20/07/2017

PARDAIS ESPERTOS & FANTASMAS BENIGNOS - Rosário Breve n.º 515 in O RIBATEJO de 20 de Julho de 2017 - www.oribatejo.pt





Pardais espertos & fantasmas benignos



1 Há muitos anos que o Verão e eu nos não damos bem. Prefiro-lhe épocas mais moderadas, mais temperadas, menos brutais, menos inabitáveis. Como no entanto ele é que manda, fecho-me mais em casa, cerrando cortinados e estores para que a sombra me proporcione a ilusão de uma frescura que de facto não há.
Faço por não vegetar. Tenho fartura de livros que há anos me esperam a visita demorada. De raro em raro, um documentário televisivo cativa-me a atenção. E há sempre a internet, arca sem fundo de motivos de (muito) interesse, uma vez filtradas as fontes.
O mais curioso de tudo isto é a amálgama. Refiro-me ao emaranhado de informações que chegam, estão e se vão embora, deixando todavia fragmentos que se me incrustam na lembrança e que, aqui e ali, a este (des)propósito ou por aquela sem-razão, arranjam maneira de irromper do olvido para que tudo, afinal, tende.
Se a velhice lograr desarranjar-me os fusíveis mentais, vai ser bonito. Hei-de dar por mim a reportar à senhora auxiliar de enfermagem que o meu pianista preferido, Bill Evans, teve um fim trágico, não sei já bem porquê nem como, acho que droga, senhora doutora, a morte de um irmão, coisa assim. E nisto, a cada 10 de Junho, na minha cabeça não ser Portugal o cerne da efeméride mas a vila francesa de Oradour-sur-Glane, que nesse dia de 1944 foi martirizada pelos criminosos da Divisão Das Reich das Waffen SS. Ou farrapo histórico afim.
Por enquanto, todavia, a coisa vai-se dando & andando. Mormente desligado, o televisor não é capaz de encher de moscas oleosas o ar da casa. (Para mais, tenho de concluir por estas horas uma encomenda de trabalho que eu há muito deveria ter satisfeito. A ela tornarei em concluindo esta crónica.)
2 Concedo-me um breve interlúdio a horas decentes. Vou à pastelaria da praça e fumo dois cafés. Levo pão e arroz no bornal. A passarada conta comigo há anos já. Com discrição, vou atirando bolitas de miolo ao arrebol. A pardalada, esperta, aparelha-se em lugares estratégicos. É um festim que invariavelmente me paga o dia. Hoje, tenho o elogio da agricultura tal como versejado pelo romano Virgílio. No outro dia, foi a galega Rosalía de Castro, senhora que sabe estar. Camões aparece muitas vezes mas já sem pala: usa agora uma lente fumada tipo Ray-Ban que lhe não assenta mal. Outros delicados fantasmas devassam a esplanada. Alguns brincam a correr atrás do pão dos pássaros, fingindo uma fome e uma infância de que há muito se livraram. Guilherme d’Azevedo é um. Gervásio Lobato, outro. Continuam portugueses na eternidade esquecida que os nimba. De chitas humildes, vem a senhora catalã Mercè Rodoreda. Não me falta gente. Livre de corpo físico, é malta que faz bem ao velho que aprendo a ser sem grande esforço nem proveito por ‘í além.
E nisto se vai escoando o Verão assassino dos grandes incêndios e das caloraças irrespiráveis. Que o Diabo o carregue – como a mim me há-de carregar também, sendo tempo disso. E tu não estejas a rir-te.

13/07/2017

CRÓNICA BADAGAIO-GEOLÓGICA - Rosário Breve n.º 514 in O RIBATEJO de 13 de Julho de 2017 - www.oribatejo.pt





Crónica badagaio-geológica


1 Decidi tornar do domínio público um terror meu que décadas a fio tenho mantido secreto. É um cagaço simples de explicar, embora mui complicado de sofrer: tenho medo de se me dar o badagaio em plena rua – e comigo carregado de papéis privados como sempre ando. Atenção: não é do badagaio que tenho medo. Toda a gente acaba por ter um: merecidamente mais cedo, uns; outros, injustamente mais tarde. Não é por aí que sinto miúfa. É pelos papéis.
2 Os meus papéis. Esses a que aponho a minha caligrafia. Aqueles onde estou todo: diminuído e por rever. E se de repente adorno na calçada, sim, eu de olho já vítreo, já de fio de baba tipo caramelo a sublinhar-me o beiço de baixo, o pernil aos esticõezinhos larilas de disco-dance? E se derrepentemente os meus mil-e-um papéis se põem a imitar as borboletas ao fim do quarto-dia de crisálida? Há-de ser o diabo duas vezes para mim: porque morro ao cabo de tanto me ter habituado a haver nascido e porque nunca mereci Deus, meu Deus.
3 A coisa é que já tenho tido ominosos prenúncios dessa cómica tragédia de morrer de bornal aberto em plena rua. Contexto: eu sou um velho resistente às modernices dos tablets. Para mim, escrito-de-escrever-para-ser-lido é lápis e/ou caneta sobre papel que chie ao ser rasgado ou a limpar alguma reentrância do corpo. Borrão ou borracha, para mim – nada de merdices electronipónicas inventadas na Finlândia e cagadas em massa na China para lucro dUSAmericanos. De modo que papéis – centenas e centenas de verbetes avulso que a granel acarreto na minha sacola por atacado. Dias de vento em que por distracção ande de mochila aberta – rai’s partam isto! – e estilhaça-se o ar do desperdício voador que é tudo quanto tenho escrito.
4 Se fosse hoje, por exemplo. Jesus Senhor. Belzebu meu. Se hoje fosse que os pés se me juntassem com vocação de marmórea tabuleta, contai comigo, contai assim comigo de lábios abertos: 24 verbetes com puerilidades inconsequentes de Ricardo Gonçalves; 72 trechos de primeira-água copiados dos outros cronistas dO RIBATEJO para que pareçam meus daqui a uns meses quando o plágio for já indetectável (ando há dez anos nisto e até hoje ninguém topou a marosca, muito menos os próprios); duas berlaitadas das rijas contra o Ministério Público acusador de 18 agentes da esquadra da PSP de Alfragide por terem (re)agido como se calhar deve ser às insolências intoleráveis dos “jovens” da Cova da Moura, esses inimputáveis santinhos do altar do politicamente-correcto; mais duas gaitadas irreverentes contra os senhores juízes que se esquecem de ser órgão de soberania em hora de greve por mais uma posta de guito e uns reajustes orgânicos de carreira-estatuto, coitados, que só de subsídio de alojamento mamam 750 mensais dele; e mais ainda uma carrada de papéis com marcas de humidade mineral.
5 “Marcas de humidade mineral”? Sim, marcas de humidade mineral. Explico-me bem e depressa: na ânsia de se me não tornarem voadores os papéis quando ocupo a esplanada de meu escrivão costume, junto & ergo do chão, antes de ocupar posto, uma data de calhaus. Deles munido, sento-me. Saco dos papéis. Cada maço, cada pedra. Faço uma figurinha muita jeitosa. Nunca fui conhecido pelo que escrevo. Foi sempre pela quantidade de grotescos tabuleiros de damas que iço ao tampo da mesa. Julgais, todavia, que é só gozo que mereço? Julgais mal. Tomai e comei todos:
6 Aqui há uns anitos, lá vinha eu para uma esplanada parecida com esta de onde vos cronico agora mesmo. Ritual de sempre: mesa escolhida, pedras apanhadas, cu na cadeira, sacola aberta, papéis, pedra-maço, maço-pedra. Naquele dia, eu tinha muito que escrever – para aí uns oito linguados de geologia. Foi então que, out of the blue (como dizem USAmericanos quando uma mulher maravilhosa aparece das periferias do azul com o nosso destino a sangrar das unhas), me apareceu uma morena perfumada de até-que-enfim. Trazia consigo um pesa-papéis de ouro cujo quilate era, à justa, suficiente para a núbil confecção de duas alianças.
Era a Graça. Aceitei. Casámo-nos. É desde então que tenho tido o tal medo. O medo de, morrendo, ser finalmente lido como deve ser pelos calhaus.


06/07/2017

OXALÁ QUE PERGUNTAR OFENDA - Rosário Breve n.º 513 in O RIBATEJO de 6 de Julho de 2017 - www.oribatejo.pt





Oxalá que perguntar ofenda





1 Sei as respostas, mas faço as perguntas na mesma:
a) Não seria bem mais acertado gastar em bombeiros o que se gasta em tropa, gastando em tropa o que se gasta em bombeiros?
b) Se a tropa nem as próprias armas consegue guardar, a tropa serve para quê e/ou a quem?
c) Um bombeiro vale quantos generais?

2 A pergunta da alínea a) chega a ser pouco discutível. Chega o calor, esfregam as mãos os privados que alugam meios aéreos por uma fortuna. Ao mesmo tempo, as aeronaves da tropa praticam as belas rendas da teia d’aranha (quando não andam ocupadas a queimar combustível caríssimo em solenes aparatos perfeita, absoluta e absurdamente inúteis). E os submarinos, não esquecer os tristemente célebres submarinos-catrinetas de guardar o carapau da costa.

3 À caricata questão escarrapachada em b) há que juntar a rábula das messes roubadas pelos seus próprios (in)fiéis-de-armazém. A credibilidade e o pundonor da instituição castrense são atirados à lama por gente aparentemente incapaz de viver com o próprio pré num País que fora dos quartéis pratica essa ofensa colectiva chamada “salário mínimo”. Brio, decoro, honradez, amor-próprio, dignidade, distinção, decência militar – tudo se esfuma à vista de uma sacada de batatas sobrefacturada à conta do civil. Mais o tal armamento ao dispor do primeiro filho-de-uma-velha que, com conhecimentos lá dentro, passe a horas certas nos intervalos da chuva e das sentinelas na zona do paiol.

4 Quanto à c), calma. Para de todo não resvalar em demagogia fácil, devo dizer que conheço em pessoa alguns bombeiros fraquitos e uns tantos oficiais, sargentos & praças decentíssimos. Como dizia o outro, “nada do que é humano me é estranho”. O problema, todavia, sobrepassa em muito a excepção para consagrar a regra. E cá está: por regra, o bombeiro dá-se todo a uma causa humanitária sem esperar nem mordomias nem alcavalas, antes sacrificando o seu tempo, a sua família, o seu ganha-pão e a sua saúde; o general – sejamos francos de uma vez por todas – tem camaradas a mais para a mesma teta.

5 Variando o tiro e o jacto da mangueira, preciso ainda de dizer-vos alguma coisa sobre o Concerto do Peido. É como muita malta chama àquela coisa muito lindinha dos artistas angariando fundos para acudir às vítimas (sobreviventes) do incêndio de 17 de Junho último. Fiquei (ficámos todos) a saber que a receita de milhão e meio de euros angariada com o tal concerto de solidariedade (mais chamadas telefónicas) foi entregue à União das Misericórdias. Não foi entregue ao fundo especial do Estado. Não foi entregue às autarquias directamente lesadas. Não foi sequer entregue, hélas!, aos Bombeiros. Não. Foi entregue à Igreja, via aquela rede de instituições (tutelada por Santana Lopes) que quer ser banco ou coiso assim.

O autarca de Pedrógão Grande, em solidariedade com os outros dois executivos municipais afectados pela tragédia (Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra), já manifestou revolta e desconcerto perante tal aberração. O peido deu borrada. E tresanda.

6 Já agora que estou numa de acirrar novos inimigos, a greve da enfermagem. Não avalio nem contesto a greve da enfermagem – mas acho perversa a ameaça aos partos. Há limites que a razoabilidade deve traçar – e mínimos limítrofes. Não é a mesma coisa que os professores ameaçarem greve aos exames. Não é mesmo a mesma coisa. Haja juízo. A enfermagem é tão indispensável quanto a classe médica. Dúvida nenhuma sobre tal. Mas calma: o parto é inadiável por sua mesma natureza. Pés na terra, pessoal. E os pés não são para levar tiros.


7 Termino pelo título. “Oxalá que perguntar ofenda” – é mesmo o que eu queria dizer. E ainda quero. E disse. É preciso incomodar quem nos faz mal. Sem medo nem hesitação. É preciso inquietar quem vive de nos comer as papas na cabeça. Eu sei que não é uma croniqueta que resolve o assunto. Careca de saber isso estou eu, que todavia me ponho sempre em cabelo para mandar umas bojardas de se lhe tirar o chapéu.

Canzoada Assaltante