31/08/2006

Literaturras - Parte II

4. Em Busca do Ulisses Perdido

Há Estado e há instituições particulares que pretensamente acodem a quase tudo o que é desvalido desta vida. O copofonista, o seringas, o portista, o diabético, o alzái-coméquié?, o regicida, o felgueirense - tudo.
O que não há - é uma associação, pública ou privada, que ajude as pessoas que não gostam de Joyce porque o não percebem e as pessoas que não percebem Proust porque não gostam de Joyce.
Não há - mas debiadaber.



5. Pérolas

Já se sabe quem são os costumeiros destinatários da dádiva de pérolas. Ainda assim, mostro (não dou) aqui uma colecção delas. Vivi boas horas e dias lindos no usufruto delas. Depois de vo-las mostrar, faço uma ressalva de rodapé.

Jacques Prévert - Paroles
Ferreira de Castro - A Lã e a Neve
Manuel da Fonseca - Seara de Vento
Manuel Vásquez Montalbán - Galíndez
Paul Auster - The Invention of Solitude
Soeiro Pereira Gomes - Esteiros
Federico García Lorca - Pueta en Nueva York
J.B. Priestley - Time and the Conways
Virginia Woolf - Mrs Dalloway
Fiodor Doistoievsky - Crime e Castigo
Camões - Lírica
António Osório - A Ignorância da Morte
Ruy Belo - Homem de Palavra(s)
Italo Calvino - Seis Lições para o Próximo Milénio
Corrado Alvaro - Pastores de Aspromonte
Rainer Maria Rilke - Cadernos de Malte Laurids Brigge
Sófocles - Ájax
Julio Cortázar - Blow Up e Outras Histórias
Jorge de Sousa Braga - O Poeta Nu
John Le Carré - Um Espião Perfeito
Luiz Pacheco - Exercícios de Estilo
Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão
Dylan Thomas - Sob o Bosque de Leite
Cesário Verde - Poesias
Nicholas Freeling - O Rei de um País Chuvoso
Wenceslau de Moraes - Traços do Extremo Oriente
Bernardo Santareno - O Judeu
Henry James - The Turn of the Screw
Thomas Mann - Montanha Mágica
Raul Brandão - Os Pescadores
Tomasi di Lampedusa - O Leopardo
Graham Greene - O Nó do Problema
Lawrence Durrel - Quarteto de Alexandria
Antonio Muñoz Molina - Plenilunio
Yasunari Kawabata - A Casa das Belas Adormecidas.


Há mais de onde estas vieram.
Uma vez, porém, um anémico mental grunhiu-me que me estava a armar, eu, enumerando livros. Fraca caça me saiu a besta, sinceramente. Tivesse o barba-de-pentelho lido uma página que fosse dos livros acima perlados e outro grunhir lhe fonaria das tripas do córtex, em caso dele.
No olho é um descanso, enfim.



6. 252 Segundos

Não há meio termo, na vida como na arte.
A segunda não raro consome a primeira, mas
não há meio termo.
Não se vai ali à poesia dar uma volta.
Não se vai ali à dramaturgia fazer uma perninha.
Não se vai ali à pintura lamber uma crica.
Não se vai ali a Bach vestido à minhota.
Dignidade é para escrever com as letras todas.
Não se fica pelo gni.
Total envolvimento.
Eu digo - compromisso total.
A vida toda, toda a vida.
Há-de ocorrer-nos a morte, mais que a vida garantida.
Os "artistas oficiais" tocam punhetas porque não se casaram com a arte.
Casaram-se com o umbigo.
Casaram-se com o sofá.
Só não se casaram com a puta-que-os-pariu porque o Édipo se lhes antecipou.
Querem ver?
Uma pessoa vai na rua. No outro passeio, da banda de além, um homem velho cai ao chão, fulminado pelo relógio.
Vêm os paramédicos. Um deles pergunta à testemunha:
- O senhor viu?
Diz a pessoa:
- Vi. Uma pessoa pensa sempre no coração.
No caso de ser um artista total, a testemunha dirá:
- Vi. Foi há quatro minutos e doze segundos.



Caramulo, noite de 30 de Agosto de 2006

Literaturras - Parte I

1. Sófocles

Quem quiser saber de coisas abstractas de utilização quotidiana a mais concreta, não tem de ir mais longe do que Sófocles. Glória, traição, amor-ódio, vingança, destino, cálculo, inocência, cinismo, humilhação, recompensa, dúvida – e a Vida e a Morte – está lá tudo. E tudo isto num discurso poético do mais alto quilate.
A MinervaCoimbra editou, em Dezembro de 2003 (d.C.) um volume das Tragédias do grande grego. A organização, a tradução e os comentários pertencem ao grupo formado pelos Doutores Maria Helena da Rocha Pereira, José Ribeiro Ferreira e Maria do Céu Fialho. Trata-se de um belo tijolo de 640 páginas perfeita e maravilhosamente legíveis. A edição inclui, ainda, um corpo de luxo de estampas (a cores). As Tragédias são: Ájax, Electra, Rei Édipo, Antígona, As Traquínias, Filoctetes e Édipo em Colono.
Mas para quem confunde incremento com excremento, há sempre o coiso Dan Brown e o coiso brazuca Paulo Coelho. Ou algum sucedâneo de imitação portuga-pivô-TV quejando.



2. Cumbersa cuma Gaja que Quer Gostar de Ler

– Não sei que leia.
– Não leias.
– Mas diz que.
– Num diz nada.
– Talvez o Miguel Sousa Tavares, aquilo do Enocuhádor?
– Parece bem.
– Gostas?
– Não. Parece bem é andar coele ao colo.
– Co Sousa Tavares?
– Coícuador.
– Às vezes, não te percebo.
– E quando percebes, já cá não tou.
– Queque tu tens contra os best-sellers?
– “Bestas céleres”, chamava-lhes o O’Neill.
– Quem?
– Esquece.
– Diz co Tabares vendeu 300 mil libros.
– Sim: 298 mil por aparecer na TVI e mais dois mil por ser filho da Sophia.
– Quem?
– Esquece.
– O Paulo Coelho é irmão do Eduardo Prado Coelho?
– Não, mas merecia. A capoeira é mais ou menos a mesma, pourtant.
– Quando disseste aquilo do Sófocles, praqueque falaste no Paulo Coelho?
– Apeteceu-me. É do pus.
– Eu gosto daquelas coisas místicas.
– Atão faz-te sócia do Benfica.
– Não, a sério.
– Paulo Coelho? O que apareceu no osso do braço do santo que está desenhado ao avesso na quinta linha da edição brazuca do Código da Bicha?
– Está?
– Jesus. Não tá mas debia-destar. E queimarem o libro coele lá dentro.
– Já li numa revista o Paulo Coelho.
– Era a Maya. Fizeste confusão.
– Realmente, era um bocado pó parecido.
– Trata-se do milagre da literatur’alma.
– Trata?
– Esquece.
– E António Damásio, aquilo do Erro do Descartável?
– Ó minha, num vás por aí que nunca mais és capaz de falar. Ou, pensando melhor, vai.
– Quem sabe muito tamãe de lit’ratura é aquele gordo do Público que já falámos.
– Ah.
– Sabes, aquele qué filho.
– Eu sei, conheço a senhora.
– O pai, tou a falar do pai. Esse é que tinha muito prestígio como professor. Como é que tebe um filho assim?
– Olha a Sophia de Mello Breyner Andresen e já bês.
– Porqueque o Eduardo Prado Coelho só escreve crónicas do corpo, de exposições de fotografia e de França?
– Tamãe escreve sobre a alma, exposições de pintura e de Paris.
– Uma pessoa tem de estudar muito para ficar como ele.
– Sobretudo em pastelarias.
– Mazádaber algum que tu gostes.
– Ya.
– Quem?
– Esquece.
– Lobantunes e Saramago?
– Já dei.
– Possidónio Cachapa?
– Quem?
– Esquece. E o Peixoto e a Pedrosa?
– Com a peixota muito se goza.
– E o Mega Ferreira e a Clara Pinto Copy Paste Correia?
– Gosto mais de fanecas.
– Assim fico sem saber.
– Ideal da morte, vida ideal: desconhecer é embarcar.
– Cumé essa praeu apontar?
– Inbentei agora.
– O Pedro Paixão e o Gonçalo Tavares, com M. no meio, tamãe escrevem muntos libros assim de seguida.
– Muito pouco nada.
– A Fátima Lopes da siqui agora tamãescrebe.
– Num país que não vê dum olho e não lê do outro, quem tem uma fátimalopes é rei.
– Tu debes-de-ser mais Baptista-Bastos.
– Bob? Quem é o Bob?
– Essa num percebi.
– Eça é o maior.
– Não. A do Bob.
– Ah. É anedota.
– Conta, cão fedorento.
– Tá bem. Era uma gaja casada que era como Portugal: gostava muito de levar no cu. Vai um dia, o amante diss’le quela era munto aparecida ca Brigitte Bardot. Vai daí, escreveu-lhe co bâton BB no cu, um B por cada nalga.
– E atão?
– Atão, o marido da gaja chega a casa e dá coela a dormir de barriga pabaixo. Lê e diz…
– … Baptista-Bastos?
– Esquece.
– Tenho de mirembora.
– Queres mesmo ler uma coisa boa?
– Quero, a sério e Alvim.
– Atão o tema da mulher constante no seu sentimento, mesmo que só sinta ódio e desejo de vingança, atrai-te?
– Sim, parece giro. Já vi um filme parecido cuíço.
– E o do homem que, ao cabo de uma árdua vida de luta, se vê injustiçado na hora do reconhecimento?
– Tamãe. Nu malembra é do título do filme.
– E aceitarias que o destino é uma distorção do livre-arbítrio?
– Cumé essa?
– Que é responsabilidade de cada um dizer não com a força toda aos céus, aos deuses e à Segurança Social.
– Sim, acho que debe-de-ser.
– Atão lê Sófocles, pazinha, lê Sófocles. Não sejas boba.
– Boba? Quem é a boba?



3. F&F

Faulkner e Fitzgerald são norte-americanos, mas podemos falar com eles. Enquanto o desespero e o ultraje mantiverem margem para negociação, ternos serão o som e a fúria da noite.





Caramulo, tarde de 30 de Agosto de 2006




30/08/2006

Joe Strummer (1952-2002)






No dia 21 de Agosto de 1952 nasceu um bebé inglês na Turquia. Deram-lhe o nome completo de John Graham Mellor. O bebé fez-se homem e músico com o pseudónimo de Joe Strummer. Quando morreu de uma deficiência cardíaca congénita que nunca lhe fora diagnosticada, Joe Strummer tinha apenas 50 anos. A morte veio três dias antes do Natal de 2002.

Joe Strummer foi um revolucionário de pleno direito. Cidadão de palavra firme e clara, activista da liberdade, adversário da cegueira do dinheiro – tudo isto se pode e deve evocar a partir da sua vida. Ele acharia bem. As letras dos Clash, aliás, não recuavam perante temas como a degradação social, o desemprego, o racismo, a brutalidade policial, a repressão social, o militarismo e, até, o sexo…

É claro que foi, também, um excelente músico. Deu corpo, rosto e alma a vários grupos que ficaram para a história. O mais famoso desses grupos é, talvez, The Clash. Outros (muitos outros) dariam a alma e cinco tostões para terem atingido metade da importância dos Clash. Mas Joe Strummer fez mais. Fez, por exemplo, The Mescaleros.

A voz, a poesia e a guitarra-ritmo (inesquecível, aquela Telecaster preta) de Joe Strummer estiveram na origem de temas líricos que continuam por aí, à conquista pacífica do mundo.

Os Clash, cuja existência se estendeu de 1976 a 1985, criaram e interpretaram o melhor punk rock inglês. Ao micro, Strummer impunha uma presença de total empenhamento. Canhoto de nascença, o rapaz fora obrigado a aprender a tocar à direita, facto que lhe cortou a possibilidade de grandes virtuosismos na guitarra. Fez-se ritmista e safou-se bem. Mesmo sendo aqueles os tempos contemporâneos de uns tais Sex Pistols…

Há quem diga que o prestígio de Strummer e dos Clash tenha levado a uma autêntica explosão de bandas de garagem nas décadas de 80 e 90 do século passado. É bem mais do que apenas provável, essa hipótese. A mitografia do grupo inclui, naturalmente, drogas pesadas, paredes de hotel pintadas a spray. Mas a mensagem mais importante era esta: a insurreição e a redenção não são coisas forçosamente contrárias.

Depois dos Clash, e após a composição de músicas para filmes, chegou 1989, ano em que Joe Strummer iniciou a produção de discos com uma banda chamda The Latino Rockabilly War. As coisas, comercialmente falando, não arrancaram lá muito bem. Em 1991, Strummer fez um tour com os Pogues, substituindo o vocalista Shane MacGowan. Sem dar demasiado nas vistas, foi tendo outras experiências em colaboração com músicos de outras formações.

A vida já não seria muito longa para Joe Strummer quando ajudou a fundar aquela que viria a ser a última banda: The Mescaleros. O primeiro álbum saiu em 1999. Chamava-se, em tradução nossa, A Arte Rock e o Estilo Raio-X.

Para trás, tinham ficado os Clash, mas a música do grupo voltava a ouvir-se, desta vez por Joe Strummer e os seus Mescaleros. Faz bem ouvir temas cujas palavras fazem pensar. E que fazem pensar lucidamente.

No dia 15 de Novembro de 2002, Strummer e os Mescaleros tocaram em benefício dos bombeiros de Londres que estavam em greve. Ao palco, subiu, para surpresa de todos, o velho companheiro dos Clash Mick Jones, que Strummer tinha despedido nos tempos que antecederam a decadência do mais alto grupo de punk rock de que há memória.
Veio então o dia 22 de Dezembro de 2002. Falava-se na possibilidade de uma reunião dos Clash. Nunca acontecerá.






(Texto construído a partir, sobretudo, de informações da Wikipedia.
A transmitir hoje, 30 de Agosto de 2006, na rubrica Filhos da Madrugada do programa Anoitecer ao Tom Dela, de Sandra Bernardo, na Emissora das Beiras, 91.2 FM. A rubrica vai para o ar às 23h. Também é possível ouvir o Anoitecer ao Tom Dela na internet. O programa vai das 20 às 24 horas. Clicar em http://www.radio.com.pt/, depois escolher Distrito-Viseu e Concelho-Tondela. Todos os dias, de 2ª a 6ª. Mais informações úteis em http://www.anoiteceraotomdela.blogspot.com/)

The Psychedelic Furs - The Ghost in You

"Num destes dois invernos foi..."

Eterna Beleza, Juventude Eterna - Led Zeppelin, "Rock and Roll"

Eterna beleza, juventude eterna?

Só quero esta.

Os Led Zeppelin ao vivo no Madison Square Garden, nos tempos (meados de 70) de The Song Remains the Same

The Psychedelic Furs Atacam na Figueira da Foz

Num destes dois invernos foi: 1987 ou 1989.
Ao contrário do inverno, tenho a certeza do sítio: era na Figueira da Foz, a mais bela cidade do mundo.
Do meu mundo.
Já então eu anoitecia gravemente.
Uma noite, fui a um bar a cujo balcão pontificava um homem chamado Gervásio.
Passavam vídeos para dar à coisa um ambiente.
Level 42, Men without Hats, Living in a Box, filarmónicas dessas.
A minha vida suspendeu-se quando passaram The Psychedelic Furs.
Apercebi-me logo da perfeição do momento.
O cantor olhava-se, a um espelho de camarim, numa manhã de Agosto de 2006.
Eu tinha tão pouca idade, que lembrava o mesmo.
Tudo o que comecei, fi-lo cedo.
Tudo o que acabei, acabei-o mais cedo ainda.
Eu tinha uma morte no cadastro.
Levava-a comigo para todo o lado, sobretudo a sítios garantidos por homens-gervásios.
Da sala de entrada, descia-se por três degraus para um reservado.
A uma dessas mesas, um gajo e duas gajas mantinham um pequeno comércio estupefaciente.
Seriam da minha idade.
Paguei-lhes três, quatro rodadas.
Depois, mais duas, três.
Entorpeci-lhes, sem querer, o comércio.
O tipo tornou-se gentil.
Que, se eu quisesse, me não faltaria nada, nunca, na vida.
Ele queria dizer – na noite.
Mas disse – na vida.
Isto demonstra a loucura da gentileza.
Uma das gajas aluiu de gin como uma pilha de roupa.
A outra pôs-se-me ondulante como uma medusa.
Disse-me assim a boca tónica dela:
– Se eu quisesse, comia-te.
Disse-lhe eu assim:
– Se me comeres, depois tens de me cagar.
O tipo desatou-se a rir.
Ela, nem tanto.
O bar só devia ter uma cassete, porque passado um bocado o cantor tinha voltado ao camarim.
O tipo teve de arrastar embora as duas gajas.
Eu fiquei na minha glória.
Tropecei de música (e de glória) até ao balcão, onde Gervásio, sorrindo sempre, controlava a indústria.
O relógio rarefizera a clientela.
Sobravam alguns espécimenes quarentões.
Eles, hoje, havendo sobrevivido a tanta curtição de psicadélicas peles, terão sessentas e tais.
Isso é estranho, isso é assim.
Uma das possibilidades é nunca me ter vindo embora.
Outra é recordar o regresso.
Só não posso determinar o aonde de qual regresso.
Eu acho que ando a fazer como o cantor.
Que o inverno, não importa o ano, é um camarim a que se acede por três degraus, descendo sempre.




Caramulo, manhã de 30 de Agosto de 2006

29/08/2006

Na Boîte com Marx (acontecimentos do anoitecer de 28-08-06)

1. Palavras Simples

Despertas o amor e o rancor
porque estás vivo.
Porque estás vivo
semeias a confusão
mondas a diferença
colhes a paga.
É tão simples
dito assim.



2. Boîte
(homenagem a Soeiro Pereira Gomes e a Georges Simenon)

É uma boîte pequena. O estrado dos músicos fica à esquerda de quem entra. Entra-se descendo três degraus. Também são três, os músicos. E também é do lado esquerdo, o balcão. Meia dúzia de mesas redondas. Meia dúzia de putas. Há um calorífero em baixo e quartos em cima. Também são três, os quartos. Em noites boas (“clássicas”, chama-lhes o patrão), elas turnam. Tratamo-las por “meninas”, o que sempre é uma vingança contra a evidência de nunca, mas nunca, o terem sido.



3. Força

O dia acaba.
Eu não.



4. Marx Vingado

Marx vingou:
as pessoas são iguais
em toda a parte.



5. Escrito antes da Estação

Daqui a pouco chega a estação das chuvas.
Às cinco e meia vai ser noite.
Encarreirarás na fila autopoucomóvel de regresso.
Problemas no acesso à ponte.
Acidente.
Demoras na saída.
Esquerda-pára-direita-brisa.
Pensarás em comer um hambúrguer,
cinema hoje não.
Nem houve feridos: lata com lata.
O polícia fluorescente na chuva.
Estacionas no parque do Cagadónaldes,
toca o telemóvel.
É a tua mãe, uma voz do primeiro
quartel do século XX.
Se estás bem, se tudo
está bem contigo.
Dizes que sim.
Se tens visto o teu menino.
Dizes que vais ver domingo.
Ela protesta saudades
tuas,
do menino.
Dizes assim:
tudo bem.
Bem mãe bem mãe bem mãe bem mãe.
Tudo tudo tudo tudo.
Tu tu tu tu.
Olha o que chove.



6. 63 Marcas Recomendadas

Deveríamos todos
talvez
ser electrodomésticos.
Chegando a casa
nos encontrasse
o nosso alguém
acesos e funcionando.



7. Trocadilly

Diz que o senhor Paul McCartney se tornou vegetariano quando, comendo costeletas de cordeiro, viu pela janela cordeiros vivos pastando, iguais aos que tinha a Mariazinha. Pois, talvez. Diz que, por causa disso, já nem lamb(e).



8. Alminha

Há por aqui um gajo que fez uma vivenda com alminha.
Em frente à vivenda, um cubículo alimenta de néon uma senhora-de-fátima ainda grandita. De noite, topa-se mais. O que o gajo quer dizer, digo eu, é mais ou menos isto: “Sou português, mas consegui uma alminha.”



9. Mão Esquerda

Olho a minha mão esquerda.
Bonita, analfabeta estrela.
Agradeço-a à direita,
que das duas é
a única que sabe escrever.



Caramulo, anoitecer de 28 de Agosto de 2006

28/08/2006

No Caso de Viajares, Leva estas Quadras

Veronica Hamel, a.k.a. Joyce Davenport


"...y una superficie que parecia huír de los viajeros como agua oscura."
(J.B. Priestley, The Good Companions/Los Buenos Camaradas, tradução argentina de León Mirlas, Editorial Nova, Buenos Aires, 1947, página 117)





Se fores à Pérsia
e voltares
traz-me o perfume
da minha infância.


Se fores a casa de minha Mãe
garante-lhe
que continuo
a respirar.


Se fores à Nau dos Corvos
guarda-me
numa folha de papel
o que puderes de vento.


Se fores a uma casa de pasto
conta-me a história
do comedor
solitário.


Se fores com uma mulher
recorda-me
como era
por favor.


Se fores ao cemitério
anota
cada primeiro nome
cada último dia.


Se fores a Queluz
no dia 7 de Agosto de 1978
impede que morra Ruy Belo
amanhã.


Se fores a casa de Veronica Hamel
diz-lhe
que amo
Joyce Davenport.


Se fores à página 117 de Los Buenos Camaradas
livro que acabou de imprimir-se no dia 12 de Abril de 1947
na Imprenta López - Peru 666 - Buenos Aires
traz-me um copo dessa água obscura.


Se fores a Logo de Deus
diz ao povo
que minha avó Joaquina
não volta entretanto.


Se fores a Portugal
garante-lhe
que lamento
que o lamento tanto.


Se fores à morte
confirma-me se é branca
como a manhã
e a roupa dos médicos.


Se fores à casa-de-banho
não guardes do espelho
o poster
triste.


Se voltares da minha infância
não despejes de novo nela
esse copo de água obscura
amanhã.


Caramulo, noite de 26 de Agosto de 2006

Corpo-Circuito

Este mesmo fraco corpo todavia
concede a seu porta-dor a graça
emerge da água mental e acha
débil e robusto cada dia.

Tenho tratado de tratá-lo
e a muitos sítios levá-lo
não só com modos de ensiná-lo
mas dele fazendo cavalo.

De azul muito o ensaboo
não de todo a manhã rompeu
perdoa-me ele e eu lhe perdoo
sê-lo eu a ele e ele ser-me eu.




Caramulo, tarde de domingo, 27 de Agosto de 2006
(trinta anos exactos depois de o meu corpo, comigo a bordo, se ter metido debaixo de uma furgoneta: fractura exposta da tíbia e do perónio da perna direita, mais danos irremediáveis na mona)

Dois Planetas e uma das Eternidades - narrativas e poesia da noite de 25-8-06

1. Dois Planetas e uma das Eternidades

Não posso deixar de sorrir por dentro à ideia de ter feito uma descoberta revolucionária: a de que a eternidade não apenas existe, como existe quase todos os dias. Hoje é caso dela, aliás.
Saí do emprego pelo fim da tarde com o objectivo de comprar comida para a minha patroa, depois de passar pela casa da filha e trazer de lá uma camisola preta para ela. Cumpri o programa, entreguei-lhe os víveres e o agasalho e voltei a sair, livre até segunda-feira. Fiz então a descoberta.
Descendo a pé a calçada rumo à Taberna do Príncipe, assestei o olhar nos cumes da montanha. Já refrescava. Àquelas pedras altas não chega a vegetação trepadora. Chegam as nuvens baixas, acamadas pelo vento agreste. A luz escurecera de chumbo. Parei um pouco para ver aquilo. Depois, rodei para nascente a cabeça: para os longes do vale, duas nuvens absorviam o sol final, torrando de ouro a distância. Aqui e ali eram, mais do que nunca, dois planetas desavindos. E eu era o verificador disso.
Em outra página (em outra vida, direi), já me tinha sido possível o vislumbre de que só a ubiquidade nos permitiria a condição eterna: ou a eternidade da condição: ou a eternidade, pura e simplesmente. E escrevera isso. Agora (ainda é agora, sim), eis-me ali, exposto à névoa e ao sol, contemporâneo até do meu anacronismo, imediato e irremediavelmente longe. Devo acrescentar isto por ser verdade: e muito feliz.
Já não receio. Pode amanhã não acontecer. Pode ser domingo apenas, depois de amanhã. Mas cá dentro (onde sorrio), compreendo a eternidade o suficiente para aceitar que ela volte. E que, voltando, seja alta de mais para que a trepe a vegetação, mas não o meu olhar.



2. Vent’erdade

O vento traz vozes e crianças
e frio
mas pode que só o frio seja verdade
e o resto um verso apenas.



3. Afinal

Susan Newell, residente em Coatbridge, subúrbio de Glasgow, Escócia, matou, na noite de 20 de Junho de 1923, um rapazinho ardina de 13 anos chamado John Johnson. Sentenciada à morte, foi executada por enforcamento. O vento traz vozes, frio e uma só criança, afinal.



4. Alguma Anatomia, mas Pouca, e Algum Circo

Vi hoje um homem de tão descomunais orelhas, que, a cinco metros, me pareciam pés. A dois metros, já só me parecia que o homem tivesse deitado as mãos à cabeça. Diz que, ao contrário do sexo e do tempo, as orelhas não param de crescer com a idade.
Sentei-me perto dele. Gosto de pessoas. As pessoas são como um circo: têm habilidades, praticam truques, vivem sem rede, vão-e-vêm na mesma janela de ossos, pintam-se com as tintas da tragicomédia, acampam em lixeiras condóminas, amam os cães como a bebés hirsutos, dançam de vinho ao som de sax, bateria & acordeão, têm filhos e sofrem por causa da televisão.
Como o homem bebia aguardente, pude observar a meu bel-prazer aquelas orelhas fascinantes. Num arremedo literário que só me fica bem, direi que me lembravam o que não existe: folhas de couve-carne de veios verrumados a broca de berbequim. De dentro delas, tufavam golfadas de cabelo. O nariz seria, não foram as orelhas, grande. Era de um matiz purpúreo e tacto rugoso, sugerindo sem equívoco a prática do álcool e o hábito do escarafuncho. Um pouco muito pouco abaixo, a boca era uma navalhada. Em contraste com a eminência e com o aparato das orelhas, aquela era uma boca mais própria de mulher frígida e consciente disso. Acabava de insignificá-la um queixo tão maciço e peludo como outra cabeça.
Eu gostei muito do homem. E disse-lhe disso. Eu a dizer-lhe isso, e a mulher da taberna assim para mim:
– Escusa de falar com ele, que o homem é surdo. Se quer alguma coisa dele, escreva.
Assim fiz.



5. Tic tic tic tic

O amor é cego.
A memória é o cão do cego.



6. Isto É mesmo Assim

Se queres ser a rapariga de um homem,
sabe que ele só quer ser o rapaz
de uma mulher.

7. Cartografia

Segue com o dedo o mapa do corpo
da mulher que foste capaz de trazer,
este sábado, para casa.
Tens até às dez da manhã de domingo para
identificar as cidades: os homens antes;
e os rios: o amor dos homens antes,
pai dela incluído.
Tocarás, assim procedendo, curvas de nível
traidoras de elevação: o acne dos sonhos,
o tabernáculo sacrificial da vagina,
a cordilheira ainda infantil das vértebras,
a flor preta do ânus, os pés vulneráveis,
a mão do anel.
Como os mapas, as mulheres são
a cores.
Tu, masculino, exercerás
o teu daltonismo digital.
Sentirás a tua vida reduzida
à escala.
Sucumbirás ao atlântico do azul
dos olhos que ela abre, cinzentos.
Recolherás então o dedo,
são as dez da manhã,
ei-la que enrola o mapa e te
deixa com um beijo mas sem
azimute.




Caramulo, noite de sexta-feira, 25 de Agosto de 2006

25/08/2006

Tartanox ou Risco ao Lado

Há pentes da mesma matéria-tartaruga
de óculos: chamo a isso Portugal.
Aos domingos à noite, é-me sempre
mais fácil nacionalizar as coisas
do mundo.
Às segundas-feiras, ainda assim, luto
alguma coisa.
Quando foi que se tornou a vida esta
terça-feira perpétua?
Não, não há mais dias, senhor Português:
olhe, venha de noite.



Caramulo, domingo à noite, 6 de Agosto de 2006

Rimanço das Putas Sérias com Referência Final ao Filho Delas

A MAIS PUTA DIZ

Eu sou puta eu sou mãe
eu fui mãe mas foi sem q'rer
eu sou puta eu sou mãe
manhãzinh'ò'noitecer.



DIZ A SEGUNDA MAIS

Eu também cá vim parar
com'outr'ofício qualquer
diz que era pr'àlugar
aluguei qu'eu sou mulher.



UMA MAIS NOVITA ARRISCA-SE

'inda só recebi duas
oit'ò nove já guardei
quem nas tem chama-lhe suas
minhas nunca lhes chamei.



AS TRÊS, EM COIRO

Lá vem uma duas três
as três sempre a putear
somos todas um'à vez
mãe dum certo Salazar.




Caramulo, entardecer de 23 de Agosto de 2006

24/08/2006

Depois de TVer um Emigrante Luso Bem Sucedido na América

Quando se reforma, o trabalhador
bem sucedido dispõe ainda
de uma nesga de céu. Direi até:
de uma nesga de mar.
Não sabe ele quantas semanas,
ou, com alguma sorte, meses,
ou, com algum milagre ou o carago por ele, anos
- lhe restam in peace.
Tem dinheiro para
a cabine na montanha,
o rizorte, ou lá como é, na oura da praia,
o lugar à frente no festival
de fandangos.
Depois, é a tesãozita curta
dos dígitos da caderneta:
mas a droga em que a neta.
E a filha, já agora.




Caramulo, noite de 24 de Agosto de 2006

O Sol na Parede e mais Poemas

1. O Sol na Parede
(para o meu irmão Fernando, vero irmão)

Telefonaram-me de Inglaterra esta manhã
para que eu soubesse quão bonitas e inglesas
são as casas daquela rua onde fica o
telefone.
O meu coração não é colonial, embora
exerça um império mais dele que meu.
Quis-se-me deitar ao mar o coração, ir
ver as casas, ir
ver a rua, ir
ver a Inglaterra.
Escrevo este poema como quem agradece
o telefonema.
Estou bem sentado perante uma
parede brancamarela em que o sol
dá.
A parede e o sol são portugueses.
Eu também.
Estou aqui à espera do Outono.
Do sazonal e do ontológico.
Um traz sempre, marsupial, na bolsa
o outro.
Tenho trabalhado muito, não
decerto tão bem quão
devera; ou
pudera.
Na Inglaterra, as pessoas bebem chá.
Nós aqui enlouquecemos muito
ajuizadamente.
Nós aqui enlouquecemos muito
ajaezadamente.
Somos excelentes pessoas, excepto
as que não somos.
Também traçamos ruas, mas
ninguém telefona a ninguém
por causa disso.
Não me esqueci, ontem, de que ele
partia.
Chegado, não se esqueceu, ele,
de mim.
Um telefonema assim, mesmo inglês,
gratifica uma pessoa, quanto mais
uma pessoa que até escreve,
digamos, poemas.
Sobe de baixo a sombra, tomando
sol,
preparatória dos dois
outonos.
Isto não é mau: isto é
isto.
O meu coração
(o sazonal, o ontológico)
tem artes xávegas.
Se o quiser na Inglaterra
(ainda ontem era na Noruega),
na Inglaterra
(na Noruega)
o tenho.
O problema é a sombra que
trepa, trepana,
suicida, insana.
Mas qual!?
Amanhã,
faça chuva,
faça sol,
tenho parede a direito,
que o tijolo não é mole.




2. Ar de Cor

Toda a gente há-de ser,
julgo eu, a bem dizer,
o seu 'cadito porquita
no acto d'amor fazer.

Ele há-d'aver lembranças
de filmes de ar de cor.
Só, p'ra n'aver semelhanças,
dizem qu'é fazer amor.




3. Outro Soneto Inverso

Eu cheguei atrasado a ti a minha vida quase toda.
Tenho tempo ainda para um café no bar da estação.
A bagagem toda que trago é a que falta da que tive.

Para viver, é certo, uma pessoa tem de deslembrar-se,
mesmo que tal lhe sofra desmembrar-se.
Os mortos, sabes, nem sempre vão à vida deles.

Um casal eu vi junt'a'm balcão.
Os olhos molhados, a mão na mão.
Quis ser assim, só que faltava
a mim ser quisto por quem tardava.

De modo q'aqui m'eis, senhora, ou não,
fez-se o tempo frio, e mais é Verão.
Um bolo d'arroz!? Pois sim, como não?
É só ir ali ao bar da estação.




4. Os Imortais
- em Moimenta da Beira como em Santo António dos Cavaleiros
- um soneto impossível

Fazem arroz-doce e julgam-se a salvo.
Cozem o porco, rapam a erva.
Trazem a féria menos dois tostões de vinho.
É ruiva a manteiga, o pão é alvo.

Os filhos esticam. A alma também.
Só o corpo mirra: e âmbar e incenso.
Deixa o Pai de ser mago. Quer outro
homem (nunca pensámos!), a Mãe.

Quem viver p'ra sempre quer
(seja homem ou mulher),
não sabe, doce, dormir.

Que em chegando o senhor barqueiro,
embarquemos, é porreiro!
(Deixá-lo vir, deixá-lo ir!)




5. Um Sem-Abrigo em Jardim de Lx.

Eu vi em Lx. um homem a escrever num banco de jardim.
Tinha muitos sacos à volta dos pés - como
cães de plástico.
Ele escrevia, escrevia, escrevia.
Eu estive ali muito tempo.
Eu escrevo, escrevo, escrevo.
Como é que se diz "ão" em plástico?





Nota: o 4º verso da 1ª estrofe do poema 4. Os Imortais (...) é tirado, menos ipsis mais verbis, do poeta Correia Garção (não sabem quem é, vão ver, que isto agora c'a internet é tud'u'nstantinho).



Caramulo, tarde de 24 de Agosto de 2006

Gomes Bernardo, Para

Cardumes alados das bandas do mar
vindo voando chegam sem cessar.
Poisam em tudo, manchas de tinta de prata.
Significo eu ainda? As mãos nas minhas,
diz-me. Olha, isto é uma lareira: acendi-a
de dia
para ti, só, mais que ninguém.
Este é agora o nosso quintal, império
breve, como todos.
Tens medo da morte e não da vida:
és tão engraçada.
Eu vejo peixes voadores, tu felizmente
não.
Que diferentes as pessoas
são.
Constituímos corpos. Em torno deles,
giracirandam facturas, bicicletas,
manequinas feminins as mais obsoletas,
recados eléctricos, de viagens prospectos
e cinecartazes os mais obsoletos.
É a vida.
Às vezes, dormes. Outras, morro eu.
O que disto não é ainda verdade,
sê-lo-á.
Adormece, pois, por enquanto.
No nosso quintal chove o alado pescado,
frios oblongos pássaros tentando respirar
pela barriga
como mulheres grávidas,
como cães espancados,
como os velhos do lar.
Iço por vezes a cabeça
acima do coração.
Quand'isso acontece,
vejo a vida como se de helicóptero.
Torna-se agradável.
Eu agora não ambulo tanto pelas vendas
de bifanas, foi-se-me o tempo de
ganhar muito dinheiro, fazer
v'cincos dabris por um verso
sem papel.
Não, eu agora já não.
E, já agora, não.
Vejo peixes, é o mais que posso
dizer-te.
A gente bebe café juntos como
velhos conhecidos.
Bebemos reconhecidamente
café.
Tu vês-me na manhã rápida.
Eu procuro conchas, obtidos
os peixes. Tenho corrido a lápis
o mapa da Noruega,
Ja Vi Elsker etc..
No meu entender, um homem pode.
Um homem feito de cancerígena vianda,
assim como de prospectivas recordações;
e um cão amarelo.
Há quantos anos parti
para a Noruega e não
voltei?
Há quantos anos parti
a loiça toda?
A gente é um homem,
a gente é uma mulher.
Diferentes óleos ungem nossas
peles. Pele com pele, as crianças serôdias
raspam côdeas, farinha e leite,
pastelaria-fina-fabrico-próprio.
Só a absoluta pertença de um
a si mesmo
justifica a propriedade privada.
Como um quintal de peixes
voados, caudais caídos anjos
de fria prata.
Passeando tão pouco, como tanto
viajamos?
Que o não pareça ainda,
e embora,
esta é uma conversa coroada
de serenidade.
A lareira parece um coração exposto,
repara.
O duro inverno campeia já, ínclito.
Egrégia se algodoa a névoa
em torno da casa exterior.
Vale que não despovoa o mar,
o inverno,
de peixes.
Salomónicos, partilharemos um pouco mais
do sal que chega do ar,
tocando de prata o quintal pobre,
a pobre vida
feliz.



Caramulo, anoitecer (ao tom dela...) de 23 de Agosto de 2006

Página 26

Faleceu Viriato Laranjeira Baracho, foto tipo-passe que deixou eterna saudade ao jornal, além de esposa, filho, nora, netos, cunhados, tias, sobrinhos, demais família, amigos e clientes. Arde desde ontem sua câmara, prevendo-se que, à hora crepuscular deste texto (que é um poema, e mais não parece), haja já sido sepultado no chão frio. Na página seguinte a Viriato Laranjeira Baracho, astrologia e massagismo.



Caramulo, tarde de 18 de Agosto de 2006

23/08/2006

Fado da Monarquia com Prólogo a Avisar do Pontapé na Placa

Prólogo a Avisar do Pontapé na Placa

Não tenho levado uma vida de que possa dizer-se: “Ena , mas caganda vida!”
Verdade verdadinha. Mas é a minha vida. Isto sempre me pareceu evidente. Não era evidente, porém. Algumas (muito poucas, felizmente) pessoas acharam que o evidente era a minha vida ser parecida com a deles. Igual até, se possível. E eu disse assim: “O caraças!” Não, disse assim: “O carago!”. Não, não, não: para falar verdade, disse(-lhes) assim: “O caralho!”.
Com mais planas palavras, tenho sido vilipendiado por duas ou três almas que, vencedoras de um campeonato moral só delas, acharam, em má hora (para elas), que poderiam dizer-me isto e aquilo.
Não podiam. Não podem. Levaram na corneta. Por palavras. Por enquanto, por palavras, já que uma dessas pessoas está ainda sujeita a engolir a placa a pontapé.
Imaginemos, por exemplo, que um gajo se droga na veia. Ou pior: que é empregado bancário. Ou que a mãe desse gajo frequentou, entre o Verão de 1987 e, digamos, o Inverno de 1994, a parte de trás do pinhal em frente à fábrica de celulose. Pensemos todos: que caraças/carago/caralho temos nós a ver com isso?
Não temos. Podemos ser católicos e ter muita pena. Podemos ser do budismo e cruzar as pernas (mas só depois de cruzados os braços e fechada a boca). Podemos ser do Sporting. Não podemos é chegar ao pé do drogado, do bancário ou da senhora do banquinho de campismo e dizer-lhe(s): “Olhe que você assim está mal, assim por não ser como eu…”
Aos meus leitores, digo só isto: vou continuar a escrever. De modo que estes textos são para vocês. Eu sei, ninguém dirá: “Cagandas textos!” Direis apenas, talvez, que são palavras de um gajo que vive como quer. Exactamente como quer: isto é, desejando saber querer. Isso, amigos e amigas, ninguém me tira, que eu não deixo. Vai de fadinho para continuar, então. Amanhã há mais. Mais para vós e contra os inspectores cinzentos da vida dos outros.


Fado da Monarquia

(Falado:)

A nossa vida é
mais simples do que um segredo
entontece perde o pé
perde o pé e ganha medo

(Cantado:)

Lampiões casas baixinhas
ruas de mijo de gato
muitas chuvas tão mansinhas
tão nuas como um sapato

Os popós a gasogénio
as senhoras digestivas
volfrâmio e tungsténio
os cancros com recidivas


(Falado:)

A nossa memória é
mais magra do que um cão
deixado à chuva até
que lhe ladre o Verão

(Cantado:)

Tu virás um dia eu sei
como quem não quer coisinha
garantir que eu sou rei
garantir que és rainha

Tu não tardes demasia
que é breve tanto viver
sei de cor eu dia a dia
quanto custa anoitecer.





Prólogo: Caramulo, tarde de 23 de Agosto de 2006
Fado: Caramulo, anoitecer de 18 de Junho e tarde de 23 de Agosto de 2006



Licor, Sabão e Sapatos

O meu Pai contou-me histórias e lances que me ficaram. Ouvindo-o, eu vivia a inequívoca suspensão dos leitores, que viria a repetir depois nos livros de papel por que me vi forçado a trocá-lo.
Das narrativas que me passou, não conservo senão a atmosfera escura dos homens (quase sempre ou operários ou homens de génio), a tristeza palpável das florestas com seus caminhos de criança, o carácter inapelável da chuva e um vago terror pela morte que não pude ainda confirmar pessoalmente. Quanto aos lances e às histórias propriamente ditas, quase nada posso aproveitar para nutrição do meu ofício. Ficaram-me a escuridão, a tristeza e o gosto por estas duas irmãs da imaginação. Quase nada?
O meu Pai está morto. Já não conta. Nestes doze anos sem ele, venho babujando os meus mesmos homens e as florestas improváveis que se erigem ao descer do sono, na cama que ele já não aborda para verificar a respiração do infante. Aceitei e cresci, velejando a lápis pela memória prospectiva e pela absoluta insensatez da poesia. É verdade que navego confusamente. Acontece-me escrever um homem, pensando-o meu, e ser ele, afinal, dele. É uma sombra de sombra. Isso faz-me sorrir. Sim, faz-me sorrir como um maluco sozinho de café. Não tenho problemas com isso. A cabeça de um homem é uma rosa de vidro duro. Cortando a cara, está a boca, território do dentista e da palavra. Escrevo estas coisas contra a claridade e, não raro, contra a alegria.
Porque a alegria seria poder não escrever. Não criar mais homens do que os já existentes, não mais rosas de duro vidro. Eu agora conto histórias e lances, sem filho embora. Da cama, vejo e ouço o ramo de árvore raspando o vidro: o ramo na minha cabeça. Todas as noites me são uma, daí que a minha felicidade seja um sistema feroz e totalitário. Pode o rolo dos meses ser tão compressor quanto lhe é natural: é uma noite só, só. Isto está correcto, assim.
De quando em quando, é de dia. Então, barbeio-me, visto um fato decente e saio para a rua a cheirar a sabão. É o mesmo domingo de sempre, claro. Farmácias fechadas, igrejas abertas, o rio pulsando a veia aberta de cobalto, o fumo da manhã, as pombas como cães rasteiros esburgando ossos de milho, mais a placidez acrítica do bêbado matinal ao fundo do beco. Saibam então que, então, me toma a feliz ferocidade de lhe ter sobrevivido. É provável que esta manhã ocorra de noite (o ramo no vidro). Não tem mal. Toda a gente é tão matinal quanto pode.
Os homens do meu Pai eram todos noctâmbulos. Também assim os lances deles. As estradas eram de terra, quando nelas chovia jorravam horizontais regueiros de café-com-leite, o pão era amargo, os filhos eram feitos num estremeção; e estava sempre a chover café-com-leite. Pouca diferença para comigo. Conheço isso, volto a ser feliz por causa disso. É o meu trabalho.
Hei-de levar-vos pela mão a este homem (não há engano, este é meu) de bom relógio de pulso, fraco colete de lã e orelhas entupidas de torrões de cera. Está ali, contemporâneo da minha mão direita. Usa um bigode tão denso e expressivo como um terceiro olho na mesma cara. Mãos cartilaginosas de comedor de canja, calças de fazenda preta; cotovelos de afiadeira, costas insignificantes, cinto de cabedal espúrio. Tem cinquenta e seis anos: e nasceu agora. Hei-de vê-lo a beijar um cálice de licor.

– Dona Judite, um cálice de licor.

Já está. Bebe à esquerda como um decifrador de palavras cruzadas. Sapatos de feira dormem-lhe aos pés como gatos de napa. Os joanetes embolam os gatos. Não tenho o meu Pai, tenho este homem.
Receio que me não acreditem, mas isto é a felicidade, mesmo que os traços sugiram a mesma tristeza e o mesmo domingo e a mesma floresta e o mesmo lápis. Alegria e felicidade nunca foram a mesma coisa: nunca foram a mesma pomba.
Fiz já algum amor, alguma comida, alguns livros e alguma sombra. Perto do meu coração físico, demora-se às estrelas o espectro da Pensão Central, abandonada e olheirenta. Entrei já, clandestino, nessa casa final. Terrinas de sopa branquejam ainda nas bancadas apodrecidas; penicos albergam ratos mortos de sede; um quadro vesgo recorda que há cabanas na neve, mas não para ti; sobrancelhas de arbustos vivos rompem pelas frinchas dos madeiramentos; e os mortos pensionistas reclamam chá de dentro das décadas estagnadas. Mas, dizia, fiz já algum amor (algum chá, também); e alguma comida, peixes salgados que deitei a assar sobre carvões rubros caramelizando a areia da praia; e alguns livros, onde se tornou inequívoca a impossibilidade de fugir; e alguma sombra, esse trapo que a luz deita a si mesma para não ferir os olhos.

– Dona Judite, um cálice de licor.

Os homens escurecidos do meu Pai correm os valados de Alcobaça, atormentados pelo ar frutívoro e pela música da água do mar da Nazaré, espermática na noite preta, reboadora, catedrálica, desumana. Eu não corro. Eu estou. Eu agora estou vivo. Isto é importante – porque me faltam muitas páginas.
Domingo de manhã, cruzei (cruzarei) a Praça das Cebolas, acossado pela repetição e mirado do limbo pelos cães dos toxicodependentes. Cheirei (vou cheirar) o vinagre das sardinhas fritas na viela por uma mulher de varizes cuneiformes, picardia aromática repercutindo por ondas na minha pátina de sabão. Ao fundo, a igreja de S. Bartolomeu, nesgada de sol e anemia. Além dela, a margem direita do rio, ao longo da qual tiracolam os pederastas suas tesões estéreis.
Só devo ter cuidado com o domingo por causa de o meu Pai reviver. Não se trata de uma intercessão de S. Bartolomeu, mas minha. Concorro a esse milagre sem querer, nem crer. Ele acontece, apenas. Algumas vielas foram iluminadas por ele, antes da rifa vascular-cerebral do fim. Ele cheirava a sabão, tinha raspado o queixo e surgia envolto num fato quase tão decente quão pobre. Sentia o vinagre das sardinhas, silvava melopeias às pombas, não havia drogados ainda, só cães, os mesmos. Ele não tinha estremecido ainda para fazer-me. Vem no meu sentido inverso: em verso. Já viu o rio, agora regressa, rumando aos Sapateiros, depois da camisaria. Não trocamos palavra. Isso é que já não pode ser.
A praça enche-se de homens, lances. A praça escurece. Há uma vozearia gráfica, como nos sonhos e na banda desenhada. O domingo excita estes homens carbónicos. A tristeza do meu Pai é tão evidente como uma toalha posta a enxugar à chuva. Descuidada, a memória alimenta-se de si mesma como o vento, que aliás sobressalta os cães e a placa de madeira do camiseiro. Percebo que isto é de estar a chover sem eu ter dado conta. Dentro da cabeça, a cronologia é meteorológica. Estou descalço: ele leva os meus sapatos. Se estou descalço, deito-me (o ramo no vidro). O domingo esvai-se.

– Dona Judite, um cálice de licor.

É de noite. Além da Pensão Central, a montanha desce-se a si mesma como uma história, ou uma vida, ou uma montanha. Estou vivo na antemão de tudo o que vem ainda. Há uma teimosia, nisto de as coisas seguirem vindo, que só pode ser galáctica. Luzitas eléctricas caspam, por todo o vale, o cabelo da noite: pequeninas vidas sem livros nem redenção, dentro das casitas, dos galinheirozitos, dos camiõezitos, da noite.




Caramulo, noite de 21 de Agosto de 2006

22/08/2006

Dísticos Matinais

(Foram compostos estes pares de versos no decurso de uma manhã muito esclarecida de Julho; escrevi-os na casa do dr. João Almiro, um homem de 80 anos que dedicou a vida e a fortuna a ajudar pessoas desviadas do comum rio dos outros: crianças, cirróticos, drogados, pessoas; dedico estes dísticos a esse senhor.)
1
As vidas: espelhos mínimos
da Grande Vida.
2
Gatos infantis num vaso de barro:
abraços mordidos.
3
Manhã suave, fresca, larga:
um tanque de luz.
4
Tudo ouro, tudo prata,
ar tudo: passagem.
5
Livre, pardal, coelho:
um homem bravo ao meio-dia.
6
Um outro:
um e outro.
7
Voz do pássaro pousado
no arame: flor rápida.
8
Sol a pino no pó:
despede-se a manhã.
9
Sombra na manhã como panos
nocturnos ainda, porém.
10
Correnteza de homens:
efémeros, seixos.
11
O céu é para mergulhar
de cabeça, o coração por terra.
12
Lavar por dentro:
conscienciosamente.
13
Terra tão depressa
laranja como pedra.
14
Janelas vistas para dentro,
como poços subidos.
15
Cores da telha, da árvore,
do céu: dulcíssimas violências.
16
Mulheres ingerindo bolos,
guelrando risos, alheias.
17
Serviço e féria.
Pão e manteiga.
18
Enquanto for vivo:
enquanto vier vivo.
Campo de Besteiros, manhã de 28 de Julho de 2006

21/08/2006

Caminha de Ferro

(O leitor/espectador é confrontado com a visão de uma gare de caminho-de-ferro; varrida do vento, água nas extremas da plataforma; passa gente, pouca, nas costas deste Homem de Gabardine Cinzenta, que diz/recita:)




Não tem importância a mãe.
Importante é a viagem de comboio
na noite de chuva.
O pai onde não anda?
Rola o trem disciplinado
ensinado o camareiro
que aponta lugares numerados
o vagão-bufete
o mijatório.
Digo:
a água eléctrica
tão fria sempre
da torneira vermelha
das estações terminais.
Ai caraças!
Por que não chamam nunca
iniciais
às estações?
Comboioutono, ferroverão, carrilinverno,
vera prima mágoa minha.
Eu durmo estendido
os ossos de arame
de frio encardido
haja quem miame.
Gosto de farturas.
Tão oleaginosas.
Nuvens são alturas
de água-de-rosas.



(O Homem de Gabardine Cinzenta cessa a recitação; adopta um ar confessional:)



Por outro lado, isto é mesmo assim. Uma pessoa faz-se ao caminho, tempera o desaçúcar e o salitre, diz que não a uma mortalha marraxeque-careca, ou diz que sim, ou vai para a caminha. E, aí, então, morre para nascer, se tal vos não ofender.

Caramulo, noite de 18 de Agosto de 2006

Crescimento e Aceitação - Quadras Impopulares

Ossos as pessoas são
um pouco de nervos e carnação
a luz retida na pupila
a pele esticada como uma tenda

Orgasmos secos coitaditas
as pessoas emitem aflitas
o resto é muito mercearia
pendente a barriga como uma papada

Dou-me a mim por exemplo
certo domingo em certo templo
acudia a gente a um baptizado
havia gorduras fritas ó depois

Oh sim nós queremos ser felizes
tirar caquimerda dos narizes
e até talvez um autocarro
qu'o vizinho não tenha nem possa ter

Chega a época dos incêndios
e nós qu'emos lido compêndios
lamentamos o país rural
faz cá falta maditadura

Quer'a minha idade de volta
maizos bígíz e o jónetravolta
quero mas não posso senão querer
crescer aceitar ganhar perder.



Caramulo, noite de 18 de Agosto de 2006

17/08/2006

Ela Voltou

Ela voltou para mim. Algumas vezes em que me achei mais fraco, terei pressentido não voltar a vê-la. Para minha boa sorte, errei. Voltou esta mesma manhã. Agora é de tarde, quase noite até, e ela permanece. Amo a sua nudez não passível de igreja, o descalabro da sua antiguidade fingindo-se moça, o seu despudor cantante.
Acho-a magra. É toda linhas, por e para onde quer que a olhe. Dá a ideia, decerto segura, de ter vivido sempre descalça. Olha de cima as árvores e o traçado das ruas. Ela respira como um pára-quedista: sustendo o coração.
Sei que partirá de novo. E que de novo enfraquecerei, temendo menos a morte do que não voltar a vê-la. Assim seja, pois sempre assim tem sido. E pois que até a senhora do café, à porta do estabelecimento, a olhou longamente, exclamando-me depois: "Bendita chuva!".
Caramulo, tarde pluvial de 16 de Agosto de 2006

16/08/2006

Valsa Inexistente e outros Sapateados

1. Valsa Inexistente (mas em 3/4 real)

Delicada senhorinha
dança uma valsa por mim
não existes coitadinha
danç'a valsa mesm'assim

(subida de voz para terceira do acorde, naturalmente menor)

Glória aos tristes profanos
glóri'a quem nos troca o passo
embaraço desenganos
tantos anos valsas faço

(e agora em jeito de dolência coimbrã, mas não abusando)

Eu vi nascer uma roda de meninos
entristecer
dobram por mim esses sinos (bis)

(a seguir, idem, mas mais descritivo; ternário sempre, atenção!)

Aonde foi a mocinha
que frutos deu co'a idade?
perdeu ganhou coitadinha
é presa ou em liberdade?

(com falso júbilo; não há que enganar)

Hei-de lembrar
ai com quem nunca dormi
hei-d' acordar
se me lembrar é de ti

(e zinga para instrumental de resumo e saída; se houver fagote, não prejudica, antes pelo contrário; na dúvida, sax barítono; na falta de cacau, nenhum)

Vai valsa sai
do meu peito que eu não sei
valsar valsai
valsar eu nunca sei valsei.

(E pronto. Bufete.)





2. Sim, Carolina
(ou Relatório de Agente de Polícia sem Grandes Estudos mas com Sobrinho à Mão)




Ele disse que os outros se meteram por ali mas eu não pude apurar se se tratava dela ou de sítio, o ali. Efectivamente, há maneiras de falar, vai do dizer, só sei que fui o primeiro a chegar à ocorrência, não tenho sorte nenhuma. E se isto não está pior de ortografia, sintagma ou paradigma, é porque levei o carago do formulário do carago do relatório para casa da minha irmã, onde o meu sobrinho está na faculdade de português e não chumbou e não é nenhuma merda como o tio, enfim, mas também não estou a ver o qu'é qu'á-de ser dele, dar aulas. De qualquer maneira, esperei ali um bocado e depois de vir o arvorado Garcia agarrámo-zios.




3. Derrapagens Ainda não Mortais


Eu dantes podia ir aos morangos
não fui mas tinha tempo
agora tenho tempo na mesma
mas não vou porque
mudaram pa' Espanha os morangos.

Puseram uma cabina telefónica
à frente da pensão pós ucranianos
telefonarem pó brasil lá deles.
Eu estou à janelita e vejo:
parecem surdos-mudos, não
percebo nada de línguas.

Eu acordei mas tinha o sonho
agarrado nas unhas e disse-l'assim
- Ó sonho, vai pó carago, pá,
vai pó carago, ó sonho!





4. Ou Então Não


Se a rapariga da livraria
do outro lado da rua
do Big Sleep tiver desistido
do Marlowe,
eu estou aqui.

Quero lá saber de 1860,
quero lá saber do Ben-Hur.
Primeira edição, sou eu.






5. Escrevo porque espero que chova


O título deste poema já disse o que tinha a dizer.









Caramulo, tarde de 9 de Agosto de 2006

Maradona

Deus chamou-se Diego Armando.
Deus cheirava cocaína.
Não havia melhor, jogando.
Deus nasceu na Argentina.



Caramulo, tarde de 30 de Junho de 2006

Cebolas Fazem Chorar

Fernando Pessoa?
Apareceu-me, sim, uma vez, em Lisboa.
Ia eu, caminho do Campo das Cebolas, com
alguém com que teria ficado,
não fora ter aparecido Fernando
e levar-me a dita pessoa.



Caramulo, tarde de 29 de Junho de 2006

15/08/2006

Contador

Enquanto os meus olhos gastarem água e luz,
serei o contador do que há, do que
receio que haja, do que
desejo venha a haver.
Amo as pedras escritas.
Amo os gestos, esses desenhos arqueológicos
traçados pela memória corrompida.
Conto essas coisas, nas vastas
noites devastadas,
enquanto a tesoura escura do corpo
contrasta os lençóis, a loucura
não mansa.
Ainda hoje assisti eu a duas moças
robustas e brunidas merendando
bolos e copos de vinho branco.
Carnações sãs, pés completos em finas
chinelas, dentes ortoépios, bocas boas,
mãos alimentícias, barrigas e almas
sólidas.
Este é o tempo, este é todo o tempo.
Um homem cavalga um tractor verde.
Moscas caganitam reticências.
Escolho e colho.
Um casal com sacos de compras:
pão, verduras, vinho, banha, insecticida.
Um homem de boné azul, braços fortes,
castanhos.
Escrevo a minha mesma pedra.
A ferida genital pulsando leite negro,
a tosse alcatroada.
Mais a inconsolável beleza dos montes,
sobre que espraio uma atenção desmemoriada.
Não sei quando, mas outra vez
ainda
tocarão a areia marinha estes pés portugueses.
Este é todo o tempo que falta,
ocasião para escrever a pedra,
exercício amoroso e triste;
e contador.



Caramulo, tarde de 11 de Agosto de 2006

14/08/2006

O Cliente Tem Sempre Razão

(No café, o empregado pergunta-me que desejo)

Que a minha palavra seja
luzidia como uma égua.
Uma égua num campo de água verde.
Que húmido choupal lhe deite sombra.
Que ciganos ladrões a perturbem
com navalhas.
Que um homem comendo laranjas
a leia escrita numa parede.
Que seja parede, a minha palavra.
Total como o dia, rútila como a noite
apedrejada de diamantes.
Que seja sexuada e ame.
Que sobreviva aos bailes de agosto.

("E mais alguma coisa?", volta ele)

Que a minha boca seja de pudim,
e o meu coração-relógio uma bomba,
assim como diamantinos os meus dias
e totais as minhas noites,
acólitas da lua e da memória física,
sedas ao vento sideral estendidas
para agravo do meu amor glauco,
do meu palavroso amor.
E a conta, se faz favor.



Caramulo, tarde de 11 de Agosto de 2006

09/08/2006

Razão

Ter razão em companhia interessa pouco.
Muda-se, na verdade, alguma coisa:
o preservativo moral, o circo lésbico,
a rua de não-fumadores e o
hamburguer vegetariano.
Ter razão sozinho chama-se loucura.
Há médicos e farmacêuticos para isso:
contra isso.
Não estou aqui a elogiar a loucura.
Pago os meus impostos.
Percebo que as primeiras páginas
dos jornais remetem
para caixas interiores:
assim também procedem o sol e a chuva,
índices de
melancolia
ou
euforia,
cá dentro.
Não tem mal.
Aprendi que a eternidade provém da
repetição cíclica.
A Primavera é a próxima primavera
anterior.
Outono, Verão, Inverno:
outono, verão, inverno.
Leite do homem, ovo da mulher.
Comichão da gata, moscas da leoa.
Isto não é difícil: gata em casa e em casa
a televisão (única maneira de ter leoas em casa),
onde a leoa repete a gata,
as moscas.
Socializa com uma nota de banco.
Aparece com um carro novo.
Com duas larachas in,
não estarás out nem serás
posto knock-out.
Saber um bocado de americano
integra-te na razão colectiva.
Farás bem, barbarizando.
Imagina que o Outono regressa,
naturalmente amanhã,
já.
Piscam na vila as montras do comércio,
o conforto electrodoméstico garante
a inexistência de bombistas-suicidas.
O Cristo da prateleira joga ao trapézio,
ginasta de ilustração para ilustração
de almas artríticas.
Duas mulheres combinam entre si
o transporte (a remoção) de um corpo
chamado pai
por uma
e homem
por outra.
É preciso alimentá-lo, lavar-lhe as
cagadas, trazê-lo ao sol
(euforia)
ou
arredar-lhe a cadeira
das rodas da chuva
(melancolia).
O homem só sorri
e diz
bons-dias, boas-tardes e
boa-noite.
O homem singulariza a noite.
Percebe, o velho.
Manhãs e tardes são plurais
razões colectivas.
A noite é sozinha em
sua razão.
Sua, não. Dele.
Dele, não. Minha.




Caramulo, tardia manhã de 9 de Agosto de 2006

07/08/2006

Ilustração da Classe Operária

Prólogo

A montanha e o mar continuam a fazer-me, do corpo, tabuleiro para jogo, ciência e chacina de suas pedras elementais. Eu ajudo à festa. É porque exerço uma demora caçadora. Direi mais bem - pescadora. Sou incapaz de supor o que faríeis em meu lugar (e em meus lugares): cada montanha usa um só caminhante; e o mar não comporta mais do que um náufrago, à vez.Salva-me a razão o facto de escrever sempre em puro êxtase pedagógico. Esta tarde de sexta-feira, 4 de Agosto de 2006, a minha vítima foi a classe operária.As circunstâncias eram partilháveis: a luz aparecia total como um vidro; a parede da montanha não poderia nunca ser subida por outro barco que o do versilibrismo; na casa de pasto, operários erguiam à luz as estranhas flores dos seus braços: as mãos; e vi um gato tão pardo como uma cortina de chuva.Ninguém me acreditaria se aqui depusesse a principal das minhas ferramentas – a felicidade. Todavia, tal é. Ainda hoje. Agora, é certo, o dia acaba-se, adormece contra as pessoas, fá-las clicar os botões eléctricos. Na montanha, o pior da festa é ouvir-se o mar improvável, na noite, quando são pretas todas as casas do tabuleiro. Que não são 64, mas 24: como as horas do dia e o quanto de versos de cada, digamos, poema.

Os versos 14-15 do poema 6. Sonho do Taxista são tradução quase literal dos célebres versos do poeta francês Jacques Prévert: Deux escargots s'en vont à l'enterrement d'une feuille morte.





1. Paisagem e Povoamento

Em torno a massa verde do mundo,
alguma língua castanha.
As águas são nutrientes.
A cabeça do girassol, coroada de ouro e óleo,
mira com atenção o mapa alto.
Suínos e humanos chafurdam em estrumeiras.
Cal, cálcio, calcinamento – o momento é todo
branco.
Dos Correios, a carrinha vermelha sai, carregada
de um homem e de palavras e números.
Uma mulher transparente ondula de vidro
no calor: registo-a.
Terra de casas pacientes e mortas.
Quando há baile, sob as árvores, ainda aparecem
seres: olhos fosforescentes: esmeraldas audíveis.
Há uma loja. Na montra, sobre placa perfurada,
ratoeiras de pau demonstram ardil e arame.
Bois são ensinados a bordar lavradios.
Cabras roçam as tetas nos pedregulhos.
Mais acima delas, um batalhão de estrangeiros
plantou ventoinhas eólicas.
Mais acima delas, a tela azul suspeita
do mar improvável
que daqui anseio.



2. Quando no Mar

Como se tivesse chegado atrasado a acabada
festa: assim chego ao mar.
Digo: assim chego à memória.
Mãos e areia: materiais para ampulheta.
À sombra do toldo, a areia era de um frio
sexual: o primeiro.
O meu primeiro corpo anchovava-se
de todo.
A praia era completa, então.
Tribos sem defuntos acampavam ao sol.
O mar tinha cheiros de pessoa conhecida.
É verdade que por vezes raptava alguém,
matando-o, devolvendo-o depois noutra praia,
noutro poema.
Os banheiros eram muito pobres, tinham só
a pele escamada, bebiam vinho e fumavam.
Manhã muito cedo, a vida era uma palavra única.
À esquerda, à direita, sul e norte coincidiam
na massa verde: só que eram peixes
quem bordava, não ainda bois.
Provisórios eram os socalcos,
girava o sol como uma cabeça de flor:
óleo e ouro.
Língua encarnada.



3. Os Peixes

No mostrador de vidro, aguardam operários
comedores de fim de tarde (hoje)
os peixes que mulher fritou em esconsa
cozinha.
São nutrientes como águas.
Embolados de saliva, descerão aos poços
gástricos dos operários comedores.
A minha vida foi tocada
pelo vento.
Demoro-me nas ruas cálidas.
Há uma idade-méxico, esta
é a minha.
Pó branco, luz de cal.
Em cima, os moinhos eólicos dos
senhores estrang’engenheiros.
A todo o momento, é possível
que cowboys surjam mortos
de sede. O táxi da vila, sob
tílias, embolsa o taxista adormecido
ao volante.
Estarei sempre onde estive.
Sempre é o nome de aonde fui.
Escrevo para alimentar os peixes
Gástricos. E para ilustrar a classe operária.



4. Palavras e Números

O homem dos Correios gosta de peixe frito.
Encalmado, tonto de azinhagas e envelopes
com análises clínicas mortais dentro,
sai da carrinha encarnada-língua
e vem morder um peixe.
Venho por esta dizer que estou bem.
Sou de tua excelência atencioso.
Que o pagamento se não esgota, o prazo
dele sim.
Aflautado passarito amarelo, em gaiola
de primeiro andar, sobre montra de
loja de ratoeiras, trila apogiaturas
de rotina.
Trila palavritas amarelas, numerinhos vermelhos.
Não cómodas prestações, mas,
ainda assim, falar com o homem
dos móveis, pedir-lhe uma linha
de tábua sobre que arrecadar
os livros, as palavras, os números,
a quieta passagem.
A mulher na casa do girassol,
viúva de si mesma, platina calcinada,
abre a carta, não sabe ler,
diz-me que lha leia eu.



5. A Carta

Saí como sabes ao mar e não voltei
sou de tua excelência atencioso
eu queria já não quero nem já sei
tenho frio e ando silencioso.

Como está o girassol?
Anda o porco na estrumeira?
Tenho no pé’squerdo um fole
sinto na cabeça uma zoeira.

De espuma vou bordando o mar
de casa cal parece a espuma
navego e nunca hei-de chegar
a certa parte a parte alguma.

Eu talvez volte eu talvez não
deixe de estar onde não parti
agulhas breves no coração
coloração de rosa no chichi.

Sobem do mar a prumo os peixes
tocam das redes o baile mortal
oleosos de prata lembram-me feixes
lunares grafismos do papel natal.

Eu pago sem fim meu praz’amarelo
eu canto dos ratos o coração d’arame
não se cansa o mundo de triste e belo
não queiras meu nome ‘ind’assim chama-me.



6. Sonho do Taxista

Aos cantos da boca espumo um pouco.
Tílias dormentes m’embalsamam a viatura.
Adormeço como um infante vestido
de azul-marinheiro.
Mais do que a conta não sofro.
Não sei de mulheres nem homens:
xadrez infinito, teimoso jogo.
Tive ali o mar, sonhava com ele: não
o tinha.
Depois disseram-me que comesse por
conta. Essa conta sofri.
A França fui; e vi:
suínos e homens na estrumeira do idioma,
onde dois caracóis iam ao enterro
de uma folha morta.
Nunca estive aonde nunca voltei.
Sou tão fiel.
Seca-se-me a mãe ao sol,
Como um prumo de peixe de óle’ouro.
Estiola a espuma, cal se faz.
Morrem-se-me as casas.
Cowboys mexicanos vêm à babugem frita.
As tílias parecem bois, a luz
borda a noite inconsútil.



7. Tigre e Homem

O gato cruza impune a estrada,
entra no parque: registo-o.
Uma só natureza geradora, mas
tantos mundos.
Cresce na sombra: tigre.
Mais única que a minha, agora
e para sempre, a vida dele.
Uma senhora fala assim:
“Doem-me tanto os pés, tanto,
mas tenho de andar, caso contrário,
põem-me numa cadeira-de-rodas”.
Nem uma nuvem, o dia todo.
Abandonaram um carro numa rua
onde ninguém mora.
Como aqui não há areia, não há
tempo.
O dia nasce outra vez como
um siamês preso a um elástico.
Maduros de sangue, os animais regressam.
Maravilhosos bonecos, eles são.
Houve um tempo para mim.
Eu agora sou ilustrador.
As pessoas nascem, trabalham e dão
que fazer ao homem dos Correios.





Caramulo, dia 4 de Agosto de 2006





02/08/2006

Sob o Circo de Cinza

Mal seguras as calças à cintura, camisola com arrepanho ascendente, vejo do homem pobre o elástico das cuecas cor-de-casca-de-ovo. Sabe ler. Abriu o jornal como a um mapa, por ele navega na calma grés da manhã. Outro homem em cena. Traz queijos para vender debaixo de um olhar de avô baleado pela Pátria.
Sonhei de mais. A noite traspassou-me. Fui poroso à insistência das imagens. Eu estava numa casa de madeira. Havia um fogão a lenha. Havia uma varanda de tábuas inaugurando o vale. Era possível sentir os lobos, o terror dos coelhos na clandestinidade, a passagem caligráfica do milhafre no circo de cinza. E era no inverno. A cabana fazia parte de uma aldeia toda de madeira. Havia um telefone que não tocava, estava ali como um vaso sem planta. Atrás da cabana, subindo um pouco, eu podia recordar o bar dos ingleses: jornais sem fotografias, cadeirões de couro, tabuleiros de xadrez sem xadrezistas. O barman era português do Minho. O casal proprietário era do Sussex. Se eu acordasse, poderia talvez subir ao bar, ler as letras miúdas dos jornais, trocar uma nostalgia com o barman de Monção.
Agora, outro homem. Sobrancelhas espessas como arbustos, olhar grave como uma jura. Saúda com gravidade e espessura. Retribuo. Toma o jornal que o homem pobre leu, ou navegou. É tudo tão bonito. Da cozinha, sai o patrão transportando um prato com duas peras amarelas e uma faca de cabo de madeira.
Na minha casa de madeira, eu lutava sem um gesto, lobo sem coelho nem desejo. No fogão, a lenha ardia como um trapo de ouro. Registei a possibilidade de não mais poder sair dali, nunca mais ir junto do minhoto que infundia chás para xadrezistas nenhuns, jamais dizer aos ingleses o que sabia de Phyllis Bentley e de Ferreira de Castro.
E no entanto o Tempo na noite não assassinava, antes permitia a véspera de outros homens, outros jornais, outras cuecas e sobrancelhas. O velho comeu as peras depois de lhes esfaquear a pele. Vi que parte do sumo lhe abordava os cantos da boca, arroiando depois pelas fissuras, as rugas, as comissuras do queixo velho.
Não assim os ingleses, que mastigavam a seco triângulos de pão com lâminas de pepino. Ela tomava colheradas de extracto de carne. Ele mordia goladas sólidas de gin. Assestavam ambos sobre a minha cabana e o vale o mesmo olhar cinzazul de exilados.
A manhã raspou-se de grés, acordei sem ter dormido: como se nascesse. Tacteei as calças como se procurasse pernas. Procurei água no cubículo cerâmico. Outra mesma noite me acudirá em breve, facto que não lamento tanto como não ter comprado um dos queijos daquele senhor.



Caramulo, Café Avenida, manhã de 1 de Agosto de 2006

01/08/2006

Para Acabar de Vez com tal Julho

1. Biblioteca

Não chegarei a tempo de tocar, vivo,
a tua mão viva.
Não refarei qualquer amor.
Todo o palhaço é ridículo com a repetição
da anedota.
Da lira que a tua mão é,
não me voltará o coração a ser
caixa de ressonância.
Tenho tido uma vida longa.
Sentirei, breve, a morte.
Dizem que é dos livros.



2. Por

Olha, passam no ar meninas.
Olha, quem atirou estas laranjas?
Sumossanguíneas, voadoras: meninas
tangerinas, cabelitos, franjas.

Criancitas, ossos tenros.
A gente agora é pai delas.
Um dia, talvez, teremos genros.
Se estamos vivos, é por elas.



3. Dicção

Carne verde veste ossos brancos,
assim os homens.
Tules azuis esvoaçam raparigas,
assim elas.
Fios de água correm o Verão.
As mães doentes telefonam,
incomodam o quotidiano.
A conjuntura internacional abre brechas
à bomba.
Sinais-rádio picotam o ar.
Quero caracóis. Não,
não estou cansado. Dizias?



4. L’Homme du Temps

Vivo com um homem.
Vivo com um homem na minha cabeça.
Estou a vê-lo chegar de comboio,
marejada de rio a tardinha,
prometendo chover.
Cumpriu.
Vivo com um homem que chove.



5. Marav’olha

A minha vida é muito mais maravilhosa
do que paguei por ela.
Permite-me, até, a circulação pelo país.
Outras vezes, fecha-me na música, ela.
Sim, tive estios filarmónicos.
Um homem dava maçãs e vinho branco,
eu era um de nós, e nós
aceitávamos infusas e pomos.
A minha vida não era ainda isto.
Eu pardalava em absoluta ignorância
do preço do grão. E de o grão ter preço.
Depois disseram-me assim
– Olhe que você
– e eu não olhei.



6. Tento na Língua

A actriz diz ao actor
– Eu amo você.
Diz o actor:
– Você é estrebaria.



7. Visite o Caramulo

A Sofia assistiu, no sábado, às visitas.
Vêm de longe, de outro que não este mundo.
São os familiares. Os sãos. Os que gerem.
Vêm duas vezes por ano. Vêm
pelo calor, vêm
pela neve.
Manhãzinha muito cedo, os utentes tomam
banho nos lares.
As auxiliares, pressurosas, até licor de rosas
esfregam nas peles dos
condenados a isto.
Geriatria, psiquiatria – um a uma, uma
a um, os seres invisíveis vêm ver
a luz do sábado, pensam
que é domingo.
Não é.



8. Poema por Antecipação

Quando te fores embora e deixares
o corpo por sinal de entrega,
farás ‘inda bem se pensares
que aquilo que mata também sossega.

Envelhecem tanto, as raparigas. Tant’e no entanto
como são gráceis, rijas, inabaláveis.
São uma espécie de (des)esperanto.
Nascem e são logo inadiáveis.

Umas são mães sem pensar nisso. Outras
pensam que pensam e nunca o são.
Luzem, rebolam as ancas de potras,
mijam e sangram de pé para o chão.

Quando tu te fores embora, como direi?
Como hei-d’eu ceder à últim’idade?
Faço as perguntas porque não sei.
Mas’inda cá estás, responde à vontade.



9. Soneto Inverso

Tenho assistido: as pessoas tentam, em vão,
separar a vida da profissão.
Isto rimou sem querer.

Sim, claro que sim: somos o que fazemos.
E no que desfazemos nos começa a morte.
Não é azar, não é por sorte.

Gosto de mulheres. Já tive algumas
que me disseram – Sê homem
– mas, delas todas, nenhuma
ficou para velha quand’eu era jovem.

Tenho este trabalho. É ele o que sou.
Eu sou sonetista: catorze por um.
Eu sou o que faço. Desfaço? Não vou
agora dizer – Sou jovem ! (Ah hum!)



10. Cama de Casal

Alguém ou ninguém ou mais ou menos isso
respira a teu lado: e tu só na mesma.
Quando o teu braço de cambraia experimenta
o frio de seda na cama adormecida, e
só tu, ainda, restas acordado.
A guerra é experimentarmos um sangue não nosso.
Assim decerto, e também, o amor.
Nem os lojistas de móveis sabem
que nos propõem eles quando
nos propõem camas de casal.



11. Mossa Idade, Mossa Idade

Amarelo-gata-de-galinha retira-me
do dermoptimismo a mocidade.
Quem quiser ferir-me, fira-me.
Dig’assim – Iss’é da idade.

Mas, que porra!, aind’é cedo…
Nasci só em 64!
2000 & tal não me faz medo,
que eu pinto o Diabo e o 7 a 4!

Us’óc’los, sim. E prótese dentária.
Mas a gland’intumesce à simples ideia
da fêmea montada, vulgar alimária
que rache a fenda, mesmo seja feia.

Mas, p’ra ser sincero, aqui reconheço
que o meu eu não é com’ele já foi.
Manta nos joelhos, à brisa estremeço.
Só digo “Bom-dia!”. Nunca digo “Oi!”…



12. Match Box

Ainda brinco com miniaturas. Juntam-se-me sozinhas, aos pés da cama. Pululam, elásticas, aos pés do dia. São terríveis. Inexoram. Umas conduzem carritos de ferro que não posso pisar, e daí que me partam as unhas em total impunidade. Outras amargam o leite, fendem de verdazul o pão, corrompem a carne e oxidam o frigorífico. Outras são especialistas de arquitectura: fazem, refazem e desfazem casas onde ninguém pode voltar a morar. Outras juntam-se todas e totalizam a minha gata, que me olha, topázia fria, dizendo:
– Eu sou-as.
Outras vezes estou apenas sozinho. E não brinco.




Caramulo, tarde de 31 de Julho de 2006

FM

Anteontem, conheci uma senhora que foi tanoeira, outra que foi moleira. Octogenárias ambas e ambas viúvas – frágeis são os homens. Duas lutadoras invencíveis – foi o que me pareceram.
Ontem, conheci dois homens (pai e filho) ferreiros. Mostraram-me lances da arte do ferro e do fogo. Vi, deles, as alfaias e as ferragens novas.
Hoje é hoje. Na rádio, as vozes delas e deles retornam ao éter. Faço de altifalante. Pego em vidas, torno-as ouvidas.
Impossível não gostar desta gente. Na casa da moleira, as estruturas de produção envelheceram com a mestra do ofício. Inquietei-lhe o gato, um bicho negro e lustral que se escapuliu entre tabuamentos ruídos. À porta da tanoeira, no pátio, ouvi e vi o correr da água para o tanque, para as árvores fruteiras. Na oficina dos ferreiros, consultei sem dicionário de rimas o duro lirismo dos oficiais de toda a vida, todo o ferro, todo o fogo.
Gravei orgulho e humildade. Magnetizei algum tempo. Estou, portanto, ainda a tempo. Posso ser moleiro, tanoeiro, ferreiro, repórter. Posso estar vivo para além da mecânica da respiração, do frenesim onírico, da roda alimentar, da enxúndia bibliográfica.
Pela tardinha, arrumado o gravador, quando o mel do sol coagula casas e veredas, uma pessoa é outra vez gente. Eu sinto. Os lugarejos, semeados pelo vento a toda a extensão do vale, pepitam de candeeiros. Um fio de azeite frita peixe miúdo. O louco que pede cigarros sossegou sob a tília, ei-lo que boceja imune como um cachorro.
Mulheres vivas, ausentes homens – o jogo é de sempre. Compreendo a minha função, exerço-a, não lhe chamo destino, chamo-lhe função. Formiga laboreira, acumulei víveres no carro. Pensar é conferir bronze à lata de viver. Não penso muito.
Às nove da noite, o ontem dos ferreiros reviverá no futuro escuro da rádio. Escuro e furtivo como o gato da moleira.
Não ligo o rádio: ainda é tudo tão cedo.



Caramulo, tarde de 27 de Julho de 2006

Canzoada Assaltante