18/12/2020

VinteVinte - 159 (I & II)


 

159.

 

E SE ARMANDO?

 

Coimbra, quinta-feira, 8 de Outubro de 2020

 

I 

O homem continua a rondar esta zona do bairro. 
Fá-lo desde Janeiro, que eu me tenha apercebido. 
Não parece ameaçador ou portador de má-nova. 
É solitário como o grifo, voa rés a humanidade porém. 
Decente de atavio, não assusta sequer as pombas. 
Não sei onde mora, sequer sei se mora. 
Sei que se demora a sua transitória efemeridade. 
Vejo-o passar enquanto passo em sua emulação. 
Nisto de efémeros, todos somos uns dos outros avatares. 
Posso ainda dizê-lo, à passagem. Currente calamo, pois. 

Reconheci de tal homem um símil. 
Foi em uma galeria expositora de fotografias. 
Eram imagens de Wigan no ano 1936. 
Entre a massa de trabalhadores, lá era o rosto. 
Como 84 anos são passados, não pode ser o mesmo. 
Não pode? Mas – e se deveras o mesmo for, que é? 
De Wigan a este Monte Formoso de Coimbra, como? 
Pode que ele seja de madeira, cavalo na Tróia do Tempo. 
Escrevo para aventar quanta verdade possa advir. 
Tempo não perco esperando deferimento ou iluminação. 

II 

Rostos sigo revendo à hora incerta 
da atenção tão distraída de meus dias. 
Vida, vinha vindimada, deserta 
de certas costumeiras euforias. 

    Sim – agora em prosa menos canora –, rostos sigo revendo. São como moedas sem câmbio possível. Dessas moedas hei eu muitas em transe mnemónico. 
    Aquele rosto daquele homem anosíssimo que no comboio suburbano Coimbra-Figueira fechava em si enciclopédicas décadas queimadas. 
    Aquele daquela mulher na loja (hoje extinta) da Livraria Novalmedina (R.ª Ferreira Borges), rosto de periquita-coquette cuja alpista favorita era a cornucópia prodigiosa de Camilo Castelo Branco, aliás Visconde. 
    Em povoação espanhola raiana de que perdi o nome, aquele rosto melancólico daquela caixeira de bazar-utilidades, a boca dizendo – es matizado

Levaram-me a Espanha em passeio. 
Era inverno, fomos de casaco cerrado. 
Cinco no mesmo carro azul-polícia. 
Era daquele modelo encomendado por Hitler. 
Partimos cedo, julgo que almoçámos à vinda. 
Sim, só a manhã consumimos lá. 
No retorno, apresentaram-me um primo. 
Primo deles, não meu, os meus são daqui. 
Esse parente trabalhara em Inglaterra. 
Coisa de três décadas, até se reformar bem. 
Sabia coisas parecidas com as dos livros. 
Revejo hoje o rosto dele, morreu já talvez. 
Não sei se morreu, espero que não, era gentil. 
Era aquele tipo de rosto à Cliff Richard. 
Não sei por que voltara ele. 
Era celibatário tenaz, talvez fosse homo. 
Não sei se era, efeminado não era. 
Talvez tivesse visto & feito coisas peculiares. 
Dessas coisas que Portugal imita mal. 
Nunca mais, nunca mais o verei. 
A família que me levou a Espanha? 
Existe ainda – mas mutilada do mais velho. 
Revejo também o rosto desse primeiro. 
Formoso rosto, olhos azuis, desarmante candura. 
Algo de seráfica puerilidade. 
Algo de ingenuidade solidária. 
Morreu de atroz maleita. 
Merecia tudo menos tal. 
Entristeço sem remédio a tal re-visão. 
Deixo rolar a caneta, correr(-me) a pena. 
Currente calamo, pois.

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Canzoada Assaltante