem essa alcunha por a mãe dele ter nascido em Almeirim, jura a pés-juntos que o amarelo-opiáceo do seu indicador dextro se deve à qualidade do ouro que indica, não à impenitência de fumador sem filtro & com décadas. Em irónica maiêutica, o Toni Tira-Linhas alinha na socratização blasfema do casamento gay entre ciganos, só que ninguém percebe o que ele quer dizer, se é que quer. Entrementes, o Caló da Eduarda, que bebe água-das-pedras porque uma vez viu um gajo na televisão a fazer isso, duvida “infectivamente” que “o Cavaco tenha culpas no cartório como querem que ele tenha”. E eu de repente rapo barba & cabelo para ser lustralmente glabro e inocente como o Duarte Lima. Ao meio-dia & picos, a taberna da Ermelinda entristece um bocadito por causa do pessoal ter a mania de ir almoçar à sogra. Ficamos a Ermelinda e eu. Peço-lhe que ponha a televisão naquilo dos programas da vida selvagem só p’ra não ter de assistir à múmia nervosa do Goucha a comover viúvas, mas ela diz que não por causa de “ao menos a TVI ser a única a mostrar que o Tribunal Constitucional está ao serviço da gráfica que faz um balúrdio com os posters do Che Guevara”. É então que eu juro ser desta que deixo de fumar, muito menos SG Lights.

08/08/2013

Rosário Breve n.º 321 - in O RIBATEJO de 8 de Agosto de 2013 - www.oribatejo.pt



Lembrando Manuel Dias

A vida não me deu muito tempo para deixar crescer a flor-do-sal que era a minha amizade com um homem bom chamado Manuel Dias. Deu-se ele ao trabalho de morrer sem aviso, aqui há umas temporadas. Era um exímio cultor da Língua Portuguesa, que toda a vida foi o instrumento de trabalho dele. Jornalista, escritor, exímio narrador oral de episódios da vida, graves uns, hilariantes outros. Um destes últimos é o que me traz hoje a esta coluna.
Contou-me o Man’el que, de certa vez que um clube português da bola se deslocou à Grécia para um desafio uefeiro, um muito conhecido figurão dessa arte do coice e da cabeça que integrava a comitiva foi a uma “casa-de-tia”, como se diz no Norte. Era em Atenas. O referido figurão tinha consigo uma apreciável maquia, como parece ser costume entre os futeboleiros a partir de determinado nível. Acudindo-lhe ao faro venéreo certa senhora profissional circunstante, chamou o empregado e perguntou-lhe quanto é que em dólares lhe ficaria o gasto pela companhia e o doce usufruto da referida. O empregado foi e veio.
“ – Ela diz que são cem dólares”, informou.
O cliente nosso protagonista disse assim então ao rapaz:
“ – Diz-lhe que está bem, mas avisa-a de que eu gosto de bater um bocadito!”
O empregado foi e veio.
“ – Ela quer saber se o bocadito é muito ou pouco.”
E o figurão:
“ – Diz-lhe que é só até ela largar os cem dólares.”
Como o nosso jornal vai parar duas semanas para o mais que merecido descanso do pessoal, resolvi cronicar este episódio hílare em alternativa às coisas algo macambúzias que aqui costumo plasmar. Mas desde já aviso que há rabo mal escondido de gato irónico nesta minha prática. Por outras palavras: vou ser mauzinho. Noutros termos: vou figurar bitaite azedo. De outros modos: vou-me às canelas da Merkelzita local, aquela que mente que não mente.
A culpa é do meu saudoso Manuel Dias. Fosse ele vivo, que a história ateniense acima exposta seria rebuçado narrativo de bem melhor embrulho linguístico. Paciência, hei que ser eu a fazer-lhe as vezes. Ora, que poderá ter Maria Luís Albuquerque que ver com a anedota helénica? Pelo lado figurado (e, note-se, devidamente separadas as águas contextuais do prostíbulo de luxo que deu cenário ao episódio pícaro e caricato dos cem dólares), tem ela, não muito, mas tudo que ver.
Porque, tal como a mim, já várias vezes terá apetecido ao meu Leitor bater na agora ministra. Mas, claro, não muito.

Só até ela largar os “swaps”.

01/08/2013

Então agora, já agora, o soneto desta tarde

SONETO DA FOTOGRAFIA

Leiria, 1/VIII/2013, quinta-feira


Para
Alfredo Muñoz de Oliveira,
José Freitas,
Tó Vieira
e
Helder Medina


O que a fotografia revela, depois de revelada, não é
os vivos que ainda o são ou os mortos quando o não eram.
Não. O que revela a fotografia é a si mesma: tripé
egoísta que à vida substitui e tantos veneram

sem no (na) perceber. Não é (se calhar nunca foi)
a mera distância, em luz e sombra medida,
que vai do olhar do fotógrafo à realidade exibida.
É ela mesma e só ela mesmo, coisa que dói,

pois, sobremaneira, acentua a vanidade da vida.
Todos aparecemos em alguma pelo menos;
connosco mesmos em ela e por ela nos parecemos:

ilusão, como todas vã, que o esquecimento olvidará.
–Olha o meu Pai! O meu Cão! O meu Avô!
– Não! diz Madame La Photo. – Não, eu é que sou.
            

Rosário Breve n.º 320 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt

Fala o Pardal Oleiro

A idade é uma fábrica de paradoxos afinal simples. Com os anos, (a)parecem cada vez mais recentes as coisas mais antigas, na exacta proporção que inverte em menos frescos os episódios acabados de conhecer a luz.
O nosso senhor Magalhães de agora é o meu senhor Elói de há quarenta anos: a idade deles é a mesma, mesmo é o copito de tinto à mesma hora certa de cada dia incerto, mesmas as opiniões lacónicas e rezingonas de ambos a propósito do que aconteceu àquele que tinha a sucateira no quintal dos Lourenços.
À cristalaria da infância, opus (opus de opor, mas também de obra), na soma irrefragável e inconsútil de tantos entretantos, uma silveira de emaranhamentos: a primeira gilete púbere contra a barba de ontem, por essas praias as ninfetas adolescentes reiterando a universalidade das minhas Filhas – e a certeza concreta e inabalável de cada Pardal ser Um, Uno e Único – isto é, Todos: como a Morte.
Não é que essa vã guarda chamada Actualidade se me escape, toda de todo ou/ao menos. Não. É outra coisa, que esta é: as lembranças ressoam-me cavas porque a memória me adquiriu uma tonalidade de cisterna. E é dela que me sirvo para, ante as notícias que reportam o flagelo das guerras e das rebeliões e das religiões e das manifestações silêncio-ciliciadas pelos mastins-de-choque, reconhecer sem hesitação nem dúvida o abismo de diferença que há entre os mortos que foram homens e os homens que foram mortos.
Pelo vestuário pingão e pelo olhar rórido com que por ruas & praças & beira-rio vou manchando o papel do ar até que tudo seja o mais filactério pergaminho – não me seria possível a evasão da condição de um ser tocado à nascença pela vocação d’outono-inverno. Passado e Presente, com os anos que os cozem até à mútua fusão, acabaram engendrando e expondo, para meu consumo-da-casa e meu caso, a natureza siamesa da Bela e do Senão.
O que hoje foi amanhã, ontem viria a ser. Na estrumeira política corrente, os pagantes são oleiros – e bandoleiros, os (auto)governantes.  Vale-me ser este o Verão de 1970, vale-me repartir já então com as minhas Nascituras, no areal ébrio de ouro à sombra da Bola Nívea, o balde, a pá, o moinho e os ciclistas a dados.

Como aliás me vale também não ter chegado jamais a ser aquele que, por caridade dos Lourenços, arranjou pátio onde montar a oficina para acumular a irreparável sucata do Tempo, isso que só os Pardais é que. 

Soneto desta manhã baseado em casos verídicos

SONETO POR COMPANHIA

Leiria, 1/VIII/2013, quinta-feira



(Em roda volante, corpo-consciência/espaço-tempo.
Singrar sem sangrar, suportar & comportar.
Inda que breve, renda a vida mais que momento.
Estratégia avisada é trabalhar.)

Dois homens desjejuam-se em esplanada.
Café-com-leite-pão-com-manteiga.
Serenos parecem, conversam serenos: nada
os demove em ira, à sombra meiga.

Ao lado, a de mamas grandes (minha vizinha),
vem de algum serviço: é, diz-se, acompanhante.
Vende a própria companhia àquela maltinha

que por si mesma, a não tendo, assim obtém
dois dedos de conversa e outros tantos de espumante.
Nunca a vi com filhos: faz aquilo mas não é mãe.

Canzoada Assaltante