29/11/2013

Rosário Breve n.º 335 - in O RIBATEJO de 28 de Novembro de 2013 - www.oribatejo.pt



Mea non vestra culpa

Já uma vez aqui mesmo Vo-lo disse, pelo que é mesmo aqui que Vo-lo reitero: há três décadas e meia que PS e PSD, com o ocasional penduricalho do CDS-PP, alternam à boca do tacho da desgovernação da Pátria – portanto a culpa é minha.
É minha – mas não é dos circunstantes com quem compartilho o usufruto cafeíno do café-galeria onde todos os dias, a partir das seis da manhã, matino os ossos, o lápis e o meu olhar de papel. Estes homens e estas mulheres são todas e todos de uma dignidade que não merece, nem de perto nem ao longe, ser amesquinhada como anda a sê-lo com mais agravo do que apelo.
Não duvideis: estas pessoas são como Vós e como eu pretendo ser, a compostura delas é a Vossa mesma, que reflectir pretendo. Permiti-me, pois, que Vo-las descreva com o, sumário embora, apuro possível:
o Quarteto de Mulheres-da-Limpeza: começaram, crianças ainda, a contribuir para pão & sabão em casa; pouca escola lhes deram; batidas ora pelos maridos como pelos pais outrora; por luxo único, esta chávena quente e parlamentar de cada madrugada; sei quando recebem o pouquíssimo que lhes pagam: é quando se permitem a extravagância mensal do pastel-de-nata; acho-as bonitas a todas, uma por uma; e considero-as não menos do que princesas reais. Ou canoas respiratórias ancoradas na precária angra do pão-de-cada-dia.
o Assentador-de-Pavimentos: é rapaz que não vai para criança, por isso mesmo que já cinco décadas e meia de nascido o coroam; gosto das mãos dele: parecem-me estrelas-do-mar capazes de tornar coral a pedra-pomes da subsistência; já o espinhaço batido se lhe adunca em fadiga óssea, é certo – mas certo é por igual não ser ele homem para desistir de merecer o que come, amailos filhos e a mulher, amanhã.
a Estagiária-de-Farmácia: era para ter sido médica, pelos sonhos de prestígio social que por ela e em vez dela tinham os pais e os avós, mas uma certa desvocação escolar para as Ciências interditou-lhe a formação clínica, pelo que se vinga em xaropes e supositórios do que nem Esculápio nem Hipócrates quiseram dela; é delicada como uma gardénia revestida a seda; namora um barbudo que mete música afro-brasileira numa espelunca de alterne aqui perto; enternece-me sempre muito o modo como, cedinho, esparge derredor si os bons-dias: como se francamente no-los desejara; mas, à boca-pequena, já se comenta que a directora-técnica da farmácia lhe lancetou que lugar efectivo, no fim do estágio, nem pensar.
Mais exemplos titulares vos escreve(da)ria, mas para tal são poucas as colunas que o Jornal me dá. Valham-Vos os supra-alinhados por paradigma, ainda assim.
O Tempo é o Rio que a todos nos usa por margens. Saibamos ao menos, como Ele, viver em moção, prescindindo ou desistindo jamais da fundamental dignidade que é a de não morrer sem ter vivido.
Há pelo menos trinta e cinco anos que Vós não cuidais muito disso, eu sei. Nem Vós, nem aqueles de “lá de cima”.
Como aliás sei que a culpa de tal é minha.

16/11/2013

Rosário Breve n.º 333 - in O RIBATEJO de 14 de Novembro de 2013 - www.oribatejo.pt

Certidão de renascimento

Portugal é o nome da terra em que, a poder nascer-se de propósito, eu nasceria sempre e para sempre.
À beira do meu primeiro meio século de nascido, tenho por firmes tal opinião fetal e tal axioma amniótico. Não é por vão “patrioteirismo” à la Portas que vo-lo afirmo.
É porque só neste País a bruma, subindo do chão à primeira fímbria óptica da alva, faz do musgo, como em alhures algum, o espontâneo leito fofo do presépio natural. Dissipada ela, ela bruma, a luz põe-se toda a esmaltar, como em nenhum outro rincão mundial, os fundos pinhais de um verniz matizado de manteiga de ouro, que o vento reitera oceanicamente.
Mais digo que: também é por causa das mulheres absoluta, absurda e completamente Portuguesas. Algumas delas, com o desengonço içado e altamente elegante das girafas, escalam o escadote do próprio corpo encimado de um olhar húmido de água-ágata. Outras, meãs como empadas de açúcar, fazem reviver ao observador a ternura primeva das Mães lusitanas, essas magistrais economistas da escassez que nenhum Nobel contempla mas que todo o filho tenta repetir na esposa.
Os homens Portugueses são também, por outras tantas razões quantas as que perfazem o número deles todos um por um, outro motivo forte pelo qual, a ser-me possível escolher em que cor do mapa-múndi conhecer a primeira (e a derradeira) luz, isto só poderia dar-me Portugal. Mesmo os moralmente pequeninos, velhacos e bailarinos. Mesmo os que, imbuídos de um imponderável e improvável poder local tão mal exercido, maniganciam corrupçõezitas de mercearia num el-dorado de fancaria enodoado de quinquilharia.
Sim, definitivamente sim: Portugal é o único alfobre onde se pode nascer com alguma decência de alma, lavado o corpo e macerada a roupa través abluções a sabão azul-e-branco como só aqui se fabrica. Mesmo descontando esse elfo chamado Rui Machete. Mesmo engordando à perpetuidade esse lípido chamado Mário Soares. Mesmo só com dois cachorros, ou quatro gatos, por apartamento que se deva ao banco.
Da razão final pela qual me devo a reiteração incontornável de só me querer (e poder) nas-ser Português, terminalmente vo-la adjudico mercê de uma “sacanice”, digo, citação. Recorro a João de Deus, esse límpido Poeta nosso que, certa ocasião, celebrando de um amigo o aniversário, lhe rimou esta formosa graça:

Dia de anos

Com que então caiu na asneira
De fazer na quinta-feira
Vinte e seis anos! Que tolo!
Ainda se os desfizesse…
Mas fazê-los não parece
De quem tem muito miolo!
Não sei quem foi que me disse
Que fez a mesma tolice
Aqui o ano passado…
Agora, o que vem, aposto,
Como lhe tomou o gosto,
Que faz o mesmo. Coitado!
Não faça tal, porque os anos
Que nos trazem? Desenganos
Que fazem a gente velho.
Faça outra coisa, que, em suma,
Não fazer coisa nenhuma
Também lhe não aconselho.
Mas anos… Não caia nessa!
Olhe que a gente começa
Às vezes por brincadeira,
Mas depois se se habitua,
Já não tem vontade sua,
E fá-los queira ou não queira!

Onde o/a meu/minha Leitor/a lê, no poema, “Vinte e seis anos”, leia, por favor, 28. São quantos perfaz o aniversariante (e nosso) O RIBATEJO. Todas as terças, para às quintas sair, me calha a obrigação de escrever para este jornal-árvore (porque enraizado na terra), para este jornal-vento (porque a todo o lado se leva em palavras). Há quase três décadas que vem resistindo às intempéries e às tropelias da economia, do buraco na estrada, dos pontuais tiranetes de pacotilha que infestam a democracia (tanto a local como a do Terreiro do Paço). NB: mas sem jamais, até ao momento, ter feito de galego aguadeiro de fretes. De clara matriz editorial, O RIBATEJO é plural como o mundo e único como a Região que lhe dá o nome e o sentido existencial. Saudá-lo aniversariantemente é, até por sinédoque, saudar o público que tem sabido merecer. E, no meu caso, o caso é de perguntar: pois se não em Portugal, em que outro País um qualquer jornal me aturaria a crónica? Não é?

É.

10/11/2013

BAILE SOZINHO ou O INVERNO DE QUELUZ - 37 (10 de Maio de 2013)


37

Ib.
                                                                                                                                               

Começas criança mas ninguém te diz onde é o cinema.
Acabas percebendo a lata das bolachas, o ter de não estar vazia.
Percebes que a canção é mais do que um poema.
E chega a noite de ontem ao amanhã do dia.
Como cucos, os velhos são relojoeiros.
E nós, ex-crianças, disparamos morteiros.

Começa-se sempre pela louça, água-corrente nem sempre.
Mas há um horror ao lixo, que a limpeza é diferente.
É o mesmo que em pobreza a gente ser gente.
E as vagens-verduras sustentam a Mãe que morrer vai,
sei lá eu se é pecado ser nado ou nada ou d’onde-meu-Pai.
Dez de Maio, duplo-mil-&-treze, entretanto sai

o Sol inclemente, que com a Lua troca, indif’rença p’la gente.
Pela Arregaça antiga, que de Coimbra orla uma sandes paga,
a Matilde de há pouco (a louca dos meus versos) s’apaga,
de coxas varizmarmóreas, ante um viúvo desejoso,
uma ejaculação d’aguadilha, cuja emissão é o gozo
de um homem que não vou ser.

Amanhã, a manhã há-de ser de amanhecer.
O meu mais velho cruza morenamente a infância terminal.
Mandaram-no longe matar pretos em nome de Cristo-Portugal.
Tenho pena da Matilde, Gracita, aproveitam-se dela.
Já fez 60 anos, mas é branca de lírio. A beijar, é amarela.
Acontece exactament’agora. Escrevo bem. Acho mal.

07/11/2013

Rosário Breve n.º 332 - in O RIBATEJO de 7 de Novembro de 2013 - www.oribatejo.pt



Da solidária solidão

Há um ano e um século, a White Star Line, companhia proprietária do Titanic, enviou às famílias dos músicos da orquestra da fatídica viagem, também eles engolidos pelo abissal mar gelado, as facturas dos respectivos uniformes: afinal, a roupa pertencia à companhia de navegação, não a eles – e eles tinham cometido a gravosa imprudência de se afogarem sem se despir antes do que não era deles. (Isto não é patranha: é um histérico facto histórico.)
Cento e um ano depois, o Capitalismo “neoliberal”, essa besta autofágica e indutora do suicídio das nações que se não chamem EUA ou Alemanha ou China, segue à risca, à letra e a grosso a selvajaria da White Star Line acima descrita. O Capitalismo “neoliberal” é a Grande Hidra Cega. O Capitalismo “neoliberal” é a Nossa Mãe ao Contrário. O Capitalismo “neoliberal” é o ouro valer merda riscada a sangue. Vive de músicos afogados e de famílias desfeitas. Alimenta-se de podridões. E serve-se de lacaios acéfalos e invertebrados como esta cambada de cachopos que nos entretemos a eleger de quatro em quatro anos.
Vale que, um ano depois do Titanic, mais precisamente a 7 de Novembro de 1913, nasceu Albert Camus. Figura gigante, colosso ímpar da literatura do século XX, deixou obra sem cotejo possível. Muito superior à vedeta zarolha chamada Sartre, primou sempre pela solitária discrição. Morreu demasiado cedo, aos 47 anos, terminado por um desastre de viação automóvel.
Mas legou-nos A Peste, O Estrangeiro, O Mito de Sísifo e O Homem Revoltado, entre outros marcos descomunais das boas-letras.
Foi dos Nobel da Literatura mais justamente reconhecidos de que hei memória. E determinou para sempre uma distinção ética que outro gigante da literatura, também ele nobelizado, Gabriel García Márquez, adoptou como epigráfica divisa: que o ser solidário é o absoluto contrário do ser solitário.
Mas lá no fundo, o mesmo fundo em que jaz o Titanic, Camus mais não terá feito do que dizer à White Star Line, aos EUA, à Alemanha e à China que, de uma vez por todas, cresçam e desapareçam.

02/11/2013

Duas crónicas para O RIBATEJO - n.ºs 331 e 330 da série ROSÁRIO BREVE - de 31 e 24 de Outubro de 2013, respectivamente

Acabar com o parque-de-merendas

Estar pobre e ser miserável são dois mundos antagónicos mas coevos no comum mundo tristonho nosso. O pobre – acha-se sempre provisório. O miserável – sabe-se para sempre definitivo. É por isso que a pobreza usa certos ouros só dela. E é por isso que a riqueza excessiva é sempre miserável. Aliás: como é que, fundamentada na multitudinária miséria alheia, uma fortuna colossal poderia alguma vez deixar de ser mais miserável ainda do que o húmus humano em que farpeia raízes? Não poderia. Nem pode. Nem jamais há-de poder. É ver o caso de Angola. É ver o nosso caso.
Qualquer nababo da Banca me parece sempre a lustral versão pós-sauna do chulo navalhista (no tempo do Eça, um faia) de cachucho no mindinho escarafunchando com a unhaca respectiva a cera do orelhame. Qualquer sanguessuga vitalícia do Estado me obriga a ver em sua figura a mesma do tarado perpétuo e impune que, à mesa do Café como na cadeira da sala-de-espera do posto médico, mirona lúbrica e sorrelfamente o seio da mãe que amamenta seu petiz em candura.
Disse-Vos ainda, acima, que, ainda assim, a pobreza usa certos ouros só dela. Disse-Vo-lo bem. Nenhuma nota de cem no bolso vale, como ali em cima (como agora mesmo) no céu de um azul-ferrete que o Sol estende em ampla colcha de seda, a castelar nuvem toda neve, de um branco que evoca a nata bem batida. Nenhum maço das de vinte enroladas em cartão à feirante vale para mim o que vale a parlapiação dos homens quando no barbeiro, ocasião em que essa espécie de mulherio masculino, mui geriátrica e pausadamente, estabelece cartilhas morais à la Jornal de Notícias. Nem nenhuma ceia no Tavares Rico puxa mais salivação pré-palatal do que as tábuas de parque-de-merendas, sobre que os pobres estendem o afinal linho, a cambraia afinal, da toalha de algodão aos quadrados grossos encarnados e brancos para que rescendam a divino a capitosa sopa-da-pedra que fumega, o bacalhau enroupado de cebola e ungido de azeite que crepita, o honesto pudim-de-pão que confirma a pançada saloia e a taçada simples de nêsperas frescas que a água da fonte quase vitrificou.
Temo todavia que a Troik’ASAE venha ainda a proibir, ó mein führer!, a garfada da mesma vasilha de pimento assado às tiras. Isto numa primeira fase. Na segunda, que se proíba até a reunião pura e simples de mais três pobres, assim exterminando para sempre a lamentação fadista e o jogo-da-sueca. O dominó há-de porém resistir, quero-o bem crer.
Era oxioma litúrgico-salazarista que “quem dá aos pobres, empresta a Deus”. Sabemos hoje que só o contraponto a esta (i)moralidadezinha de sacristia espuriamente caritária é que é verdadeiro: quem rouba aos pobres, é sócio do Diabo.
Ou então é como, num instantinho, irmos ali a Angola sem precisarmos de sair daqui.

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Uma maneira de dizer

Julgo de razoável precisão certa memória minha, eu teria o quê?, os meus cinco anos. Foi no Largo da Portagem, Coimbra, terra inicial minha. O céu desse dia era (como) este de hoje sob que Vos escrevo: um cartão-de-caixa-de-sapatos, uma folha-de-Flandres aluminiosa, glauca, catarata-de-olho. Não sei já se Mãe ou Pai me acompanhavam então, como ainda hoje, defuntos ambos embora, o fazem. Olhei esse céu de Coimbra, mirei esse rio que dá fados como dá quelhas arbustivas – e pensei assim: E se nada existisse?
Nada. Nem céu, nem rio. Nem cidade, nem ser de Pai ou Mãe. Nem pobreza, nem bicicletas. Nem violência doméstica, nem abandono de animais (ou de filhos). Nem polícia, nem recifes. E nem sequer Deus a precisar tanto do Diabo. E se nada, o Grande Nada?
Curto filósofo de um metro, a auto-pergunta inquietou-me o resto da vida. Até hoje. Hoje, sento-me neste café a fazer duas colunas de prosa para um jornal decente feito por gente decente para um leitorado decente. Sou o gajo do blusão verde, duas mesas atrás dessa gente toda. Folheio as conversas alheias em digitação: é como se paginasse o papel oral dos meus Portugueses. Digo: a gorda de blusa roxa e unhas lacradas a carmim que comenta a Casa dos Segredos; a de cabeleira amarelo-açafrão cujas mamas exsudam o soro do leite amamentador à boca do pequenito de dois meses; o capataz de ar sueco que aloira os cilícios dando ordens; e a sombra da minha mão direita fazendo-se tinta num papel a que nem sempre sei responder. Como aliás não soube, dessa talvez-manhã de talvez-1969, responder ao Big-Brother:
E se nada fosse, existisse ou houvesse?
Domingo passado, 20 do corrente, fui ver-ouvir um concerto-encontro de bandas filarmónicas. De uma, a minha Primeira-Filha era a linha-da-frente. As respostas acabam sempre vindo, percebo-o já bem enquanto, por encanto, escrevo:
– Tudo há no que é.
Tranquilo finalmente, não tenho cinco anos já.
Tenho menos.
Um dia morro, um dia nasço – baralha & torna a dar. E o rio sob o céu: página a página.
Até hoje.


Canzoada Assaltante