25/12/2020

VinteVinte - 164 - (conclusão: IV & V)


 

IV 

Outras nascentes-de-silêncio reconheço no longe da idade. 
São algumas de gente que em pessoa conheci vivente. 
Outras, de livresco cariz, sob o leitor nariz as conheço só. 

Para banda de Santa Clara, a pessoa de Joaquim Laura. 
Alto, desengonçado, de trato fácil, hospitaleira calma. 
Nunca mais verei tal homem, assim é de lei. 

Na Nicolau Chanterene, perco-me de Alberto de Melo. 
Cáustico, cultíssimo, de supina graça, fácil nem sempre. 
Morreu sem quem lhe chegasse um copo de água. 

Joaquim & Alberto têm lugar neste livro como na minha vida. 
Nascidos ambos muitos anos antes de mim, deram-me ambos saber. 
E gratidão não é vocábulo que eu malbarate, nunca. 

Posso também indicar-Vos Mercedes de Castro. 
Dava o melhor de suas horas ao estudo de transcendências. 
Pertinente, não me maçava – aina bem que a não repeli. 

Mercedes não era de Coimbra, nem sei se alguma vez cá veio. 
Era de Penamacor – mas Lisboa lhe foi cenário de vida. 
Apresentou-me Nuno Cardo, de que não guardo jóia mnemónica. 

Penso ora nesta gente afinal muda enquanto coze a sopa. 
O televisor ladra o Portugal-Suécia sem Cristiano Ronaldo. 
Estamos ganhando por 1-0, golo de Bernardo Silva a passe de Diogo Jota. 

Rosa do Cego, florista, lavadora da igreja. 
Das pessoas mais sós que conheci. 
Nem a morte lhe fez grande companhia. 

Podeis apodar-me de mórbido por enumerar defuntos. 
Podeis afinal tudo: sois o Leitor – Derradeiro Criador do Texto. 
Por mim, prossigo nisto que é afinal resgate contra o Tempo. 

Também Vós vos ireis, acompanhar-Vos-ei eu pelo ralo. 
Não é a Morte a única vera Democracia? 
Não é ela de todos, com todos, para todos? 

Luísa, a que em menina sofreu graves queimaduras. 
Frequentava, desde órfã, a Casa dos Pobres desta Cidade. 
Morreu afogada na Barrinha de Mira, não chegou a ser mãe. 

Leonel, magnífico Leonel Albino, capelista & fadista insigne. 
O que eu gostava de ouvi-lo cantando António d’Alfama! 
Publicou um livro de versos para Coimbra, que solene o ignora. 

Judite Cortesão, a senhora do bolo-de-Ançã. 
Pureza do Lôgo-de-Deus, senhora das tangerinas. 
Amália de Jesus, senhora das esmolas. 

Este campo-santo é meu como a mão que o escreve. 
Rosalinda, que servia a dias por conta do filho. 
Rosária, que casou com um madeirense de Porto Santo. 

Ganhamos 2-0 ao intervalo, golo de Diogo Jota a passe de João Cancelo. 
Partida agradável de seguir, jogo aberto, rasgado, atlético. 
Sempre dá para desconfinar a ideia um bocadito. 

Nascentes-de-silêncio – comecei. 
Não é locução injusta. 
Os mortos sabem calar-se; eu, não. 

O Caniço que morreu na tropa. 
A rapariga que morreu nos braços da minha Mãe, lá nos Covões, anónima como a Lua. 
Eleutério Isidoro, morto na construção da ponte. 

De vez em quando, falava com vivos que conheceram alguns destes. 
Já quase não acontece, vejo pouquíssima gente, também raro saio. 
Entretenho o Gato, papo a biblioteca, escrevinho toleimas. 

Com Cecília do Anto, falei & ouvi falar de Joaquim Lauro. 
Com Victor Lobo, de Alberto de Melo. 
De Mercedes, com ninguém. 

Convosco ao menos, dá para falar de todos. 
Mal V. não faz – e a mim, algum bem traz. 
(E 3-0 à Suécia sem batota – com mais um de Diogo Jota.) 


Algures entre a pulsão re-inventiva & a vera lembrança 
dá-se, pendular, a atenção redactora cursiva. 
Espectros, dilectos retratos, nomes enumerados 
– por ordem sua só, r-existem ao caos amnésico. 

Não temer nem desejar, não esperar nem receber 
– instâncias verbais são que de valores promanam. 
Íntima honestidade se refute nunca, excepção sem. 
E então de resto tudo bem. 

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Canzoada Assaltante