31/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 860 (mutilado, por haver partes a dar para o escatológico)

© Garry Winogrand

860

Segunda-feira,
27 de Dezembro de 2021


    Também flatulência é fluência.
    Posto isto, sigamos.
    Os que papagueiam acefalamente que “uma imagem vale mil palavras” – necessitam de palavras para dizê-lo, imaginem…
    Sosseguemo-nos, todavia: o Nada de que viemos, a Nenhures nos há-de levar.
    Hoje, preterizado já o infame natal-de-todas-as-hipocrisias, dei-me (ou vi-me) de novo presa de conjecturas sobre que livro(s) escreverei na próxima anúria, se lá chegar. Tentarei resistir ao apelo diarístico. Lográ-lo-ei porém? Sei uma coisa já: a alternância prosa/verso não cederá vez a qualquer outra rabiscanhice. Só posso ir por ela. Só quero ir por ela. Enquanto se me/nos não dá por adventício o 2022,
    Certo pinheiro-manso, em certo pátio,
    secreta ave que alberga às escondidas.
    Ser Eu é ser nuvem, não é ser sítio:
    já nome de Eu tiveram muitas vidas.
    Sei ínfima a gravura entendida
    por o humano olhar mais absorto.
    Viver, sendo entreter a própria vida,
    só escapa ao morrer depois de morto.
    ’ma lâmina de sol de fura-nuvens
    ’mana de Santa Clara a ocidente.
    E eu só sinto pena daquela gente
    que ladra ao onde-vais & ao donde-vens.
    Raparigas de há sessenta anos
    lendo cativas a Corín Tellado:
    o mesmo fiz eu, sendo ’inda magano,
    lendo o Eugénio & o Torga aqui ao lado.
    (...)

30/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 859

© DA.

859

Sexta-feira,
24 de Dezembro de 2021


Nomes foram enumerados em rol de fala
Conversava-se à mesa já pós-prandial
O céu desceu degraus, é lívida a tarde
Pouco trânsito nas vias, geral aquietação
A carreta do gás-em-botija ainda ronda
Derradeiras iguarias são compradas a contado
Escapatória, não há – sabeis do que falo.

Ontem (qual afinal de tantos ontens todavia?)
Ontem a palavra dada por honra era honorável
Hoje (e só há este, e pouquíssimo dura)
Hoje há que aceitar a desirmandade dela
Eu vou por linhas de minha exclusiva caligrafia
Minha hermenêutica, minha a sós filologia
Agora hei só que aguentar, pagando em espécie.

Um rapaz que sei jeitoso em electrotecnia
Veio comer um pastel-de-feijão, traz uma revista
Vejo-o sempre sozinho, deve habitar águas-furtadas
Tem aquele olhar endurecido das pessoas ditas práticas
Suponho-o imune a lirismos, a rimas-de-palmatória
A revista é naturalmente para engenheiros & engenhosos
Conhece entranhas eléctricas, talvez goste do que conhece.

Falo-Vos a partir de uma instantaneidade precária
Desatou ora a chover, os do boletim previram bem
Espero uma aberta há décadas, que aliás me não dou
O desígnio pertence-me ’inda, mas já emudeço
A autoridade das causas-efeitos é de força
A roupa de cama faz de placenta-possível
O resto é ir purgando, obter o alimento, ser no dia.

É escusado reiterar-Vos que os tais nomes enumerados
À mesa entre vivos, tipo há hora & meia
Eram os de que foram titulares certos já-partidos
Sobre migalhas & copos meados foram enumerados
É Natal, a Bondade anda à solta como a Lebre
Morrões de poalha pluvial obscurecem a vontade
Isto de não ter lareira custa o seu bocadito.

Rui referiu António, Joaquim feriu Jorge
Eu laço as meadas, sorri paraliticamente
Seria outra coisa à lareira, em diverso lar
Pressa nenhuma uso ora em estas linhas
Correr quando se desce não me parece
Assisado ou sensato ou de miolo o mínimo
Sabeis V. bem do que falo & a que me refiro.

Celebrava-se a mesa próxima certa promessa
Promessa-de-compra-e-venda-escriturada
A vendedora da imobiliária pareceu-me feliz
A senhora compradora pareceu-me resignada
O Natal é uma época-de-caça demarcada
Jesus vende tê-dois como Senhor mais nenhum
Alá pode ser grande mas por aqui não se safa.

Seccionaram finamente o tenro bolo-rei
Vinho-do-porto não havia, teve de ser licor-beirão
Fumar, só lá fora, a lei é a lei, não há abébias
Quem mais bem conta uma história era-é-&-será Joaquim
Ambos nos movemos na incerteza, ele um pouco menos
Mas-nada-há-nem-é-como-realmente, valh’a-verdade
No retorno vi um baldio que as lebres conhecem.

Sobram-me alguns dos livros, espero futuros alguns
Também o Natal passa, a caloraça é que não
Leio vaticínios climáticos para anos impossíveis
Estarei decentemente morto, enxuto & esquecido
Este é o primeiro Natal sem António Osório vivo
Não conteis comigo para grandes janeiras
Pertenço já mais a um bocejo escancaradíssimo.

Que conhecemos de a quem chamamos conhecidos?
Quão vero é o que nos expomos a quem nos impomos?
Quantas voltas dá a Lua ao sono de quem não acorda?
E consoará sozinho o electrotécnico do pastel-de-feijão?
Deixo estas questões à V.ª superior consideração
Sei madura a árvore, caduca a folha.

Mesclam-se-me-nos-Vos os tempos, nada mais natural
O da inocência é fósforo, o da culpa é cinza
Demasiados anos hemos dado ao supérfluo
De menos são quantos demos ao essencial
Esta senhora-além redime-se ora a Água & Vento
E eu nada hei a dizer-lhe que não em verso
Cada um vai a matraquilhos com a meia-coroa que tem.

Chamavam pataco ou cruzado à moeda de quatro-tostões?
Armando-Curto, Né-111, Jaime-Bolâmbola, Fernando-Tareco
Nomes que não enumerei hoje à liça pré-natalícia
Como V. disse já, mais emudeço agora
Águas quebram do ar a serenidade respiratória
Intentam as pessoas livrar-se como lebres
Eu é que de livros me não livrar quero.

Só V. digo: se ouvirdes Beethoven, escutai
Algum homem ali anda a sós consigo só
Mesmo que de extensos naipes se enriqueça a orquestra
A voz é uma só – & a sós tremendaterrivelmente ela é
Bacalhau, faz-se de mil maneiras – mas só de uma se come
Estou contigo, perdão, conVosco na aberta possível
De ano para ano tenho notado um ano a menos.



29/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 858 (conclusão com IV inconcluso)




IV


Lembro-me de ter andado na tropa traçando azimutes
A cartografia da minha vida deu entretanto outras bósnias
Não andei colonialmente resistindo a turras
Nasci demasiado tarde excepto para morrer.
Há um único jornal-de-letras na minha aldeia
E ele é todo dedicado a fressuras-de-peixe
E se eu precisar hoje de mãe, não tenho Mãe
Só em versos a tenho, Poesia é não ter mas fingi-lo mais ou menos bem.
Tenho comigo a Cabra de Daudet & a de Osório
O verso anterior é só para sócios
Não consigo perceber por que não conversamos
Eu ontem tentei, falei de The Police no Restelo em 1981.
Mas a pergunta é & persiste: onde está a Sinha?
Onde a bondade existe, para onde se desfaz a cinza-pessoa?
Nunca mais volto/sou ao prédio de Junho/1965
Olha, está por aí alguém que me leve ao colo?
Olha, foda-se, parece que não
Apagaram as luzes, olha, ninguém vê.
Diz-me, Maria, em campo fresco
Como redigo à minha Mãe o ser seu filho?
Como aguento ora esta realidade
Estes muitos-livros-nada-p’ra-ler?
(…)


27/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 858 (I a III)



858

Terça-feira,
21 de Dezembro de 2021


I

É-me imperioso recorrer à imaginação
Face a uma realidade que me sobreveste
R-existo como posso à dissipação
Intentando escrever alguma coisa que preste.
Conheço os rostos desfeados pela escassez
Tisna-os a oxidação, o avesso horizonte
É provável a extinção, o irmo-nos de vez
Já fui bem menino correndo um monte.
Talvez ’inda volte, ali à Estação Velha,
A tomar o comboio rumo à Figueira
Mora-me lá um Tesouro, é a minha Filha
Pode ser que a reveja, dulce & fagueira.
Já folheei o jornal, não tem remédio o mundo
Vi da Necrologia os rostos esbatidos
Deus é impossível mas o Diabo, fecundo
Demora mas abate todos os nascidos.
Um gato mimado a varanda chora-voz
Os donos trabalham, deixam-no a sós
Ele era da selva, ora o seu domínio
É a prestações pagas ao condomínio.
Interditámos aos animais a plenitude
Criámos betão & um sistema de saúde
Não mais o mamute nem o amor feliz
Eu corria um monte quando era petiz.
Não, Maria, não te entenebreças
Faz por labiar quanto açúcar mereças
Não, José, não te rendas às massas
Que elas são de ordeiras previstas desgraças.
O formigueiro chinoca avassala o futuro
É a negação do sentido humano
Só se fala em vacinas, erige-se o muro
Entre cada ser, coisa do catano.
Depois de escrever, conversei com dois amigos
Foi ontem à noite, já assaz chovia
Por assim dizer, foi o meu ganho do dia
Cerradas janelas, cerrados postigos.
Vem à cafeína um operário-pintor
De roupa manchada do ofício & arte
Que o alimenta em bulício & vigor
Tenho uma sobrinha-neta Carolina Zuzarte.
Poucas vezes me chamaram a lar de lareira
Já aconteceu mas há muito que já não
Eu pus-me a jeito, é da bebedeira
Com a que desvio rumo & condição.
Adeus até nunca, ó Chico Morais
Adeus até sempre, ó Guilherme Pais
Vigora em mim certa arte perdida
Que morrendo tem nome, sendo este vida.

II

Conheci o rubro-d’oiro outonal em abandonada vinha
Era lá por Val’ Forno, descia-se a terra
O quartzo minava lâminas oblíquas de calcário
Era o meu faroeste, sendo eu feliz como um pária.
Giestava-se rociado o mato silvestre
O musgo orvalhava um bafo de anjos
Eu rimava com a vida, tudo era de saúde
E mesmo sem livros o mundo era legível.
Conheci depois o advento da minha vida escritória
Pus-me exercendo titubeantes sintaxes
Uma certa inocência, julgo não tê-la perdida
A culpa veio com o desejo, o diabo-de-saias.
O Jorge morreu em ’86/XX, esfumaram-se as cores
A paleta das coisas borrou outras mesclas
Somos de mãos semelhantes, tenho uma que escreve
A outra segura as lembranças, agarrada ao papel.
Gosto do que compuseram dois Portugueses
Um, Pedro Homem de Mello; outro, Fernando Lopes-Graça
É fortuna saber alguma coisa, para quê negá-lo?
E quando ao mesmo, Amadeo; & António Fragoso.
Já não peregrinarei qualquer Noruega terminal
Hei-de morrer por aqui, exaurido & lusitano
Sim, eu hei-de des-ser, coisa do catano
Que fará sem mim o mundo? Pois a mesma coisa-nenhuma.
Parece rumarmos todos ao Ano-2022-d.C.
Mas o jornal de amanhã negá-lo-á convictamente
Em Arganil, Pampilhosa, Pombal, morre gente
E a que não, come pão, ou não come, é conforme ou com-fome.
Recordo ter tido um carro branco, era o meu cavalo
E eu era o príncipe possível, tipo Walter-Scott-Ivanhoe
A minha Escócia de era então a Vila do Louriçal
Que fica ali resvés passado-futuro.
Não posso, não devo, nem quero levar isto a salões
A quem interessaria uma tão frugal poesia?
A ninguém. Somadas as despartes, a ninguém
Passo a Consoada com um gato, toma lá que é broa.
Nem sempre assim foi. Já houve gente em a minha vida
Resiste hoje como pode o pequeno-comércio
Ao luzeiro tonitruante dos hipermercados
Mas desde que haja bacalhau, novos-mundos-ao-mundo.
Quem me dera, Maria, ser rato-de-biblioteca.
Ter ratice, ter biblioteca
Ser, José, como os que são
Não só como os que mer(d)amente estão.
Conheci (ninguém mo tira) o Outono em minha primaveril idade
Destinou-se-me então a perseguição de linhas
Que digam flavo o que é fulvo
É-me imperioso recorrer à coloração.

III

De brônquios obstipados, um cavalheiro
Tosse ganâncias-ânsias respiradoras
Vejo-o arfando pus dos cavernames
Nada dou por ele já, que tosse coisa má.
Prédio amarelado-baba-de-camelo
Alberga certa senhora muito branca
Que eu não enjeitaria bárbara-escrava
Desejar é o Diabo-Começo-Acabo.
Esquinas-rosadas-tipo-borgesianas
Tomam também meus ângulos ledores
Padeço de atenção – & de estertores
Que me duram décadas & até semanas.
Ainda não aprendi a d-existir
Talvez uma monção me varra d’ água
Gosto da bebedeira-aérea das andorinhas
Gosto do vento-à-bruta, não d’estatísticas.
Torno universal a minha materAvó Cândida Leite
Ela existiu como um penedo promontório
Ante o oceano inverosímil do nascimento
E da descondição da mulher em 1903.
Sempre V. digo uma coisa:
Que estranho é escrever 1903 em 2021!
Como pode ser? Que é desfeito de Cândida Leite?
Sei-a inumada em terra-patrícia, lá onde o meu Jorge.
O meu Rui, não
Desfez-se na Amér(d)ica
Nem pele de tangerina cheira
A que foi o meu Irmão Rui.
Deu-me um relógio de horas fosforescentes
Comprado na ferrogare de Bordéus
Certa vez que retornou a casa
Solteiro & perdido de livros que nunca leu.
Contei recentemente a JoaKing Jorge Carvalho
Certo episódio epistolográfico meu com meu Rui
Gerámos ambos consentânea risota triste
Que triste achamos nossos Irmãos não lerem Pessoa.
Isto de ser um bêbado-de-qualidade
Tem pouco-nada-zero que se lhe diga:
A pessoa naufraga em ilusória liberdade
& não há caralho de pessoa sua amiga.
Rosáceas de templo, madrigais bucólicos
Muito Rodrigues Lobo & Inez de Castro & alcoólicos
Peneirando a mera impura sobrevivência
pois que nunca o nascer foi uma gaia-ciência.
Onde a cozinha granítica para que me não chamam já?
Onde o Natal exasperante dos cães-vadios?
Onde a Noruega? Onde os grandes frios?
Onde o Gil Vicente em ieramá?


26/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 857

© DA.


857

Segunda-feira,
20 de Dezembro de 2021

    Porque lido, isto tem de estar escrevendo-se no passado. Nada mais volúvel do que o presente. Julgo mesmo que o futuro é massa de olvido. Raciocino assim enquanto permaneço (permanecia; permaneci) em uma sala-de-espera. Cidadãos mascarados em assentos alternados. Suporto a espera nada desejando. Decoração azul-cinza, asséptica, sem arroubos líricos nem folias épicas. Batas brancas como nevões verticais.
    Lá fora, o anoitecimento vindo com água no bico. Escrevo de lentes irritantemente embaciadas. Não sei se me vão demorar ou quê. Suporto a espera, faço sala. Não há moscas com que entreter o olhar. Também não é de bom-tom adormecer, cochilar de boca aberta, pingar uma estalactite de baba. Talvez me atendam de seguida, já não são muitas as pessoas aqui de senha distraída nos dedos absortos.
    Talvez depois disto me dê a uma volta pela anoitecida cidade-patrícia. Sempre pode ser que algumas coisas queiram tornar-se literatura. Costuma acontecer. Verso ou prosa, pode ser que algo queira ser linha. Já nem sei se ontem escrevi alguma coisa. Julgo que não. Vi um documentário que versava certo acontecimento de Outubro/1984. Chamam o meu número-senha. Não, era engano. Tem prioridade o número anterior, a funcionária enganou-se.
    Pessoal da limpeza em acção na outra ala do piso. Mal pagas, resistentes, viventes, vivaças, anónimas. Uma das mulheres, alta como um foguete largado, não deve ter mais de vinte anos. As outras duas há muito fizeram quarenta. Já desapareceram, tragou-as o elevador-de-serviço. Nisto, chamam-me, confundem-me com o senhor meu Pai:
    Por aqui, senhor Daniel.
    Tomam-me um quarto-de-hora, liberam-me em despacho, vejo-me na rua mais perto de mim que Coimbra tem de repente para oferecer-me. Tralha natalícia por todo o lado: mais folclore de cristandade que prática de cristianismo. Largo-me à aventura, que à ventura não é tão fácil. Não se me desdaria jantar fora hoje – não o farei todavia. Andam ruins os tempos para extravagâncias, por mais pobretes sejam elas. Não tem mal.
    Entre rua & largo, dei-me caligrafando mentalmente a consciência autocrítica seguinte: sou nostálgico desde menino. A genética terá talvez alguma coisa a ver com tal evidência. Talvez tenha, sim, um pouco. As outras vicissitudes circunstanciais da criação – também elas concorreram para tornar-me alguém desconfiado do essencial absurdo que existir, pelo menos até hoje, nunca deixou de ser. E desata a chover com algum respeito. O televisor ladrou ameaças de intempérie generalizada no continente. Nas Filipinas, muitos mortos. O costume, enfim.
    Duas vezes me pediram moedas hoje. Não tabaco. Nem sonetos. Moedas – foi o que me pediram. Os pedintes de quando eu era menino, esses não pediam por ou para heroína. Alguns, para comer. Outros, para beber. Mas não por/para droga. Os meus dois de hoje amarelejavam de hepática desagregação. Não tem mal. (Tem, mas não faz.)
    Ainda não há-de ser hoje (mas leia-se ontem) que resolvo o caos mundial. Paranóia panviralvacínica. Natura tornando areia o que era água, água o que era pedra, lume o que era ar, excremento o que era evangelho. Isto fica por escrito & proscrito. É uma segunda-feira coimbrã, eu tinha hora-senha-marcada para certa sala-de-espera, acudi à convocação, que à vocação não é tão fácil. Começa ora a pensar no regresso ao Gato.
    Começo ora a pensar no regresso ao Gato.
    Partilho tempo-espaço com um gato, somos a mosca-no-autocarro.
    A Mosca-no-Autocarro: duas vezes indo no Espaço; quantas no Tempo?
    Tenho outros gatos & demais cães na ideia.
    Nenhum era-foi-é-será Este.
    Um homem cego entra no comércio em que tomei assento.
    Não é pedinte, não é heroinómano, trabalha numa farmacêutica.
    Não sendo porém careca, rapa-se glabramente o craniano capacete.
    É mais novo do que eu: não muito, mas é, é mais novo.
    Ele guelreia frases de outra luz, uma só dele.
    Às vezes, as luzes coincidem: entendemo-nos entre videntes.
    Não previdentes. Videntes. Às vezes, entre entes diferentes.
    Não estilhacei hoje dinheiro pró-heroína-pedintes.
    (Cá dentro, chateia-me tanto o não ter dado quão o terem-me pedido.)
    Ouço um saxofone de banda-de-casino.
    Ouço-o no meu tempo agora-nunca-mais-hoje.
    Fui com o Armando J.O. + Duas Senhoras ao Peninsular.
    Veio champanhe, dançámos os quatro (2+2), as senhoras não eram de aluguer.
    O homem cego trouxe consigo uma lata de spray antiparasitas.
    Ele diz a quem está: –Tenho de acabar com elas.
    Ele di-lo femininamente, ele lá sabe.
    Não é o dizer dele que é feminino, é o vocábulo pronominal.
    Nenhum de nós sabe se verá outro Natal.
    Ou sequer se verá este, que dias faltam para a ilusão-do-cristão.
    Estou aqui no passado assentado na minha sala-de-espera, digo, na minha caligrafia.
    E ontem há-de ser um outro dia.

24/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 856

 


856

Sábado,
18 de Dezembro de 2021

    Pessoas progridem no tempo-espaço de cariz local, um pai brinca com o filho no patamar do prédio, um cavalheiro encanecido lê o Diário de Coimbra muito devagar, um rapaz cego tirita de alumínio passos a bengala medidos, subimos todos ao grau chamado Meio-Dia.
    Sorri esta manhã, muito cedo ainda, à evocação involuntária de uma palavra dita por alguém que já não respira. Tem-me acontecido mais vezes: a mesma palavra, a mesma pessoa, a mesma autoridade da ausência física. Já não estou sorrindo.
    Ontem, dia do 28.º aniversário da minha Leonor, deitei-me cedo & não adormeci tarde. Despertei sem auxílio de máquinas. Almoço hoje com ela. É hora-boa em boa-hora, portanto. Vesti a camisola verde-marinha que comprei em Pombal no Ano 2002 d.C. Era então Outubro, se não erro.
    Camisola de verde-marinho, calça azul-ganga, sapatos pretos, casaco castanho-escuro: vou taful ao encontro da Menina. Levo-lhe um disco de Astor Piazzolla y su Quinteto. Tem 28 anos, a minha Nina, parece impossível, onde vai o Dezembro/1993?, parece inverosímil.
    Pretendo tão-só ser de um ócio transitivo, que resulte em complemento. De meus pretéritos falhanços, a lição aponta para melhor pontaria. Nada (enfim, não) de muito grave. Ou, como diria o velho Steinbroken, nada de “excessivement grave”.
    Outra coisa de que me tenho dado conta: a minha prosa mais recente tem sido (tangencialmente ao menos) de feição epistolar - só não nomeia vocativo-destinatário. Enfim: falar-sozinho é de-doidinho; escrever a sós é esquizofrenia-de-voz.
    Ainda se me não adentrou cabal ou violentamente a evidência da incomunicação. Persisto crendo na possibilidade de alguma palavra em trânsito-julgado. Não penso que seja quimérico, histérico, utópico ou estrambótico crê-lo. (Mas se o for, paciência.)
    Um adulto já avô conversa com aquele menino que há pouco, no patamar, brincava com seu, dele/menino, pai. A criança descansa assentadamente na bola de couro: cr7 ainda sem direito a maiúsculas. É a infância a pertencer-lhe, mal ele sabe o fósforo que risca.
    Um amigo de há tempos tem-me, penso eu, em conta de “pouco actuante”. Lá terá ele sua razão de pensá-lo. De facto & deveras, o meu palavreado não resolve candentes pobrezas, pensões alimentares, destinos cósmicos nem boleias para festivais de música. E pur si muove, como se diz que disse o velho G.G.

    Nenhuma fronteira reconheço ao pensamento.
    A linha litoral desconhece veraneantes.
    À Natura, tudo indifere como era dantes.
    Mano tinta & lápis para meu alento, ao vento.

    Subo descidas como quem nasceu - é de lei.
    Subiram prédios novos onde era o monte.
    Resisto ao estreitar do vão horizonte.
    Se resulta?, não sei – se adianta, não sei.

    Pertenço meridional a um desejo de norte.
    (Eu disse de norte, não pulsão-de-morte.)
    Uma senhora de azul vem ora cafeinar-se
    a mesa remota, é prudente afastar-se

    nestes covídicos-tempos (tão chinopanvirais,
    que espirrar é pecado daqueles mais mortais).
    De mais penso sem querer no que ainda creio:
    às vezes ser lúcido é horrendo & feio.

    Senhora bem cavalheira
    Que o trigo imita em luz
    Pelo Natal de Jesus
    É bela, queira ou não queira

    É bela, queira ou não
    A senhora cavalheira
    Bela o queira ou não
    A senhora jesuseira.

    E quem de prosa mais ou menos legível passa a versificação sem encomenda, mote, destino ou remédio? I do. Havia aqui, houve aqui, perto de onde (de momento) escrevo, um restaurante-chinês. Foi dos primeiros a haver nesta equívoca globalização. (E globalização, hélas!, significa: falência da dupla GB/EUA, anacronismo da Rússia & império da desumanista China, senhores.) Mas que em verso se tente ainda:

    Ao alto da Sereia de Coimbra
    A luz parece justa & humana
    O arvoredo dá uma sombra linda
    Já era então assim há uma semana.
    Em rancho de eira-espiga-vermelha
    Moçoilas aguardam lei de Natura
    E qualquer nascimento que aí venha
    Virá da forma mais bruta & mais pura.
    O Bruno tem o carro empancado
    & a Sónia não acaba a secundária
    O Carlos foi há pouco operado
    & o resto é bossa-nova-dromedária.

    Houve nesta Cidade uma mercearia a que minha Mãe acorria quando, poder, podia. Era na Visconde da Luz, a de Coruche antigamente. Recordo essas dela saídas-a-abastecimento. Levava a Senhora dinheiro contado. Ela lá sabia como abastecer o quartel em que se lhe volvera a prole. O Velho dizia: Ela torna elástico o dinheiro. Certa ocasião, no Verão/1974, perdão, no Outono-Lectivo-1974-1975, lá fomos. À de/do Coruche, ainda hoje do Visconde da Luz. Ao balcão-bar, comi um cachorro-quente com uma laranjada. Ela tomou café com pastel-de-nata. Lembro-me disto agora porque sim: estou prestes a almoçar com a minha Filha, faço eu de fornecedor de cachorro-quente, nata, alguma bebida fresca ou quente.
    (Ao contrário do que possais julgar, trabalho em profundidade et prosa et verso: não, não facilito; periclitar, periclito; mas não facilito.)

23/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 855


855

Quarta-feira,
15 de Dezembro de 2021

    Vou procedendo à filologia de cada dia & à hermenêutica de cada ano em conformidade com o que me é possível, escreventemente falando. Na corrente manhã decembrina, saído ao mundo de fora-casa por razões pró-documentais (uma das quais, dinheirosa), assisti já ao aparato, função & passagem de um par de mulheres automovidas a testemunho de Jeová. Velha & nova em solene propaganda de uma bíblia parcial. Ar de canídeos batidos pela rejeição. Elas lá vão, que o seu evangelismo americanóide as guarde em saúde & cegueira. Ao panorama cinemático acorre depois uma segunda velha. parece titubear como modo-de-vida. Parece também precisar de orientação, não sei quanto a que destino – mas, nisto de destinos, alguém sabe seja o que for?
    Babujo literatura, pelo que nem faço por repelir certa apocrifia observatória. A manhã, aliás diáfana, refresca de laranjeiras de beira-rio o olhar-escrito. Encanecido, meão de estatura, um doido-manso carregado de esferográficas invectiva o caos disciplinado da existência colectiva. Frente, trás, vira, volta & e reviravolta, é incessante a sua marcha cá-lá rés à amurada fluvial. Autocarros amarelejam o trânsito. Ainda se vê alguma mocidade ao ar & à luz: e dela o esplendor gracioso, imediato, intransigente & fácil.
    O Pai-Sol, maior aguarelista de todos, campeia soberano sobre a realidade total. Bandas de Castelo Viegas, Pereiros, Assafarge: mais laranjeiras, vivendas discretas, Mato tratado, um gato negro na paragem-bus. A minha atenção, livre de quaisquer constrangimentos metodológicos, diplomáticos ou heurísticos, extrai lição da Geral Beleza Distraída do Mundo. Quanto vejo, é Portugal até o tutano. Ao alto que é Banhos Secos, mora meu primo-direito Joaquim Abrunheiro Costa. Saúdo-o em rumoroso silêncio & invisibilidade à passagem cercã de sua casa. Já em postal-ilustrado se me abre a colina académica que a Cabra encima & coroa: bonito morredouro-de-anónimos, esta Coimbra ímpar.
    Tenho a manhã pragmaticamente resolvida. Custou-me esforço nenhum tratar da minha miudeza hodierna. Ando lendo Aguiar e Silva (sobre Camões) & Ian Watson (pretextando Tchekhov): boníssimos livros de diversa confecção & diverso mote. Um canichezito, de envergadura porta-chaves, ladreja, muito mimalho, a uma realenga pomba, a qual não liga pêva àquela miniatura de quadrúpede. É um quadro giro, sem violência nem escândalo. Distraída, a dona do rafeiro smartphona vulgaridades de reality-show a uma qualquer estúpida sua homóloga. Divirto-me sem precisar de gás-hílare nas trombas.
    Leitor fidelíssimo que sou de uns quantos titulares da Literatura-Comme-Il-Faut(-Da-Se), não me inquieta (juro que não) a realidade indesmentível & indesmentida de poucos leitores angariar quanto escrevo. Tem cada cão as pulgas que merece – nem menos, nem mais, nem sequer assim-assim. A uma varanda (muito) alta da Rua Cidade de Santos, um gato chora aflições ciosas: já a proximidade de Janeiro lhe desconcerta as hormonas, avento eu. Cor-de-camelo, assenta-se próximo da minha mesa um casaco de senhora próspera. Abatanado & copo com água, adoçante em vez de açúcar. Tez suave, feminil sem rímel, labiação sem lacre, olhos amendoados a teor de avelã. Dentes naturais. Sapatos de um castanho-avelã-também. Talvez sessentas & picos de nascida – minha puta-perdão-tiva noiva, pois. Sereno, serenamente, o Mondego, a humanos indiferente, corre sem pernas, voa sem asas, vai entregar-se à Figueira que por ele é Foz. Brilham oiros hialúrgicos: o Sol nas vidraças. Alta, a Conchada. (Da Conchada, morreu há dias o Carlos ‘Pirilau’, 62 anos, figura típica da Cidade, contemporâneo do ‘Pipi’, do ‘Taxeira’, do ‘Tatonas’, do ‘Maló’, do ‘Zé da Gaita’ & da dupla ‘Pedro/Adelino’.)
    Este é trecho de meu cancioneiro, meada a semana.
    Caladinho, atinadinho, sinto-me olímpico em pista.
    Fala-se de leitões da Mealhada & de aléns-da-Taprobana.
    Perder não é ilusório: ilusória é a conquista.
    Comenta-se o preço do polvo, a avinhada chanfana.
    Dourado no forno, o cronogalo-de-crista.
    Dizem que o Man’el Pinho sempre foi de cana.
    E esta semana joga com quem o Boavista?
    Na brincadeira (mortal, mortífera), é já meio-dia há três minutos. Ouço conversar. Gosto de ouvir conversar. Não tanto para saber o que se diz mas sim o como se diz. Chavões da linguagem, vícios da fala, clarões de sentido, lâminas retóricas. Gosto. Até em imo-silêncio tenho gostado & degustado – desgostado também, p’ra ser sincero, mas isso calha, faz parte, é o Diabo.
    Um papel seja luz em vida-treva,
    descreva de outro modo o que for comum:
    e que, a nenhum sentido, traga algum
    – tal louro para quem a tal s’ atreva.

    Babujo literatura sem atalhos
    de teclado electrocois&tal.
    Vejo-me hoje envolvido em trabalhos
    que eu poupara se ’té fôra mais mental.
    
    Ilusão nenhuma: par namorado
    beijoca-se borboleteando-se:
    & os tempos só se andam andando-se:
    quanto se move, há-de ser parado.
    
    Vi hoje sítio com nome de santa
    (que d’Filomena é, lá na Portagem):
    uma Dona Maria, que era Infanta,
    nome deu a Liceu, p’ra compostagem

    de quantas reses-simples-ai-liceais
    usaram tais fáscio-aposentos:
    também nós, velhos, temos nossos momentos
    – & nem todos resultam historiais.


22/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 854

© DA.


854

Sábado,
11 de Dezembro de 2021

    Noite de sábado já em curso. Não há, que eu saiba, baile hoje no Coimbra Clube. A Baixinha está, que me conste, morta – morta, ao menos, a de um tempo aqui apenas assomado por referência a sábado-noite-baile-Coimbra-&-Clube.
    Só de palavras disponho para assentar este real-imediato-meu: nem vou ao baile, nem de viagem. Não hoje, digo. Não faz qualquer mal. Se não forem entretanto rasgados ou queimados, talvez estes papéis me sobrevivam (fisicamente) alguma coisa. Não alvejo nem almejo tonta eternidade: António Osório (grande, gigante) morreu no passado 18/XI/2021 – e ninguém sabe dele. Etc.
    Durante as horas diurnas, informei-me de crimes avulsos cometidos em solo francês. Entretiveram-me manigâncias de humana imundície mental & comportamental. Como nem uma mosca mato, fácil é compreender o meu entretenimento.

20/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 853

© Garry Winogrand



853

Quinta-feira,
9 de Dezembro de 2021

    Felizmente infinitos, os estudos (mormente literários) a que dedico o melhor do meu tempo têm sido segura escora dos muros que rodeiam o quintalório da minha vida. (Digo infinitos os assuntos em estudo, não o estudante…)
    Pecam decerto por descontínuas e avulsas e impublicáveis toda a caterva de papéis & toda a panóplia de lápis que tenho sacrificado a tal obstinação. Não faz mal.
    Este início de tarde, de glauca luminosidade em charcos espelhada, atrevi-me um pouco a ir congeminando especulações sobre esta & aqueloutra obras literárias portuguesas. Considerei a singularidade absoluta de gente-escriba como Cesário Verde, na poesia, & Raul Brandão, na prosa. Fulminante & estrépita como rastilhos chineses, uma revoada de pombas convocou-me a distracção prazenteira. Desconheço quantos anos (se alguns) poderei ainda dispor de meu existir para estas interacções: Cesário agora, já a seguir catorze pombas, etc.
    Na precedente manhã, consegui conciliar um fim de leitura ( a de O Irreal Quotidiano, de José Gomes Ferreira) com outro tipo de currículo a que venho dando horas no intuito afinal puro & afinal simples de ganhar uns euros honestos. Procedi depois há manobras de cariz higiénico, têxtil, alimentício & épico (apanhar o autocarro, esta derradeira).
    Filologia, latas de conservas, hermenêutica & remarcação da vacina-antiCOVID-19, não se me opõem: justapõem-se antes sim.
    É ora já madura a tal (esta) tarde. Espécie de incerteza antecipada me tem vindo: a de, por este ser diário/diarístico, que livro apor, por seguinte, ao Parnada Idemuno. É coisa (em) que não penso de (uma) vez, antes sendo matéria de lapsos/relâmpagos mentais. Entretenho nisto uma boa porção dos meus subquotidianos (chamo-lhes assim por me não parecer mau chamamento). Sem a mim mesmo querer exautorar ou infirmar-me, resolvo o mor das vezes em verso certas flutuações que, em prosa dirimida & dirigida, mais labor me custariam - é que, pelo verso, posso ser lacónico sem parecer (tão) inconsistente. Vejamos, pois, se demonstrá-lo posso ainda, dadas que são já as 15h 48m da Quinta-Feira-9-de-Dezembro-de-2021:

Maná de em-moda-puta-masculina
infesta, das artes patrocinadas,
escol de coisas a-cu-subsidiadas,
pois tal a bem-pensância determina.

Meu entretenimento é diverso,
converso com fantasmas d’outra espécie.
Sou frívolo mas d’outra superfície,
’té hoje ’inda não verguei o torso.

Mil desencontros & mil desconversas
tracei, qual toda a gente, em minha vida.
Não por isto esta está perdida,
sem mansas as falinhas ou conversas.

O mais é que muito me tem morrido
gente a cuja fala e eu chegava
em espécie de alegria de nascido
no intuito de falar com quem falava.

Sem retorno, encaneço: sem retorno.
Nascer nos tira bilhete-só-d’-ida.
Ora dizei-me não-desabsurda a vida!
Dizei-ma valendo a ponta d’um corno!

Velho-moço-Rimbaud-o-Africano
+ o-da-bigamia-Victor-Hugo:
& as tintas Parker/Pelicano
& ainda a morte vir por anti-jugo.

Calada galeria da Conchada
(que em Coimbra vale por cemitério)
a V.ª paz gerreia tudo & nada
– & torna irrisório o que era sério.

Já li O Irreal Quotidiano.
E de Joyce o Ulysses li também.
Li O Mal que Vem do Velho Oceano,
que até agora foi escrito por ninguém.

Se p’lo Sena, fiel camoniano,
eu enveredar coisas que não distinga?
Então não é do Jorge, é da pinga
com que embebo hora, dia & ano.

Fidelidade a estudos literários
& certo caninismo ante gatos:
de tudo tenho um pouco, que sou vários
como é heteronímia de ratos.

As pessoas que são cá da minha aldeia
andam todas literais, sim, aos papéis.
Nem todas desistentes (ou daniéis…),
só sei que o mor não faz a coisa por meia.

Não quero diminuir Natália Correia
nem subestimar o Ary dos Santos.
Contexto é contexto, nem faz ideia
o que passaram poucos entre tantos.

Tento mesclar, voltando à origem,
renegociar falas (…)

19/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 852

© DA.


852

Terça-feira,
7 de Dezembro de 2021

I

Altiva humildade me congraça
a soledade por modo-de-vida.
Tenha ou não tenha, faça ou não faça,
traça a vida à vida que é devida.

Cavalheiro de lã esfarrapada
crava-me um cigarro a esta esquina.
Dou-lho sem pensar em sequer mais nada,
sempre é poupança feita em nicotina.

Se assento meus arrais sem mor plateia,
devo-o tão-só ao discreto rebuço
com que encapuzo o existir humilde.

Tento não beber de mais: é coisa feia
que embranquece a razão & apreta o buço.
Depois a Amélia diz-me de Matilde.

II

Sei hoje menos durázia a eternidade.
Morreu o Tó-Zé de Trouxemil, nada lhe dói.
Adiaram a eutanásia por desvontade
de Marcel Kid, nosso sheriff-cowboy.

Ontem, a (des)propósito do ex-Cabrita,
certo fulano ladrava asneiras politiqueiras.
Estive vai-não-vou para armar fita,
mas calei em meu imo adidas asneiras.

Não é fácil seguir amando-te, Belisa.
É cru eviscerar-me por sonetos.
E tu, Belisa, és velha, já tens netos.

(Repetindo o terceto, kaputt ao soneto.)

III

Há uma demora cá na minha mente,
que é de em companhia ir ao Raul
da Leitaria que havia, intransigente,
de quem rumava Arcos para o mais sul.

Por Este Rio Acima ’tão saíra,
que era obra de disco permanente.
(Esta décima é linha de gente
que atira-atira-atira-atira-atira.)

Ia acompanhado de senhora
que mui mais anos foi de dar notícia.
E eu digo em meu soneto, sem malícia,

que era linda a senhora tão Senhora.
Do mais atributo de camonianos,
entrego sanitário a meus canos.

IV

Onde vou eu buscar-te, se demoras
a ser um leito-limpo-companhia?
Onde vou eu biscar-te a desoras?
Não vou. Aliás, a minha Avó dizia…


 

18/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 851

© DA.


851

Segunda-feira,
6 de Dezembro de 2021

I

Afinal sereno amor consagro 
à substantiva vida ramerrónica.
Mormente sou de chapar a tónica
a estilete de vocábulo agudo & magro.

Doidejo sem humano malefício alheio
por entre bípede arvoredo sem capuchinhos
nem lobos maus. Já o grau dos vinhos,
esse sim conta a total & de permeio.

Sou alegremente infeliz como toda a gente.
Frequento salões só de um criado poeirento.
Vezes há em que nem sei como me aguento,
assim estacando em lentidão & de repente.

A devoluta infância não tem de si retorno.
Envelhecer tem de si rijezas de corno.
Fétidos miasmas de outrora doces situações
infestam enxúndias manhãs do colete aos calções.

Uivantes longes-luzes de ambulâncias
malinquietam o esplanado óciopoeta.
São como males-de-família: useira peta
com que nos mentimos vilezas & distâncias.

Trovo pouco impante esta poesia
que nem é tropical nem estufa-fria.
E a mais que vier há-de ser rasura
de quanta não menti à literatura.

II

O amor que lhe tenho, senhores, não pode
dar volta de chave a casa devoluta.
E se acaso falho, quem de aí me acode?
E se quem me fala nem sequer me escuta?

Não descuido por enquanto o estar vivo,
que ele há ocupações bem piorzinhas.
Não gosto é de suar estopinhas
nem de ama sem amor ser cativo.

Que lhe tenho a quem, senhores, a quem?
Não é a quem mas a que, isso sim, senhores:
à vida o mor das vezes malvivida, Mãe!
Ó Pai, à vida sem fraldas nem pundonores!

Sei hoje contornar espécies malextintas,
aviar necrologias, topar o melhor bacalhau.
Nunca fui só Português de meias-tintas:
isso é que não, e isso é que sim seria mau.

Abateu-se sobre Coimbra um céu de cinzas
de águas todas desfeitas em chã poalha.
Gosto d’invernias! O céu a quem o trabalha!
Se sou nisto vero? Sou-o sim, mas

nem toda a gente é ré do mesmo mocho.
Boníssimo homem, meu Pai. De uma perna coxo,
purgou sem Deus nem maior literatura
um amor sem remédio por a Pintura.

III

Estou sentado em a minha orfandade
como quem foi ali-ali-sem-promessa-de-voltar.
Dou voltas de peão por esta mesma Cidade
que Portugal é todo, assim por modo de falar.

Poeticamente, tenho tido poucas auditorias:
mas eticamente, sofri já muitas julgadorias.
Conheço muitos aveiros, viseus & leirias:
mas o mais nem é autotropicai’stufas’frias.

Estou alapado em a minha mediocridade,
que a idade já não é sã-juvenil.
Peregrino voltitas p’la Cidade.
E morreu o Tó-Zé de Trouxemil.

Merdeticamente, tenho ido por muitas vias:
mormente calado ante idiotas.
Juventudes partidárias (vulgo jotas)
são prolepses de baba bolçada a pias.

Cresce a erva sob o carro abandonado
na rua que dá face a um baldio.
Foi já novo & bebé tal Renault Clio,
agora está ali morto & de lado.

E o Thierry Le Luron da velha França,
essa que já não é farol-d’Europa?
Art.º 16, não pode tropa:
a vida é muito brava, não é mansa.

IV

Tenho sofrido atenção ao que se passa em Angola.
O Sudão também me interessa, mas é mais calorífero.
Preto ou menos branco, o humano é mortífero:
não lida bem c’a vida, bate mal da tola.

E rezar sem ler? E ser de Coração de còr?
E perseguir a branca núbil só porque sim?
E ter um jesus-ai-de-mim semeado no jardim?
E ser anafórico? E eufórico? E melhor?

E falar com Margarida? E ser ultra sem suor?
E ser de uma música tocada p’ra ninguém?
E nunca, à Língua, tê-la tornado melhor?
E ser atento a sós sem Pai nem Mãe?

14/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 848 (fragmento)


 

848

(...)

    Da minha geração, as pessoas de limítrofe nascimento podem ainda ressabiar – e até saber – quão quero dizer. Das smart-gentes-phones-novas, nada digo. Vejo-as em o meu autocarro zombieando nuvens-drives que USAmericanos deram de cu-aberto aos Chineses. Morreu o Tó-Zé de Trouxemil, afiança-mo o Diário de Coimbra. É estranho. O meu Pai também veio no Diário de Coimbra – mas não por ser exímio pintor-hagiográfico, não, foi por ter morrido. A minha Mãe também veio – e pela mesma curial (ar)rematação necrológica.
    Da minha geração, o mor do pessoal tem lareira, netos impertinentes, gatos ineducáveis & uma apetência de morrer fundamentada na enésima reaudição do Dark Side of the Moon. Sou o único da minha geração, todavia, a fumar este cigarro em efeméride da morte física, a 18.XI.2021.d.C. pretérito, de António Osório.
    Era filho de Mãe Italiana. O Pai? Nosso. A Mãe? Italiana. Leio muito o Filho. Por assim dizer, faço de Evangelista: prefiro o Filho a um Pai que desconheço. E que me abandona, como todos acabam fazendo: ou por terem vivido, ou morrido, ou nascido p’ra nunca mais.

13/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 847


847

Sábado,
4 de Dezembro de 2021

    Pode o dia ser árabe; o mês, romano; e cristão o ano: 4.XII.2021 d.C.: mas o corrente Sábado é ateu, pois que meu.
    Saí, a meio-gás funciona a Cidade, não registei atropelamentos nem escândalos afins. Pressurosa, aformigada, a espécie faz de sacos-víveres pela vida. Nem patranhas-de-natal, nem comédias-de-fura-riso: é utopia designarmo-nos, a nós mesmos & enquanto género, human’irmandade. Nenhuns irmãos, humanismo mui pouco.
    Comboio para norte. Ambulância de emergência desactivada. Chão molhado (memória pluvial). Geral descaminho de quimeras: tanto as do ouro quanto as da lata.
    Em mostruário vítreo, peças de fruta, taças de doce, a coxa esquecida de um frango mutilado. Demoro-me aqui pouco, este é um comércio demasiado triste até para mim, que gosto de aferventar tristuras. Faço por suavizar a minha recrudescente misantropia: escolho-me outro assento, um que favoreça distância higiénica em relação à norma-pimba da modernidade. Leio Aguiar-e-Silva-exegeta-de-Camões: estou bem, portanto.
    O Diário de Coimbra traz a morte do Tó-Zé (António José Figueiredo Pereira) de Trouxemil, cremado hoje em Taveiro. Tinha 59 anos. Dormi há pouco em casa dele, em noite de que trouxe algumas linhas. Que caraças.
    A sensação é esquisita (cf. parágrafo anterior). O céu nocturno, muito limpo, mostra menos luzes do que as hediondas árvores-natalícias. Não esmolaria hoje comediantes. O Benfica perdeu ontem em casa com o Sporting. Parece que a realidade não cessa de estender seus liames, suas lianas, seus cipós.
    Nem uma palavra tenho gastado com surdos-de-vista.
    Em tal aspecto, é irrepreensível o meu comportamento.
    Não sou já o cão-pavloviano de pulga malquista
    que envergonha o clã do familiar acampamento.

    Não mais pagãs ciganadas de ius-sanguinis, comigo não.
    (O Tó-Zé não vem p’lo Natal, retirai Vós dele talher.)
    (O Rui também não vem, também ninguém o quer.)
    (Tanto-faz-falar-de-amigo-quanto-d’-Irmão.)

    Pode o dia ser árabe
    Etc.

12/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 846 (começa Dezembro)



846

Quarta-feira,
1 de Dezembro de 2021

    Hoje, Feriado da Restauração, corre um dia meteorológico como tanto gosto: poalha-d’água cor-de-mercúrio, caloraça nenhuma, humidade de fazer espirrar o arvoredo, jornada cor-de-lápis Staedtler-Noris-HB2. A minha prima Candita completa 57 anos de nascida.
    Alteada a colina, a álea de retaguarda do Cemitério da Conchada apresenta-me seus mortos às arrecuas: tenho ali inumado um Amigo sem outro retorno do que esta rememoração.
    Água no chão ladrilhado da Varanda do Mondego. Pouquíssima gente. Um homem passeado por seu caniche autista. Um bebedor de vinho-do-porto. Alguém que veio ao pão. E USAmericanos chegando à Lua à custa do nazi-reciclado Von Braun.
    Defenestrámos o Miguel de Vasconcelos, reaportuguesámo-nos, isto nosso com os Espanhóis é mais irmãos-hermanos-choupanas-à-parte.
    Antes de sair, muni-me de um volume do velho José Gomes Ferreira – O Irreal Quotidiano, de 1976. O meu exemplar, adquiri-o em Junho de 1979, quinze anos feitos havia pouco de nascido. Releio essas prosas de um poeta engraçado, patusco, não poucas vezes profundo até. O meu Irmão José Daniel conversou uma vez com ele. Destes dois Josés, um está morto há 36 anos, outro está muito doente num Lar de terminações-em-stand-by.
    Começa o último mês do ano convencionado como 2021-d-C. Foi (como todos, agora que envelheço) assaz célere. Há reagravamento da pandemia-viral-made-in-China. Enxurradas de migrantes terceiro-mundistas por tudo quanto é sítio mais ou menos civilizado. Nada que afecte, de Coimbra, em Coimbra, a malta onomástico-numerada-ao-talhão da Conchada.
    José Gomes Ferreira consulou-nos (sem gralha) na Noruega. Teve um filho preso pelo Estado SalazarNovo. Escreveu aquele poema-descoberta que se fecha (abre) assim: “Os pássaros quando morrem / caem no céu.”. É literariamente figura muito importante no meu crescimento literário. Digo o mesmo de Soeiro Pereira Gomes, não menos. E de Carlos de Oliveira. E de Maria Alberta Menéres (noutro plano). E de John Steinbeck. Nem toda a adolescência é febre esquizóide-hormonal.
    Mais isto: em qualquer regresso meu a qualquer lado, não se dá nem propriamente regresso, nem propriamente alhures. Tenho sabido isolar-me (ou insular-me) com alguma eficácia. Pouca gente há (ou hei) a quem se passe uma declaração, emita uma certidão, diga um segredo, faça uma confissão, alinhave um verso. Miro as quietas arrecuas do Cemitério da Conchada (mas o grande Vitorino Nemésio está nos Olivais), assimilo a poalha-aquática do ar do 1.º-de-Dezembro mais recente da cristandade portuguesa, sossego como um justo de IRS-em-dia. E falo contigo – sem que saibas que(m) nem como te nomeio. (Escrever-te o nome, seria feio.)
    Consulto o relógio, são as 14h11m. Uma pomba ainda moça veio palmilhar migalhas que a chuva desajuntou: miséria humana às aves estendida.
    Estendida: rima perfeita para, enquanto-curso-&-não-Conchada, vida.


03/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 843 a 845

© DA.



843

Segunda-feira,
29 de Novembro de 2021

De boca queimada de más palavras,
rompi rua afora fustigado
de mal servido ter sido por cabras
d’uma tal repartição que é do Estado.

Mitiguei o ardor d’afogadilho
sem às pedras contarem as passadas.
Um homem desavindo é um sarilho
queimando a boca de vis, más palavras.

Serotonina (nina-nina-nina-nina)
voltou a irrigar as minhas fontes.
Espraiaram-se-me então horizontes
que um eu a si mesmo quer & destina.

De manhã, ligou-me a minha Primeira:
acabou de nota alta o Mestrado.
Por conseguinte, é manhã cimeira
a deste poeta Vosso criado.

De boca doce apalavr(e)adora
redimo afinal estas estâncias:
saí, é verdade, de mente irada
d’uma tal repartição – circunstâncias

que esmiuçar não vale o tempo gasto.
Vejo passar camisolas vermelhas:
são de pura-lã-virgem de ovelhas
que felizes balindo vão ao pasto.

844

    Versei outro dia à Vossa paciência certa velada confissão relativa ao (meu) Verão/1999. Descuidai-a, Vo-lo peço: não atrasando, também nada adianta tal prosa – pois que não chega a rosa.
    Prefiro prosodiar-Vos hoje outras linhas, nascidas estas da glória (não menos) do pré-Inverno. Estamos a 29 de Novembro. O frio não é muito, nem a caloraça do Estio-Global hoje funciona. Dei de mim sob um céu humanamente metalúrgico, com chispas de mercúrio, lancetas de gelo na erva não-semeada.
    À saída da repartição que versejei (& maldisse) no 843, pus-me mui depressa a amar de volta a Cidade que me nasceu. Fantasmas me A assomam incessantes: o Zé Peres da Ourivesaria Chieira; o Armandinho da esmola hirsuta; o António Polícia dos Mil Cães; o Tónio d’Ausenda falando do Sporting com o Tó Conceição; o doutor Carvalho, pai do Fernando; o Guilherme Pais & o João Damasceno & o José João Cardoso & o João Bebé; o meu Irmão Jorge & o meu Irmão Rui; o Carlitos Pipi & o Taxeira; o Zé da Gaita & o Maló; o Daniel Tatonas & a Rainha Santa até.
    Verso este dia: ou prolifero em recato.

845

Lá onde durmo & o Gato estende império,
volumes conservo da Grécia Antiga:
& é tal conservação minha amiga,
pois tais leituras me levam a sério.

Declino em horas mansas as tragédias
desta tão nossa & humana condição,
falas que valem outrossim comédias
& que chamam queijo ao queijo & pão ao pão.

Cá onde escrevo aturdidamente,
penso no espelho que reflicta espelho:
confesso escrever sobre o joelho
– que afinal é parte de ser gente.

Sou órfão, mando a sós nas minhas horas.
Raspei ontem o queixo, precavido:
com atavio, fiz-me hoje saído
a ruas calendárias por desoras.

Rapariga (é seu vestido tão verde!)
verde é de sua idade à janela:
& eu venho só aqui escrever de
a sua continência quieta & bela.

Já nosso Pai lá está & a cá não volta,
já a Mãe se demora fresca & terna.
Já muito cão da alma anda à solta,
veraneia o morto & o vivo inverna.

Uma demão de cal: irmão extinto.
Mármore gravurado, duas datas.
Toupeiras, vermes & as demais ratas
infestam cruzes santas do recinto.

Lá onde o meu Gato estende império,
lá onde sonho coisas tão falíveis,
aí é que me não levo a sério,
mestre de coisas afinal possíveis.

Um de barbas (que é neurodemente)
atravessa a do Brasil direito à GALP.
Herdeiro da viúva de um gerente,
tem cachimbo-da-paz & até escalpe.

Já na Rua do Doutor Santos Rocha,
em ’82 (ano latinório)
lá do Senhor dos Passos (roxa!, roxa!)
vi passagem do santo incensório.

(A minha mocidade é versejável
desde que Filhas tenho & sou amável.)
Procedo à passagem imediata
do verso de que este papel trata.

Assim é: de que este papel-treta,
este somatório de inconsequências.
Este enfim estudante de ciências
que não vale nem punho nem punheta:

Moi-même, ex-professor & ex-tudo
o que certa família anelava :
como se fôra minha alma escrava
do par de mula & burro mais sisudo.

Sobre mortos, firmeza garantida
corre o chão que foi deles transitório.
Eu ando & sou & faço de formiga,
sou tão-só o-dos-versos merencório.

As tascas fazem de confessionários:
tenho vindo beber a sacristias.
Prefiro às horas quentes as mais frias
orações sem Jesus nem mais rosários.

Nunca bati à porta de editoras
que a umbigos cobrassem o umbigo:
penso que as linhas sérias-sedutoras
não dependem de conheç’-o’-amigo.

Canzoada Assaltante