27/10/2016

ESCREVER NAS FOLGAS - Rosário Breve nº 478 - in O RIBATEJO de 27 de Outubro de 2016 - www.oribatejo.pt



Escrever nas folgas


Um amigo meu é historiador amador. Comete monografias. Sabe coisas impensáveis que as mais das vezes resultam genealógicas. Ou pior. Uma inscrição de fontanário extasia-o como a mim só me acontece com, com quê?, talvez c’a Sophia Loren aqui há uns oitenta anitos. Da I República para trás e para os lados todos, cimabaixestiborbombordo, sabe tudo – menos o que será desta de agora.
Acontece que ontem, sob a morrinha persistente que acinzentava mais o dia do que à nossa vista a passagem de uma viúva sincera, apanhei-o esmifrado de nervos & sudorífero de raivas. Indaguei:
– Atão, pá? Tás c’umas beiças qu’inté parece que te caiu um músculo a dormir, home’! Qu’é que foi? Morreu-te a vizinha de baixo ou debaixo?
Ele desganiu-se-me com a explicação:
– Rafeiro, fui ao Arquivo Municipal ver se catava uma data infalível e olha, népias.
Tentei ajudar, claro. (Eu sou assim, ajudante. Nunca hei-de chegar a chefe por causa de ser assim, assim bom, assim porreirinho, assim amigalhaço, assim sempre-de-ajudar, assim mentiroso.)
– Que filão é que escavaste?
E ele:
Os Anais, claro. Mas aquilo era só folgas.
E eu:
Pá, isso é mau. Anais com folgas… E eram todos de trânsito só de-dentro-p’a-fora?
E ele:
Goza, meu ganda-marreco-das-orelhas, goza pr’aí. Era coisa importante, pá, coisa importantezinha, mat’rial necessário ó Pobo, pá, necessário cumò pão pà boca, cumò pão pà boca, pá.
Solidarizei-me. Ofereci-lhe que beber. (Só beber. É de lei que, co’ comer & co’ fumar & co’ aquele resto que toda a gente sabe, cada um paga o seu. E o dever acima de tudo, como na tropa.) Fomos ao Ramiro Tira-Linhas a modos que esvurmar uma tal pomada que ele lá tem, mas tal, que os médicos só não a receitam para o ranger das artroses e para as borrachas da figadeira porque isto de médicos e laboratórios, pá, isto de médicos e laboratórios é tudo Roque-da-Amiga & Amiga-do-Roque. É-é, mas-é-qu’é mesm’assim. Entonces, depois de umas pucheiritas lá mudámos para o cântaro, que sempre fica mais em conta.
Na brevidade que a vida é, por contar menos um dia do que o carnaval, a pajens-tantos intentei cognoscer (no mínimo, cognoscer, que eu ainda fiz o quinto-ano antigo), quer’eu dizer, apurar o âmbito & o intuito das anais escavações do meu amigo.
Ele recognosceu-me ist’assim:
Tinha a ver com a data exacta, ali exactinha preto-no-branco, da última vez em que a Câmbra interveio, pá, sei lá, nos problemas. Os problemas, tás-a-ver?, as cenas que dão mau nome aqui à parvónia, pá, aqui à parvónia, pá, mau nome, tás-a-ver?
E eu:
Tar-a-ver-tou. Mas assim tipo alguma zona em particular, sei lá, tipo ali nas Trigosas?
E o sacana do gajo a esgalhar-se todo de risota & a cuspinhar farelo de pevides pa’ todo o lado, o sacana do gajo assim na mouche qu’eu às vezes c’a pomada fico:
Trigosas? Trigosas? Ó meu, bebe cérélác sem grumos cuspidos, meu! Eles lá nas Trigosas não são de folgas, meu. Se precisam, não pedem nem esperam. Fazem. Fazem ali feitinho. Entre todos. Para todos. E pluribus unum, carago! Mete lá esta nos teus anais, anda.
E eu meti. Tanto meti, qu’inté escrevi esta de pé e tudo.


20/10/2016

TRÊS DE JANEIRO, POR EXEMPLO - Rosário Breve nº 477 - in O RIBATEJO de 20 de Outubro de 2016 - www.oribatejo.pt






Três de Janeiro, por exemplo



A 3 de Janeiro de 1903, Alois Hitler, pai do Adolf, morreu. O mal estava já feito, todavia. Klara, a mulher dele, foi definitivamente roída pelo cancro em 1907 – mas o mal não apenas teimava feito como crescia. Sobre a morte desse obscuro funcionário público austríaco, o mesmo há a reter que da sua vida: cinza uma como cinza outra. A coisa passou-se.
Exactamente 22 anos depois, eram suprimidos em Itália os partidos políticos que queriam ser oposição à meteórica trajectória ascendente de um tolo perigoso chamado Benito. (Nessa precisa data de 3/I/1925, contava a senhora minha Mãe 68 dias de vida – e era decerto feliz, pois que então purificada pelo esquecimento do futuro.)
O futuro é que se não esqueceu do seu destino demolidor. Assim foi pois que, num terceiro dia januário também, mas o de 1935, se assiste em Coimbra a uma cena causadora de colectiva tristeza. Tem a ver com demolição & destino: por decisão da Câmara Municipal, é demolida a altaneira e histórica Torre de Santa Cruz, em frente ao formoso Jardim da Manga. A construção ameaçava iminente & eminente derrocada. Tinha de um lado o Celeiro dos frades crúzios (onde funciona hoje em dia a esquadra da PSP) e do outro a Enfermaria, que foi depois residência do senhor Prior e biblioteca até se tornar no que é hoje: a Escola Secundária de Jaime Cortesão.
Treze anos exactos se esfumam. Não estamos já em Coimbra lacrimejando de impotência à face do sacro entulho. É ora em Lisboa que estamos. Por magia, quantos são hoje? 3 de Janeiro. O ano é 1948. A noite promete: há fadistagem no Café Luso, como de costume, mas este serão é especial por ser o da consagração de um fadista chamado Alfredo. Desde outro Janeiro (o de 1941) que o Luso já não é na Avenida da Liberdade (onde nascera em 1927), trasladado que foi para as antigas adegas e cocheiras do Palácio do Largo de São Roque, ali à Travessa da Queimada (8-A, telefone 32 889). Chama-se agora Cervejaria Luso. Há menos de três anos que o filho do tal Alois foi ter com o pai. Há menos de três anos que o Benito foi pendurado pelas patas como uma carcaça de açougue. Os ventos da democratização que por (alguma) Europa grassam, não desgraçam porém a cinzenta nau ibérica, cujos timoneiros se chamam Franco e Salazar. Muitos Janeiros hão-de arder a frio até que seja Abril. Mas hão-de.
Ainda assim, e meros doze anos passados sobre a boémia consagratória do fadista Marceneiro, a estagnação estadonovista é furiosamente sacudida de cabo a rabo. 3/I/1960 – de uma das mais perversas prisões de alta-segurança da Ditadura, o Forte de Peniche (que nos nossos tristes presentes dias os patarecos da dinheirama fácil & rápida parece quererem transformar em amnésica hotelaria), chega notícia de sensação: fugiram uns gajos que ali estavam presos “por seu livre pensamento” (cf. fado Abandono, vulgo Fado Peniche, pela divina Amália). Eram eles: Joaquim Gomes, Carlos Costa, Jaime Serra, Francisco Miguel, Rogério de Carvalho, Francisco Martino Rodrigues & um tal Álvaro Barreirinhas Cunhal. A intrépida evasão roça a ironia histórica. Porquê? Por se dar precisamente dez anos & um dia depois da morte de Militão Ribeiro, acontecida a 2 de Janeiro de 1950 na Penitenciária de Lisboa, supostamente ao cabo da greve de fome que a cabo levava contra a falta de assistência médica. Militão e Cunhal haviam sido presos conjuntamente pela PIDE em 1949. Nunca mais seriam presos: Militão, pela absoluta libertação chamada Morte; Cunhal, pela absoluta liberdade chamada Vida.
De modo que: 1903, 1925, 1935, 1948, 1960. Tudo depois de Cristo. E a 3 de Janeiro tudo. Queira todavia o meu Leitor tomar nota ainda de uma outra efeméride. A próxima edição deste Jornal não há-de esperar pelo 3 de Janeiro do ano que há-de vir. Pois não. A próxima acontece a 27 de Outubro.
Ora, a 27 de Outubro nasceu a senhora minha Mãe.
Mas aí a História, porque futura, porque purificada, porque nunca esquecida, aí a História já é outra.

13/10/2016

Coisas que a vida e Abrantes me ensinam - Rosário Breve nº 476 - in O RIBATEJO de 13 de Outubro de 2016 - www.oribatejo.pt



Coisas que a vida e Abrantes me ensinam



1. “Lamento ter nascido.”; “Gostei muito de ter nascido.” A primeira frase é do ensimesmado poeta António Ramos Rosa. A segunda, do feliz & polivalente fazedor de campeões Moniz Pereira. Constam ambas de um livro intitulado O que a Vida me Ensinou. A obra compreende 34 depoimentos (23 homens, onze mulheres) de notórias figuras da nossa intelectualidade contemporânea coligidos pelo jornalista Valdemar Cruz para o semanário Expresso entre 2002 e 2005. A edição livresca aconteceu em Março de 2007, sob a chancela editorial da Temas e Debates. À data do livro, três dos entrevistados haviam morrido já. No entretanto destes nove anos & sete meses, muitos deles partiram já também. Todos tinham não menos do que 70 anos quando o jornalista com eles se encontrou.
A leitura enriqueceu-me. É um trabalho limpo, que vivamente recomendo a todos quantos dispensam à livralhada uma atenção & uma intenção que só proveitosas podem ser. Sublinhei muito, gastei todo um lápis. Adriano Moreira patenteou sem esforço a sua clara, incontornável sageza. O excesso pró-aforístico de Agustina não me aborreceu tanto, não desta vez. Siza Vieira, todo elegância. O sobredito Ramos Rosa pareceu-me o que o labor poético dele me parece: cansado & cansativo. Gostei muito do auto-retrato vital da fadista Argentina Santos. Eduardo Lourenço é um monumento. O investigador Fernando Catarino deu-me ideia de areia a menos para a camioneta exibida. Fernando Lanhas, giro, patusco, sábio. M.ª Helena da Rocha Pereira, maravilhosa. Manoel de Oliveira, banal & sobrevalorizado. D. Manuel Martins, vero filantropo & alma boa. Maria Keil do Amaral angustiou-me. Nella Maissa, prodigiosa. Óscar Lopes, outro monumento. Margarida Tengarrinha, humaníssima & exemplar. Sequeira Costa, profundo, grave, ortoépio. O industrial José Manuel de Mello, absolutamente execrável. Completam o rol: Anthimio de Azevedo, Borges Coelho, Eunice Muñoz, Fernando Távora, Galopim de Carvalho, Glicínia Quartim, Helena Sá e Costa, José Pinto da Costa, José Saramago, Júlio Pomar, Júlio Resende, Luísa Dacosta, M.ª de Lourdes Levy, Nuno Grande, Ruy de Carvalho e Vítor Crespo. Da minha leitura, mais por ora não digo. Diga-me da sua o Leitor, se caso disso for.

2. Outra proveitosa leitura que fiz por estes dias: Intelectuais Portugueses na Primeira Metade de Oitocentos (de M.ª de Lourdes Costa Lima dos Santos para a Editorial Presença, Lx., 1988). É tese de doutoramento muitíssimo bem lavrada. A poucas páginas do fim, aprendi que foi fundada em Abrantes, no remo(r)to ano de 1802, uma tal Sociedade Literária Tubuciana. Era dela figura-de-proa um Rodrigo da Silva Bivar, “Inspector da Plantação das Amoreiras e Director da Fiação da Seda”. A doutoranda Autora remete o interessado (em a nota remissivo-bibliográfica n.º 11, pp. 325) para uma monografia de há 40 anos – A Academia Tubuciana e os seus Membros, de Luís Bivar Guerra, in Anais da Academia Portuguesa de História, Lx., 1976. A abrantina agremiação de nome esquisito não esgotava o intuito pragmático na amoreira e no bicho-da-seda. Não. Leia-se: “(…) os seus objectivos eram mais vastos, visando concorrer para a felicidade da Nação através dos trabalhos dos seus membros nos campos mais variados (nos Programas da Tubuciana para 1803 e 1804 os assuntos propostos para apresentar comunicações abarcavam os domínios da História, da Literatura, do Direito, da Economia Política e da Agricultura).”
Mais: a Tubuciana não queria saber de não ser na Capital que tinha a sede. Pelo contrário, chateava Lisboa sempre que tinha por bem chateá-la. Exemplo: faltando “provimento de professores de primeiras-letras e de latim em Abrantes”, Diogo Bivar (filho e sucessor de Rodrigo) foi de mandar “uma representação ao Governo, censurando a Junta da Directoria Geral dos Estudos”. Lisboa ainda refilou, dando ordem ao juiz-de-fora de Abrantes (que até presidia à Tubuciana…) no sentido de “repreender severamente a ousadia com que na representação tinham sido caluniadas as diligências públicas da Junta” – mas o certo é que, “logo depois”, houve mando de “abrir concurso para que as cadeiras de latim e de primeiras-letras fossem providas de professores seculares com os devidos ordenados”.

3. Que aprendi eu, pois & assim? Aprendi que nem a Vida nem Abrantes me parecem ser já o que eram dantes.




06/10/2016

Rosário Breve nº 475 - in O RIBATEJO de 6 de Outubro de 2016 - www.oribatejo.pt



À vista armada (crónica a olho nu)



Agosto passado, voltei a perder os óculos. Até poder usar uns novos, o mundo volveu-se-me ilegível. Ilegível e ainda mais ininteligível do que de costume. Foram maus dias. Era como, sem ser peixe, habitar um aquário. Na rua, as pessoas (a)pareciam-me como espectros glaucos, o ar ardendo em aura à volta de nódoas escuras que eram as cabeças – um pouco à maneira do povo dos sonhos: adumbrações exiladas de qualquer esperança de nitidez. Da vizinha do quarto-andar, o gato tomou ameaçador & furtivo aparato de tigre. Foi mau. Livros, nem pensar. Internet, adeus. A minha assinatura em papel do noss’O RIBATEJO só trazia fotografias molhadas sob a tutela escarlate do título. O pior passou-se com a minha própria mulher.
Com a minha própria mulher, passou-se que, como eu não a distinguia das outras, comecei a chamar-lhe nomes que ela não tem nem merece. Conseguintemente, passei a dormir exilado na saleta de passar a roupa a ferro. Convivi com meias, pijamas, bonés & camisas que eu já não sabia que tinha ainda. A minha cabeceira foi uma caixa de sapatos sem sapatos mas plena de identidades (e de oportunidades) perdidas. Explico-me: era a caixa de cartões caídos (como eu nesta vida tantas vezes, hélas!) em inutilidade anacrónica por desuso. Revi então as minhas mocidades à-la-minuta:
o meu cartão de xadrezista aos 12 anos pela Académica;
aos 13, o meu passe de iniciado pelo futebol do União;
a quadrícula de director-auxiliar da Tuna, aos 16;
a cédula de pescador fluvial, que acabei por renegar ao descobrir que aquilo era, afinal, uma licença-para-matar;
o meu primeiro BI, amarelidão de documento autenticador mas falsário de uma filiação que por todo o lado, todos os dias & a toda a hora, com ou sem óculos, procuro entre os vivos mas não encontro: o meu Pai, a minha Mãe;
convenientemente roído, o meu certificado de sócio-fundador da Federação Portuguesa de Onicofagia;
o diploma-de-mérito da Sociedade Nacional de Fermentadas & Destiladas;
e ainda, também e finalmente, a certidão de utente da Sopa dos Pobres que ficava ali ao pé da Igreja do Deus-me-Livre.
Chegado o Setembro, a minha Graça condoeu-se. Era muito dia de eu desandar por este triste mundo tiquetaqueando as calçadas de bengalinha extensível de alumínio às risquinhas vermelhas-e-brancas com um cão também cego ao joelho. Comprou-me umas cangalhas novas e mais caras do que os olhos da cara. Lentes progressivas do-perto-ao-longe, muito fixolas, de finas hastes que configuram, no meu rosto de pergaminho, uma iluminura de artista-frade-&-copista. É com elas armadas que V. escrevo.
Olhai ali, por maravilha: beira-rio, os choupos translúcidos filtrafarfalhando a doce luz do novel Outubro. Vêde comigo, além: um maduro de calções pedalando a reforma gorda a cavalo da BTTcicleta de três mil euros, no mínimo três milenas do belo. Assisti Vós ao que ora assisto: pespontando a azul-ferrete a qualidade diáfana da aragem da manhã, uma rapariga clara como a transparência do mais lúcido acetato.
E ainda: o solícito senhor carteiro do meu bairro, portador desta mesma edição do noss’O RIBATEJO, miraculosamente & de novo repleto de palavras que me devolvem uma identidade chamada pertença, esse tipo de pertença ao meu Leitor & ao meu Jornal a partir da qual nem preciso de óculos, por ser, como sempre tem sido & há-de ser sempre, uma coisa de olhos nos olhos.

Canzoada Assaltante