29/06/2020

VinteVinte - 36 (primeiros fragmentos)




36.

ESTE LÁPIS SENTADO EM TAPETE

Coimbra, sábado & domingo, 25 & 26 de Abril de 2020



Casario que foi muito branco, amarelou-o a duração-que-não-dura. Zonas de alto arvoredo, também o vale sangrado a meio por ribeiro sempre frio. Estrangeiros (dois casais) habitam a casa-da-loja dos Conceições. São reformados discretos, nem se exibem nem se ocultam. Já aprenderam Português, entre si nunca falam em a Língua deles quando alguém mais está consigo.

Recordo alguns papéis conseguidos à luz de outro dia menos este. Recordo também (ainda, sempre) que os Cravos faziam 20-anos-20 no dia em que sepultado foi o senhor meu Pai. Essa coincidência conseguiu, então, em pleno desespero agravado pela resignação, fazer-me sorrir por dentro. Só por dentro. Os Cravos são ainda a minha Rosa. Posso firmá-lo assim, mesmo que pareça (e seja) doidice poética. É 25 de Abril. Este é o Ano VinteVinte. Não interessa. Pode ser o Ano Qualquer. É a Rosa.

Tanto se avizinhou a noite, que vizinha não é já – mas inquilina sim ora da minha casa. Não é preciso nem bem- nem malvindá-la. Ela é monarca – e absolutista. Reina na diferente parecença das coisas ditas inanimadas: esta mesa-de-cabeceira; aquela cadeira sobre que estirei as calças (que ora semelham pernas inválidas); na taça (a minha Mãe chamar-lhe-ia caco) do Gato: na pilha de livros atendendo releitura.

Chegam-me referências a uma criança cujo pai, tendo perdido as pernas num acidente ferroviário, vivia de vender lápis sentado num tapete na rua. Embebedava-se sempre que podia. A mãe desse rapaz prostituía-se em casa à frente dele e dos irmãos. Era num casinhoto de madeira degradado como árvore nenhuma pode ser. A mãe também bebia até a agonia. Já crescido, tornou-se contador de histórias. Como não dominava a arte da escrita, dizia-as a escrivães. Era, pois, um criador de oratura. E era Henrique Lucas. Ou Ch. Manson.

Canzoada Assaltante