21/12/2020

VinteVinte - 162 (II & III)


New York Windows (1961)


    II

    Um velhote gentil costuma ler o pasquim local às horas extraprandiais de uma casa-de-pasto da sua (& da minha) preferência. Não foi em Coimbra que nasceu mas sim em Évora, há 79 anos. Veio para esta formosa terra há mais de meio-século. Trabalhou sempre no mesmo sítio, um armazém de maquinaria industrial. Goza de uma reforma modesta. Tem a mulher viva, uma nativa ali de Souselas com 82 anos. Teve com ela um casal: o rapaz, que tem 54 anos, é engenheiro-químico na Celbi da Leirosa; a rapariga, de 50, é enfermeira nos Covões. Para desgosto do velhote, são ambos divorciados, andam os netos, como a bola do ténis, cá & lá & acoli-acolá. 
    Gosto de conversar com este – como agora é moda – sénior. Ele é pausado, reflexivo, abnegado, paciente. Eu sou o avesso destes quatros atributos – mas não faz mal. Ele vai levando a água, eu ando à procura do moinho. 
    Quando chego àquele estabelecimento para repor os níveis hepáticos, ele levanta-se para me cumprimentar, gesto que sensibiliza sempre. Tratamo-nos por senhor antes de cada nome-próprio. É um quarto-de-hora mui aprazível. Ele demora-se pouco. Eu fico mais tempo. Escrevo ali muito, agrada-me a portuguesidade do sítio. Em dez anos, já ali menti muitos, muitos versos – e sempre na expectativa de lograr algum menos medíocre do que costumeiramente. 
    Conto lá voltar, talvez, na próxima quinta-feira, 15 do corrente. Até lá, a perspectiva não pode ser mais simples: ler para aprender, escrever para não esquecer. Tenho arrumado coisas no sótão mental com alguma eficiência. Os meus temas são poucos, como sabeis (sim, Vós quatro). Algumas zonas doridas? Tenho-as sim – como toda a gente. Confio no Tempo como anestésico. 
    O velhote eborense-conimbricense concordaria com este seu && Vosso) amigo. 

    III 

    Não me empeçam nem empecem vida alheios vis escolhos. 
    Honesta solidão sobrepassa do falso ouro a altanaria. 
    A cada rosto responde superior o olhar do par de olhos. 
    Ninguém vive por outro-alguém o que lhe cabe de dia. 

    Cumpro – como todos – o trajecto possível no improvável. 
    Sozinho se faz a diferença, gregária é a repetição. 
    O mundo é rotundo, orbita em vão, não é mui amável. 
    Na infância os perfumes brincavam sem alteração. 

    Em luta insensata é que não. 




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Canzoada Assaltante