30/12/2019

CADERNETA PRETA - 23 (trechos)





23. Desertos Minutos
    


a) Sábado, 7 de Dezembro de 2019


Reli hoje palavras in-memoriam-ais: em prol & intenção de Olímpio Ferreira, morto de morte súbita a 30-XII-2007. Um Amigo que deixou viúva a Mariana e órfãos a seus/deles infantes Miguel & André. Tristeza contagiosa, a desse livro saído em 2008 pela editora Diatribe. Contagiosa – mais não hei a dizer.

Cem anos exactos antes, era 1907. Publicava-se o 21.ºANNO da Encyclopedia das Familias, periódica brochura fundada pelo barbudo Lucas Evangelista Torres. Tinha sede no 93 – Rua do Diario de Noticias – 93 – LISBOA. Leio tal ortographia. Encanto-me sem dar mostra de enervamento. Desvaneço-me sem índice ao externo de íntimo fulgor. O n.º em causa colige nótulas militares (1777, porrada n’América do Norte entre Washington & Cornwallis via anónimos); versos lambidoces de uns João Saraiva, Manuel d’Almeida Henriques, Alda Guerreiro, Casimiro Dantas, Libanio Baptista Ferreira & Alves d’Almeida; desvanecimento patriótico ante o génio inventivo (de ordem físico-química) do padre Manuel António Gomes, vulgo Padre Himalaia [“(…) Pyrheliophoro, surpreendente apparelho destinado á concentração dos raios solares, obtendo uma temperatura superior a 3:500 graus(…)” ]; maravilha didáctico-pedagógica da língua chamada Esperanto; instruções quase cândidas de/para higiene doméstica – “Como se prepara um banho em casa”; e muitas maravilhas mais. (Sim, Olímpio.)

(Não obsto à morte como à vida gasto. Isto é presto – mas a custo.)

(...)



29/12/2019

CADERNETA PRETA - 22




22. Nem Culpa nem Perdão
    


a) Segunda-feira, 2 de Dezembro de 2019


Antes um esquisso histórico do que um esquizo-histérico.


b) Terça-feira, 3 de Dezembro de 2019


Dois homens cujos corpos já não carburam mas que deixaram obra – Vítor Silva Tavares & Armando Silva Carvalho. Recupero-os de documentos filmados que a internet disponibiliza. Sombras lapidadas (duas datas, enfim), continuam luzes todavia.
Estes dois homens são (ainda são) diferentes da gentinha, dão de si vidas avessas à vidinha.
Com Vítor, nunca me encontrei. Com Armando, sim.
É hoje clara a manhã decembrina. Vou ao mundo em casa. Trato de coisas há muito adiadas. Não mais. Com vagar, disponho os tesouros. Os nomes, digo. O meu povo rumoroso. Jogam a bola pela página. Goleiam a poesia.

Camilo. Murça. Lourenço. Gomes.
Damas. Conceição. Campos. Pinho.
Ferreira. Branco. Prado. Manuel.
Nogueira. Bandeira. Laranjeira. Vitó.
Brandão. Braga. Bento (tanto o Manuel Galrinho como o António Duarte.) Nascimento.
Damasceno. Duarte (António também, mas ali da Ereira).
Guimarães, Seabra, Costeado, Abreu.

Homem envelhecido em saleta personalizada à medida do próprio corpo, unidade de (des)medida deste cada vez mais único mundo. O trivial: duas alas de livros, quatro retratos (não mais), uma pasta de desenhos, um boião meio de doces frutados, garrafa meia de absinto, cigarros, cortinados verdes.
Fora, a cinquenta metros do lado-além da senda, mulher envelhecida livrando-se de lixo no contentor. Acompanha-a o cão, mais velho ’inda do que ela. Parece que, na mocidade, foi mais fodelhona do que a monja de Beja.

O Gato.
O meu Gato.
O rosto do meu Gato.
O rosto do meu Gato é de três jóias.
Três jóias: uma por cada olho
– mais a do olhar.

O sono por vezes faz-se caro. Põe-se a haver menos corpo do que pessoa. Alguns trechos do dia soltam-se das páginas que lhes eram casa. Imagens fulgem sem ser por mal. Da cama, um gajo pode dominar o mundo sem ter de sujar as mãos nele.
A cabeça ressoa profundidade de céu, pirilampos estrelas faróis papoilas de cristal – o costume, enfim:
É-se a sós sem SOS.
E depois nada.
Ou como sempre: a atenção gagueja, a poesia reitera a sua intermitência natural, zonas frias do lençol fazem de estepes nevadas até os dentes.
Pode ser ocasião menos má para relacionar asteróides com clareiras, mortos da Grande Guerra com sobreviventes da Pequena, versos de Ruy Belo com títulos de transportes no tempo da terra da alegria, tardes nubladas com acordeões de pedintes, ruas com prontuários, Ivones com Serafins, casebres romenos com algarismos romanos, chatices conjugais com pés num lago, pinheiros de natal com palavras de plástico, despensas abarrotadas com panoramas da Etiópia, fotogramas do Dirk Bogarde com gôndolas no estaleiro, Carolina  Michaëlis de Vasconcellos com o Campo da Arregaça, mesuras de cortesia com legumes atirados ao lixo, moscas com transístores, iluministas com electricistas, esófagos com esfregonas, cristos da Rosa Ramalho com o escorbuto, cristos do Dali com o Forte Knox, albatrozes com o LSD, orgasmos com curriculum vitae, a própria Mãe com zonas reservadas de caça associativa, orfanatos com a Figueira da Foz de 1930, encontros literários com a Família Adams, nêsperas com ranchos folclóricos, caixas de bombons com tipas dinamarquesas, pianos verticais com a Batalha de Waterloo, máscaras antigás com más caras antigas, anorgasmia com gelo ao sol, Londres com anfiteatros anatómicos – e pardais com provérbios.
E depois, tudo. Mas só até de novo haver tanto de pessoa quanto de costume, perdão, de corpo.


c) Quarta-feira, 4 de Dezembro de 2019


Saul Trajano, entomólogo amador, autor de folhetos & catálogos daquilo a que os puristas chamam ainda Filosofia Natural. Admirável é, deste Trajano, o uso do Tempo. Perde-o, é certo, como todos nós – mas parece-nos que menos do que nós. De resto, dono de uma mercearia de bairro.

Continua a ser peremptória a autoridade dos detalhes na organização & no sustento das (ditas) grandes coisas. Certa ordem das palavras na frase mais sentenciosa. Serem castanhos e não pretos os sapatos com que se comparece ao enterro do sócio de há tantos anos. O defeito cultivado como virtude: geral ignorância, nos nossos dias elevada à ponte do navio.

Fumo de débil fogueira, evolamo-nos no ar já não grácil dos campos relegados a baldio: nem sequer pousio.

Suméria, Anatólia, Creta, Corfu, Cornwell com casa em Cornwall, Odessa, Tebas, Alexandria, Bética, Navarra, Anchorage, Tasmânia, Pico, Corvo, Spa, Caramulo, Edom, Cartago, Gaza, Tarrafal, Cork, Etrúria, Minos, Rodes, Nolo, Montana, Pisa, Renânia, Peniche. Não falta onde cair morto. A ninguém.

João Gaio Ferida, meio-irmão de Cláudio Nestor Tibério – de pais diferentes. Mãe deles: Lívia Antónia Sila. Vivenda tripla os alberga. Gaio preferiu a cave. Nestor, o piso superior. A mãe, no térreo. Frequentam-se pouco. Eles & ela lá sabem.

Nos semáforos da rotunda fluvial (três faixas, lado norte), pede esmola Sejano Teixeira, que por nem sempre esperar pelo vermelho ’inda um dia destes se faz espatifar por algum inocente. A história dele só diverge de tantas outras pelo nome individual que lhe dá cromo nesta caderneta. O mais é trivial: idade, 45; altura, 1.65m; cabelo, por lavar; olhos, indeléveis; perna direita avariada na rótula. Acérrimo devoto, militante até, de Isabel de Aragão & Coimbra, Santa & rainha. Mas com uma das moedas que lhe dão pagará não a Isabel mas a Caronte.

Calígula parece ter sido bom cromo, ele também. Ovídio & Horácio, todavia, continuam ganhando o dia, não o psicotiranopata, filho de Germanicus & Agrippina. Venenos & gumes. Esgotos & figos. O espelho não lograva reflectir dele o rosto. E sim, bebia sangue.

Longes oferecem seus casarios brancos,
jóias simples no veludo verde-cinza.
Da fábrica extinta sobe ainda a chaminé,
o céu a tem mais que nós, desapossados.


d) Quinta-feira, 5 de Dezembro de 2019


Remexendo papéis & pastas no intuito do reordenamento da residência, esta corrente, na terra: múltiplas dimensões acorrem como ocorrem. Uma das caixas adquire instantânea importância – a que acolhe os rasganços, as terminais rejeições. Entra mais ar, e do fresco, neste cubículo, nestes aposentos cuja demora ao menos ilude sensatez. O que se segue – está já na boca do que fica.
Um punhado de fotografias exuma mortos ainda amáveis. Outro maço, então crianças hoje com filhos crescidos mais do que elas. Roda-viva, implacável.
Contratos, facturas, recibos, pétalas, frases truncadas – e muitos, muitos nomes, profusão deles. Muito sítio também que não Coimbra. Algum (não pouco, lamento – que não pouco lamento9 tempo estragado.
Uma coisa: não aparecem sobras medicamentosas. Cinzeiros sim, artísticos & baratos. Felicidade: esquecidos lápis, prontos eles todos para novas demandas em prol da palavra-justa. Sapatos que passos não voltaram a dar. Louça pintada, da mais simples. Manuais de instruções para máquinas por inventar.
É o meu saque, minha autopilhagem. Cumpre rasgar como salvar. Deixar ir como resgatar. É gloriosa a manhã, pois.
É agradável ter feito o que tinha de & e queria ser feito. É gloriosa a noite, pois.

(Até do chão apanho
as migalhas dos anos,
quanto mais do ar,
olha-m’este.)

Velhos mas por estrear: cadernos que resgatei das caixas de que exumei papéis da minha vida. Velhos mas por estrear: nós todos, que carago.



e) Sexta-feira, 6 de Dezembro de 2019


Ter rosto em vida implica saber olhar a morte na cara.

Acima vão em itálico palavras que reencontrei num fragmento. É de há poucos anos, nem sei já se o usei ou não noutro (con)texto. Não importa: revive aqui.

Pela frente (& pela fronte, já agora, aproveitando o fragmento supra), o dia nem promete nem interdita – seja o que (não) for. No cubículo da livralhada, maná de objectos por reordenar. Sapatos, cartas, roupa, louça, o diabo. Falta-me uma boa estante, tão depressa não a haverei.

Pratico as minhas razões-motrizes sem as descer a espécie de auto-religião, dou-lhes substância papel-lápis-tinta-por vezes, pombas testemunham este inócuo viático, caixotes papelónicos não me falta em que aposentar (dar aposento & pensionar) tanta tralha palavrosa.
Não vou felizmente a tempo da barca da contrição. Nem culpa nem perdão. Como disse, nada de auto-religião.

Fermentos, ferimentos.
Pedantes, pedintes.
Momentos, monumentos.
Como dantes Abrantes & Avintes.

Clarões do vivido encontram sempre maneira de fulminar isto a que chamamos presente, a cursiva duração quotidiana – que, por cursiva, não tem de ser itálica.

(Menos & menos até zero: refiro-me aos medíocres.)

Ainda o corpo vai dando de si
quanto o remunera o que (o) toca.
Fá-lo sem euforia nem frenesi,
nem telefanica nem telefonoca.

Exclamações mudas & oblíquas: ao balcão, os bebedores.

Havendo moedas q.b., há que seguir no comboio da Figueira, andar por lá peregrinando sem estardalhaços latrino-líricos, colher os versos sim senhor mas sem ondas, que as tem sem conto o velho mar à praia dadas.

25/12/2019

CADERNETA PRETA - 21






21. Empresa Individual – ou – Pouquíssimos Anos, Demasiados Dias – ou – Parte Ética & Arte Poética
    

Domingo, 1 de Dezembro de 2019


Devidamente apontadas ao céu, as árvores – naves espaciais. Contam por anéis (como Saturno faz) o tempo que consomem a subir.

Adida fortuna onomástica:
Cagica (Sesimbra, Académica, CUF, Belenenses). Linha da Académica em visita ao Estádio da Luz, ano 1963 d.C.: Maló, Curado, Piscas, Torres, Cagica, Rui Rodrigues, Almeida, Teixeira, Gaio, Rocha, Oliveira Duarte. Ou, de outras, o calmeirão guardião Capela. Faia, do Barreirense. Péridis. Wilson. Bentes, Abreu, Malícia, Marta. Arrobas, Manuel Duarte. Américo, Lourenço. Rosales, do Estoril.
Estes nomes palpitam num livro, de António Cagica Rapaz, intitulado Líbero e Directo – Setenta e Tal Contos de Futebol (Garrido Editores, Outubro de 2003).
Uma linha da CUF no Estádio dos Barreiros, dia 8 de Dezembro de 1968: Vítor Cabral (g.r.), Vítor Marques, Bambo, Pedro, Abalroado, Cagica, Vieira Dias, Capitão-Mor, Monteiro, Arnaldo, Gomes Ferreira.
Ou então:
Hohenzollern – Saxe – Coburg - Gotha – para equipa de hóquei-em-patins, falta-vos ’inda o guarda-redes.

Um Guilherme vai morrer ali à Holanda. Dendroclasta, arboricida massivo, parece. O bracinho esquerdo avariado desde nascença, isso é certo. Nascer é já em si avaria, velho Guilherme. Ajudaste a emendar isso, enviando milhões para a morte. Não na tua pátria (pária dela foste depois, afinal) mas na dos outros: a começar pela Bélgica, lembra-te enquanto abates arvoredo holandês).

Aqui não mora prussian warlord nenhum. Mora um vagamente-poeta-com-gato. Domingo todos os dias, parece. Nenhum Tirpitz, nenhum Nelson. Todavia, caixas de papelão fazem de veras arcas-de-tesouros. Ainda há pouco resgatei de uma The Waste Land, do seguro Eliot. Aqui? Aqui vai(-se de)morando um gajo que se enternece à visão do gatito que, adormecido nas pernas, dá às patitas posteriores, correndo talvez atrás do pássaro que, nesta casa, só em verso.

Baixei os estores, deixando respiradouros para que aragem não falte neste castelo sucinto. Envolvo-me no roupão novo, deixo-me ir na abstracção cediça da tepidez. Um Horácio foi avô de um Henrique, anoto. Tenho chá na garrafa-termos. Tenho um assado no forno. Sou por vezes riquíssimo – bem mais do que, em princípio, a profissão poética poderia alvejar, perdão, almejar. Durante as horas vespertinas, ressuscitei livralhada, aderi a uma não-infeliz ginástica bibliófila. Assim fiz por & para merecer a noite. Faz hoje 55 anos a minha prima Candita.

Florestal humidade, capitosa aragem.
Nada me faria perder dela o desejo.
Tripulo a cavalo do verso a profunda imagem.
Reino sobre so(m)bras, reinado que não alijo.

Trafalgar, Waterloo, turismo mortal.
Remoção cadaveresca, viúvas em barda.
Degradação velocíssima pancontinental.
Só já a poesia pode pôr-nos a par da

inelutável folia do global antropóide.
Está tudo conservado em celuloide.
Não há que enganar, tudo nos livros.

Em sonhos, por vezes a tinta, lapijo mortos.
Braços decepados, pés idem & olhos tortos.
E o bracinho do Wilhelm gozando co’s vivos.

A 11 de Novembro de 1918, o senhor meu Pai é nascido há 1-ano-7-meses-1-dia. O Kaiser abdica à força. Ruma Holanda. Retornar não é, nunca será, viável. O Adolf não lho permitirá. Restam papéis, estatuetas, medalhas, chávenas esbeiçadas, cacaretarecos da finitude. Tudo mais (muito mais, francamente) rico do que agora. Mas 101 anos arderam entretanto. Posso apenas remexer arcas. Tenho ali o meu Eliot. Ali o meu Gato. E o meu Dezembro novo, deserto natalício velho, fulgor vendilhão da carneirada.

Por falda poente de bosque oblíquo,
por aí segue a pessoa angariadora
de linhas a coberto da neve em treva,
recolhidos os animais ao mais silvestre segredo,
deflagrando a lunar granada sem estrelas.

Muito se faz, felizmente, anti-clímax
adentro a campânula do vivente absorto.
Enfim, antes porém isso do que morto.
Que lhe baste ser actor, sem plateia
– ou, melhor, dramaturgo sem actores.

Estas visões fazem mal nenhum,
tenho-as vivido não sem esplendor,
por exemplo quando na camarata da tropa,
no milénio passado, exasperantemente moço
mas de profundo perene luto já & pronto.

A pessoa em encosta de montanha,
monarca desta minéria soledade
– são dela os passos ou são os passos ela?
Não a ela pergunto – nem ao Leitor,
que tudo se embrulha em retórica.

A recompensa é além, é cabana,
reanima-se nela o lume lento,
perfumada de maçãs a prateleira,
de tratados de versometrificação outra,
cá fora a neve tão prata quão papel.

Não é dia de expedir carta,
então de recebê-la muito menos,
deixemo-nos porém de espúrias inquietudes,
às virtudes libemos sem boca abrir sequer.
Sim, isso façamos eu sozinho.

Jaime Eduardo Raposo lê em fato completo na sala de outra casa que só escrevendo-a posso visitar. Assenta-lhe bem o trabalho, medido à minúcia por remoto alfaiate. Se pudesse, diria o nome da mulher que o interpela na véspera, aquando da passagem dele pela Rua dos Sapateiros, ali onde Rodrigues & Reis oficiavam pequenos, leais, suficientes comércios portugueses. Ai Jaime Eduardo, que ao médico foste na 8 de Maio, que cardiologia te terão feito eu não sei. A caminho passas por Manuel Paulo (Vinhos do Lavrador, Petiscos), José Peres (Relógios, Salvas Argênteas), Chino Coimbra (Maçãs, Sabões), Lucílio Virgílio (Louças, Plásticos), Hebreu Atenas (Ágio, Porno). Saiamos-lhe de casa, deixemos só encostada a porta do terraço.

Dezembro começado dominicalmente. Já posso dizer:
Há cinquenta anos & uns trocos, eu-isto-eu-aquilo (…)
Mas há menos do que cinquenta foi que, adentrando a secção livreira da figueirense Casa da Rádio, descobri o Actus Tragicus. Hora boa, essa que tal. 18 de Abril de 1989. Trinta-anos-sete-meses-treze-dias, hoje contados. Também de JMFJ, e no mesmo dia, trouxe para a casa de então O Regresso dos Remadores. Só a 25 de Novembro de 2002 adquiri O Barco Vazio. Os três tomos, todos da bela colecção Forma da Editorial Presença. Reli-os na íntegra ontem & hoje. Não, não estou em perda total – só às vezes & aos bocaditos. Dominicalmente Dezembro etc.

(Chatice não de somenos seria morrer antes de ter vivido. Acontece muito a muito gente, tanto da boa como da mais reles.)

Adormeço para brindar, perdão,
brincar
aos mortos.

*

Não mais vulgarizarei
o ouro, que derradeiro o sei
já, senão
desde sempre.

*

Nem ânsia, por mais vaga, será
osso que atire a cães, esses
jurisprudenciais sacos-de-pulgas
quem nem ler
ladram.

*

A maravilha pode muito bem
estar no verso seguinte, há que
persegui-la sempre, não que
dar por contados os dias a contar.

*

Momento adverso
é o que não dá verso.

*

Cada noite como empresa individual, ancoradouro de barcas imperfeitas, algumas sem estaleiro que as redima, é perigoso embarcar, ainda, nelas. Nem fármacos nem igrejas. O rosto escanhoado sim, as mãos lavadas. Pouquíssimos anos, demasiados dias: e mais noites que dias, verdade. Uma pessoa habitua-se ou habita-se? A pessoa mais pobre é a que nem uma palavra tem para dar. Não compreende se lhe dão uma. É gaja para valorizar a margarina em detrimento do pão.
Não se trata de fazer, um dia.
Trata-se de fazer o dia.
Sim, mesmo de noite – como os bravos padeiros. Ou como esses que vemos aderindo ao gelo mineral sob os viadutos. Parte ética & arte poética: não há que renegar a simplicidade. Faz-se o dia em (p)rosa, a noite em (re)verso. Lavamos o corpo, vitaminamo-nos enquanto as capitais ardem ao frio, tratamo-lo como criança senil que nos interrompe o silabário, morta antes de se acabar no fósforo a chama que o justificava.
Vejo-os assimilando a essência da Cidade, generosamente adensando os avessos das so(m)bras, aninhados em vãos interditos aos bons-costumes & ao turismo.
Agora em verso.

CADERNETA PRETA - 20 (trechos)




20. Para Consumo da Casa
    



a) Sexta-feira, 29 de Novembro de 2019

Da sala, espectáculo vivo do Novembro-moribundo: campânula nublando o mundo, fechando-o em ensimesmamento húmido, varrendo as gentes para a invisibilidade, convocando a pujança da vegetação que resistiu ao cimento, ao vidro, ao plástico, à borracha. Como se o Loreto, o Casal Ferrão, a Relvinha, o Brinca e o de São Miguel renasçam – mas sem homens – Reichnam, Echternach, Lieja, Bamberg e Hildesheim, com Aix-en-Chapelle para menos riba.

Da casa, em casa, consumo & consumação. Nem rendição, nem heroísmo. General aqui, soldado lá fora.


b) Sábado, 30 de Novembro de 2019

(Sempre que posso, não escrevo.
Nem vivo.)

Gosto muito de quando o bando, de uma só vez & a uma só voz, debanda, oblíquo, do chão para a torre. Alguns retardados odeiam-nas. Eu sou columbófilo, cuspo no focinho dos columbófobos. Trago-lhes comida, evito dirigir-lhes palavra que não escrita. Sobreviventes da mesquinhez, cagam acidamente na arquitectura que os monárquicos, de mão-beijada como é deles tão próprio, deram aos republicanos.

É prata mas azul mas à noite chamo,
sobretudo quando de manhã acontece.
Homens com sacos, homens ensacados.
Orlam o sábado como rangentes relíquias.

A administração alguma satisfaço estas linhas,
as contas sempre estiveram feitas,
foi sempre zero o resto.
Já o rosto, o rosto é outra coisa.

Não muitas horas demora já Novembro,
em pouco será noite, não mais dia
verá Novembro dar-se de si,
Dezembro traz consigo as merdas de costume.

O fundamento parece incomunicável,
fizeram negócio seu os padres à comunhão,
no rectângulo restrito d’onde olho
conto oito-árvores-oito, prédios das aves.

À parte o que me sonha, durmo bem,
melam-se-me os olhos, a boca sossega,
o Gato reina no escuro fosforescente,
venha ou não a manhã verei ou não.

*

Sítios a que nunca fui ou irei
– trouxe escritos.
Em que estive, mas sem lápis
– esse o meu papel.

*

Pai meu que não estás no céu,
a realidade nunca foi o meu quintal favorito,
seu sim, onde os animais nos eram de sangue,
irmãos que até hoje religião alguma agremiou.
Mãe minha que à terra restituímos,
esta trangalhadança horária suja as cortinas,
ao vão – que em vão, não – janelas abro,
vejo a senhora nas pequenas coisas, lácteas todas.

(…)

GEOPOLÍTICA tipo PEDIMOS DESCULPA
POR ESTA INTERRUPÇÃO – O PROGRAMA
SEGUE DENTRO DE MOMENTOS

Olha, vamos é jantar aos chineses
antes que eles nos devorem.


*

“Fala pouco de mais”
– diz no autocarro, do neto, a velha.

Mais sábio, o neto.

Canzoada Assaltante