26/07/2020

VinteVinte - 42 (I + fragmento de II)




42.

VAMOS BRINCAR À POSOLOGIA

Coimbra, domingo, 3 de Maio de 2020




I

Às oito da manhã a luz dominga
a vasta restrição desta marquise.
Hoje o céu não chora – choraminga,
seja o Maio solar p’ra quem precise.

II

Tiro proveito do confinamento destes dias-já-meses mercê de fundas releituras: Nemésio, Wenceslau, Cesário, Pessanha mormente. Para descansar a vista, entretive-me decifrando (leigamente, claro está) um folheto medicamentoso a que, julgo, ainda (e também) se chama “literatura”. Farmacológica literatura – mas literatura, alfim. E com que seu quê de léxico-semântico papal – pois não é bula esse papel incluso nas embalagens que são o pão-com-caviar de um dos maiores negócios do mundo, a às (tantas) vezes sinistra Indústria Fármaca?
A bula (ou, mais chãmente, folheto informativo) de que disponho, usa duas vezes uma palavra que eu desconhecia – mas fá-lo com duas grafias. “O folheto foi revisto pela última vez em setembro de 2017.” – esta a última linha do texto. O problema é a tal palavra. À primeira, aparece como “acatísia”, com i acentuado. À segunda, “acatisia”, com i. (Esta segunda forma é a correcta, parece.) E parece significar aquele sentimento de agitação que impede a pessoa de estar sossegada, quieta, serena – esteja ela sentada ou de pé.
Acatisia ou acatísia – não é a única que eu desconhecia. Gosto desta literatura por causa da riqueza vocabular que ostenta & patenteia. A olhos (haste-oculados, ainda por cima) como os meus, é delícia exótica o palanfrório/palavreado que enforma & informa o consumidor do remédio.
No caso, o medicamento tem envergadura capsular de 20 (vinte) miligramas. A substância-activa (ou princípio-activo) é a fluoxetina, que, sob a forma de cloridrato da dita, agrega outros componentes, a saber: “amido de milho pré-gelificado, sílica coloidal anidra, estearato de magnésio e talco.” Tudo ali certinho, preto-no-branco, p’ra não enganar o freguês do boticário. As cápsulas são, em si, “constituídas por gelatina, água purificada, amarelo de quinoleína (E104), indigotina (E132), dióxido de titânio (E171) e eritrosina (E127).” As coisas que & em que uma pessoa (se) mete…
Dos meus venerados Poetas & Prosadores repouso aprendendo terminologias pragmáticas & ad-hócicas. Exemplo: a fluoxetina tem família. A família da fluoxetina é a ISRS (nada a ver com a família IRS, que essa é de outras devoções). Ora, o clã ISRS é sigla de Inibidores Selectivos de Recaptação de Serotonina. Ou seja: é um antidepressor. É remédio-quase-santo para cornaduras cabisbaixas, tais como as depressivas-major(es), as perturbadas obsessivo-compulsivas & as bulímico-nervosas, neste último caso ajudando a controlar a “ingestão alimentar compulsiva” e a “actividade purgativa”.
Os meus velhotes Pessanha, Cesário & Cia. (salvo seja) não devem ter tido muito acesso a esta gentil fluoxetina. O Camilo dava-se a outro ópio. O Cesário era mais à colherada de melancolia. Ao Raul, não faria decerto mal – a não ser que o discreto militar reformado tivesse “problemas cardíacos, febre, rigidez muscular ou tremor, alterações do estado mental incluindo confusão, irritabilidade e agitação extrema”. Pessoa & Pascoaes, teriam eles “síndrome neuroléptica maligna”? e “mania agora ou no passado”? Alberto Caeiro terá sido “episódio maníaco”? Aquela agitação interjectivo-exclamativa do Álvaro de Campos dar-lhe-ia direito a “perturbações hemorrágicas” ou “nódoas negras”? Teria Ricardo Reis “o sangue mais fino”? Oxalá que não – pois que as supra são todas elas contra-indicações estatutárias da inibição do inibidor. Isto é, anda de cloridrato de fluoxetina par- a os senhores a esta mesa.
Porquê? Porque podem morrer, pá. Há outra família que se não dá muito bem com a ISRS – é a família IMAO (nada a ver com Tse Tung, o porco-gordo). IMAO é acrónimo (acho eu que acrónimo) de Inibidores Irreversíveis Não Selectivos de Monoamina Oxidase. Mesclada com fluoxetina, a iproniazida, por exemplo, pode mandar a pessoa para o galheiro, a pessoa que andava deprimida sim-senhores mas não pensava matar-se por tira-lá-aquela-palha. Já os insuficientes cardíacos – que muitos nem são poetas – podem andar a tomar metropolol. Cuidado: com fluoxetina à mistura, os batimentos cardíacos podem passar ao ritmo do caracol moribundo & sem pressa.
Embora não por má-fé, a fluoxetina pode, ainda, alterar o efeito de outras mèzinhas que o doutor achou fazerem-nos falta. É o caso do tamoxifeno, se em má-hora andarmos com o cancro-da-mama. É o caso de outros indivíduos do grupo IMAO-A, “incluindo moclobemida, linezolida (um antibiótico) e cloreto de metiltiolina (também designado por azul-de-metileno, utilizado para o tratamento de metemoglobinema)”. Ora, tal risco não é poema.
Imaginemos – por mais absurdo – que o bom Pascoaes sofria de uma alergia. Uma alergia, logo ele, à Saudade, por exemplo. Naturalíssimo seria que o doutor-médico, apoiado pelo doutor-farmacêutico, o crivasse de mequitazina. Dois perigos, nesse caso, caso o Teixeira de Pascoaes andasse já fluoxetinando-se: um, arriscaria “alterações da actividade eléctrica do coração”; dois, em vez de Saudosismo, a História Literária Portuguesa & a revista A Águia doutrinariam o esquisito Mequitazinismo – que até parece diabolismo de mesquita + sion’azismo.
Suponhamos agora que aquelas performances juvenis do Almada não eram coisa de dançarino-poeta-e-tudo mas sim pura & simples epilepsia. Natural seria que lhe receitassem (“ora isto é fundamental”, diria o patertirano Vasco Santana) nada menos que fenitoína.  Ora esta + fluoxetina juntas podem influenciar & levar para más caminhas os níveis sanguíneos, ora nem menos.
(...)

23/07/2020






Só hoje, 23, soube da morte de Luís Filipe Costa a 21.
Honra-me ter sido seu compatriota.
Deveras figura gigante no país-dos-anões.
Tinha os anos que viveu mais os que nos deu a (vi)ver.
Guardo dele uma carta.
É um dos meus mores tesouros.
Belo verso agora: Luís Filipe Costa viveu.

A bela divina maravilhosa Amália faz hoje, 23 de Julho de 2020, cem anos de nascida. Nascida para sempre, sem morte possível.

19/07/2020

VinteVinte - 41 (todo)




41.

DE PÓVOA SEM GENTE

Coimbra, sábado, 2 de Maio de 2020




I

Foi segunda-feira o dia 2 de Maio de 1983. Dei flores a uma rapariga na Avenida Bissaya Barreto. Julgo que era perto a vivenda do clã Moura Relvas. Não comprei as flores, colhi-as de um quintal então por ali à mão. No dia 11 seguinte (quarta-feira, portanto), voltei a fazê-lo – na mesma avenida & do mesmo quintal. Isto foi no tempo em que envelhecer nove dias ainda não era um fósforo.

II

Tempo houve em que nove dias eram uma eternidade portátil. Eram, eram – tanto, que foram: e a tempo de eu ontem já saber que amanhã era o hoje de voltarem-me eles, embora não a eles eu.

III

Adiante. Século XXI. Sete & picos da manhã saturnina. Há luz com fartura – não a que cega no excesso do Estio mas a suficiente, a propícia neste Maio sem escândalo. Tirando a cafeteira eléctrica, não liguei máquinas. Isto é tudo à mão, como no onanismo & na tropa. A fio de não-sei-quê-nem-porquê, estou na cozinha a ver se me lembro de (in)certa passagem em um livro de Peter Handke. Cereja por cereja, penso em outro livro, de Luís Filipe Costa este. Andam ambos pelos íntimos algures desta casa. Não vou à procura deles, tenho este por ir fazendo. Existe ali em baixo, no sopé deste promontório mesmo, uma casa cor-de-rosa um seu quê misteriosa. É só isto: nunca lhe topei inquilino. A construção não parece abandonada, mas não se lhe sente gente vivente. Tem antena parabólica. O telhado não é desdentado. As janelas não parecem perras. A porta não ameaça fantasmas. Todavia, dia ainda não veio que eu nela, ou cerca dela, gente visse. Não é apartamento, é vivenda singular. Só arvoredo & rasteira vegetação há por vizinhança. Como não é na Avenida Bissaya Barreto, e apesar de ser hoje 2 de Maio, não me vou ao quintal dela roubar flores. Também, para que nenhuma rapariga de século XX nenhum?

IV

Sem novidade especiosa, a manhã já lá vai.
Quem pode & tem, almoça. Quem não, vá-lá-com-paciência-santinho-de-Deus.
Espécie esquisita somos – inventora de remédios & irremediável à vez.
Política, aparato, 25.190 infectados do Covid-19, 1023 óbitos, Espanha & Itália (des)contam bem mais vidas no fio-da-navalha, segunda-feira reabrem os cabeleireiros, viva, viva.

V

(“Que ser rapaz é o melhor ofício.” – António Osório)

Manso & bravio
fui eu também
dentre o rapazio alfeirio,
era viva a minha Mãe.

VI

Não a morte própria mas a alheia sim
Essa sim assassina esmaga os sentidos
Coisa esta – sentido – de que carece a vida.

Útil & fútil acontece casarem-se
Paleiforme cabelo ao sol emula
’ind’assim não é amor o só-desejo.

(Do que falo, ex-falo, sei.)

Antes visitara alheia póvoa
Buscando o rosto (do) antecessor
        E pós o não esquecera, repetindo-o

15/07/2020

VinteVinte - 40 (integral)




40.

NORMAS DE MAIO

Coimbra, sexta-feira, 1 de Maio de 2020




Eis-nos Maio. Meu mês natalício. Mês tão bom quão os demais para exercício do meu – chamemos-lhe assim – palanfrório, o meu palavreado não-raro palilógico, repetitivo em palavra, ideia, estilo até. Este quarto sirva de palatinado, jurisdição de confinado ainda não finado.

(Muitos foram os anos & muitas as gerações que perderam Bach & Gil Vicente. As obras estavam encarceradas em pó de velha madeira susceptível dos piores carunchos: ignorância & olvido. Kafka & Cesário não foram incinerados porque Max Brod & Silva Pinto etc. Temos nós – é nossa, se & quanto a quisermos – tal fortuna. Há mais nomes & obras que salvar. Isso eu sei. Mas quais? Há que fazer por saber.)

Maio, lá fora uma pouca (mui pouca) de sol logra romper a cinza movediça. Recordo o primeiro 1.º de Maio livre, o de 1974, alinhámos na manifestação como família, há uma fotografia desse momento, ali em frente à Escola Jaime Cortesão, o Jorge era vivo e está na imagem, vivo & feliz. Este é outro Maio, aquele não volta, esta é a Lei. Brama o vento. Não é chilido de pássaro mas sim uivo grosso. São as cinco da tarde. Pus em demolho uma postita de bacalhau para ser alho-acoentrada em açorda aguada. Resulta caldo bom, perfumado, forte & delicado ao mesmo tempo. Assim vai a mente: da fotografia histórica de há 46 anos para um projecto de petisco sem história alguma. Também é da tal Lei de que acima V. falei.

Um documento me espera leitura, sublinhados, digestão & reciclagem. É rico em vocabulário técnico-científico. Muitas palavras me esperam bom trato. É a minha vida, não mero entretém de ocioso. Não me justifico: apresento-me, tão-só. (E tão só quão fiz, felizmente, por merecer.) Mostro as cartas – e jogo-as na mesma. Nem valentia, nem pusilanimidade – sim a vida-por-escrito, linha a linha, até que a Lei etc.

Recordo:

O vento forte nos canaviais robustos, entre o derradeiro lagar de vinho na aldeia P. & o primeiro lagar de azeite na aldeia A. Eu fiz & refiz esse caminho eterna e ternamente. Há muito o não refaço, por outras bandas me desbando, outras aragens me desairam. Aquele vento privado, íntimo, meu, dando de varejo nas canas altas, espessas, raianas, fabulosas. Uma vala já então poluída sondava, como maligna serpe, esse meu segredo, esse meu éden-de-pobre. Quando, agora-século-XXI, me deito & medito à toa, é muitas vezes aquele vento naquele canavial o que à janela de hoje brama. (Hoje, 1974? Também. Recordo – ergo, minto. Mas sinto.)

Ao parágrafo anterior (a que dei término entreparentético) acrescento ainda que:

Recordação é coisa treda (id est, traiçoeira) & trefa [ou trêfega – como Nemésio diz do nosso D. Afonso III (in Jornal do Observador, pág.ª 249). Seja: ardilosa, astuta, buliçosa, inquieta, traquinas.] E crêde-me que lo é deveras & de facto. 

Pessoas levando o que as leva, digo: a vida, o interlúdio, a morte, tudo à guisa de precária brincadeira com o fogo.
Sei nada delas. Sei pouco delas. Sei alguma coisa delas. Espelhamo-nos & espalhamo-nos. Seguimos a Grande-Régua – que Norma é.
Algumas são belas, algumas pessoas são portadoras de beleza. É verdade. É tão verdade – que mesmo mortas seguem embelezando estas vargens, margens, aragens & paragens. As pessoas vivas são menos do que as mortas. Em número, digo. O planeta é cada vez mais escasso para tão inflacionada população – mas os mortos continuam a ser maioria (nem sempre silenciosa).
Berçários & túmulos irmanam-se impiedosamente. Os animais não-humanos moram noutra dimensão, embora possamos matá-los. Não podemos humilhá-los, porém – como alegremente (des)fazemos cada-dia-a-toda-a-hora-pelos-séculos-dos-milénios.
Nomes habitam-me, rumorosos. Uns, mortos (os mais, como hei dito): outros, nem tanto (vamos lá com calma).
Américo C., que conhecia muito o bich’umano. Luís M.N., consumido de febres gráficas & más-companhias. António B., mitómano & chapeleiro-louco sem Alice possível. Gente como esta, isto é: única-em-si-só.

        Já nove minutos se (con)sumiram da última hora do primeiro dia do primeiro Maio da década de 20/XXI. Sei já como (ou com que linhas) vou começar, manuscritamente falando, o segundo dia do (meu) mês. Ocorreu-me há pouco, em fugaz surtida ao mijatório. Pergunto-me se serão assim tão diferentes dos outros todos – digo: confinamento, se & quando cotejados aos meus prévios perfactores de 56 anos, contados em redondo no próximo dia 8. Mera curiosidade: 8 de Maio de 1964 foi (também) sexta-feira, como o próximo será. Às oito da manhã, fui arrancado a fórceps do único (ou último) paraíso que conheci. Esse confinamento – o uterino, o da placenta, o fetal-astronáutico – era perfeito. Este de agora é estigma de um mundo irremediável, poluto, sobrelotado, quase inabitável. Involuntária autoprofanação, isso de nascer. Ser dado à luz – diz-se. Ser entregue às trevas – sugiro eu. Vinte & sete minutos sobre as vinte & três horas. Sempre em frente, rumo ao que se sabe.

12/07/2020

VinteVinte - 39 (integral)




39.

Lulu

Coimbra, quinta-feira, 30 de Abril de 2020




Mais um Abril co’ caraças ido. Maduro de febre, Maio bate à porta. Aprendi ontem a palavra hipocorístico, que é o vocábulo trocado em família e/ou para com crianças, duplicando-se a sílaba: gugu, dadá, papá, lulu. (Esta última fez-me evocar o bonacho & maravilhoso Vasco Santana: “Chame-me Lulu… Chame-me quando quiser, que eu vou logo ter consigo.”)

Fui às ruas pela finimanhã, passava já da undécima. Tratei com suficiência dos papéis a tratar, comprei coisas que comer + com que escrever etc. Afivelei máscara & luvas de borracha: senti-me carnavalesco.

Releio Nemésio: com proveitoso vagar o rumino. Acho-o renascentista, iluminado & iluminista. Pertenceu-lhe boa porção do século XX: respirou entre 1901 & 1978. Este último foi péssimo: o ano levou, além de Nemésio, Ruy Belo, Jorge de Sena, milhões de anónimos. Do grande Açoreano sepultado ali em Santo António dos Olivais, neste antigo Emínio (como ele mesmo crismou Coimbra do latinório Aeminium), este trecho esplendoroso de sabença:

“(…) exigimos uma intimidade pura aos diários dos outros, como garantia de autenticidade ética e analítica, esquecendo-nos de que a personalidade é incoercível ao próprio portador. O nosso ‘eu’ não passa de um foco, uma central de contactos altamente sinápticos que apenas garante o funcionamento do sistema psíquico: não alcança os conjuntos. A inconsistência do ‘eu’ sente-se melhor no flagrante da apreensão do tempo, na pretensão – tão nossa conhecida – de apanhar num momento o todo da própria duração e chamar a isso ‘eu mesmo’. O semetipsum… Mas a verdade é que quando digo aqui ‘vou já!’ – já cá não estou…” [Da crónica Do Género à Variedade, data de pub. 14-4-1972, recolhido de Jornal do Observador, pp. 212 (Editorial Verbo, Lx., 1974).]

Não sei se classificar o Humano como género, se como estirpe, nestes tempos panvirais em moda global. Envelheço descrendo mais nos meus comparsas coetâneos. A História do Futuro parece estar mais do que meramente na do Presente. A do Passado, já bem o sei, é ao-gosto-do-freguês. A religião (qualquer uma & toda ela) é uma merda. (Desculpe-me – ou perdoe-me –, Doutor Nemésio, mas assim o penso, digo & escrevo. Aliás, o senhor mesmo: “Somos solidários com todos os nossos semelhantes no bem e no mal do mundo.” (p. 234, op. cit.)

Desconheço, nesta minh’idade, que idade ’inda há-de – ou não – acontecer-me. Ou: a-conta-a-ser-me. Importante: ainda não é & já é. Despeço este Abril como inútil serviçal a quem, afinal, servi – e de pasto.

Perto de onde escrevo, houve há tempos tiroteio. Tráficos, drogas, ciganices, bairrossocialismos do costume. Tem todavia sido branda a estação. Não sei se o confinamento obrigatório (que termina a partir de 2/5 próximo, parece, passando o estado-de-emergência ao de-calamidade) ajudou à pacificação. Talvez tenha. Digo “perto” mas é, felizmente, o afastado q.b. para que por aqui não cheire a pólvora nem a heroína fervida em limão. Dizem-me que estas (des)andanças já foram bem piores. Não sei. Tenho saudades do mar. Aqui não há mar. há lá em baixo um rio represo à força de açude. Há o que é, será como foi. Nada peço, que pouco posso. Passo.

Na marquise, sentindo a noite mundial: o mundo que à esquerda é Santa Clara & Rainha Santa, a mancha ominosa do Choupal em baixo, lampiões públicos pontuam laranjas como transparent’invisíveis laranjeiras, Estação Velha/Coimbra-B, Casal Ferrão, Loreto, Brinca, Relvinha – e Pedrulha longe, Antuzede muito longe. O que é depois não difere do antes que o preparou, urdiu, prenhou – e abortou. Morre-se, viveu-se (ou não), uma marquise tanto se me dá plateia como palco como bastidores, há muito soou & foi rodopiada a derradeira valsa.

Acmásticos meses – de intensidade pandémico-viral maior. Muita gente despedida, muita gente expedida. Há sempre quem, em tempos pânicos afins, especule & se afortune com a miséria alheia. O papa Francisco parece não-mau-homem. Peão como todos, porém & alfim, do sideral-tabuleiro-sem-Rei-nem-Roque-nem-Sentido-nem-Manual-de-Instruções.

À boca da meia-noite levo & trago camomila fervida em água-melada. Há serenidade, essa que vem de não-pensar-nisto-ou-naquilo. Parece que acomia é sinónimo de calvície. Giro, aprendi mais uma. O Dicionário é bom paliativo. Paliativo de quê? Paliativo para quê? Porquê? Quem pergunta? Chamai-lhe Lulu.

VinteVinte - 38 (conclusão: VIII a XI)



VIII

Por contraste, a neve enegrece tudo.
O arvoredo passa a semelhar pelotão de obscuras sentinelas do Grande Nada.
Os mais previdentes empilharam lenha no Verão, ardem-na agora aos serões confinados, quando lá fora só a Lua, só os lobos, uma que outra lebre, de vez em quando o carro-de-patrulha ou a ambulância com um cardíaco ou um bêbedo dentro, às vezes os dois-em-um-mesmo.
Por estas bandas, o Verão demora-se pouco – tão pouco, que nem propriamente chega a ser estival, antes sim espécie de osmose outono-primaveril, mal dá para colher do lago algum peixe capitoso antes do enregelamento, que certo é, este, como a morte & como a contrastante negrura imposta por nevão trás nevão.

IX

Túlio Caio Domingues, ferrador de bestas, nada mau homem de & para sua mulher, Maria das Mercês Lavareda Domingues. Túlio tem antro oficial ao cabo da Rua Formosa, trinta ou poucos mais metros da Ópera Real, uns duzentos do Comissariado de Polícia.
Os pasquins-tablóides da época têm-no como incendiário de prostitutas. Guilhotinado foi, por tal. Hoje, o ADN revelaria Mercês como feitora de jus a seu apelido de solteira.

X

Enurese em adulto, sofreu-a Alípio Hernando Oliveira, dito Pia-Cabra entre os sem-abrigo do Viaduto-Norte, no Verão de 1999. Perdera-se algures de toda a gente, isso ele percebia – por que raio se perdera ele do que era para ser, isso é que o não percebia ele. Urinou-se sem controle possível. Foi gozado, claro. Gozaram-nos os comparsas do Viaduto-Norte, sob que habitavam cartões, colchões, lonas, alimentando-se de comida plastificada às vezes trazida por gente como Ana Ouvebem, a quem Alípio nunca se esquecia de gratificar com um belo sorriso sem sombra de um dente sequer, à parte o fedor a mijo velho.

XI

Duas senhoras já genárias residiam além, naquele palacete branco entre abetos. Conheceram-se a bordo de um cruzeiro intercontinental. Carpiam alegremente, a bordo do grande barco, a recém-viuvez com que cada uma dela fôra premiada ao cabo de muitas, demasiadas, décadas cremadas ao lado de maridos medíocres. A do palacete azul arrendou-o a uma fundação de filatelistas, vindo tomar aposentos no branco, a convite da amiga. Quatro serviçais as acomodavam, gasalhando-as a troco de honrados salários.
Não conheci em pessoa essas pessoas. Os livros da branca original, sim – conheço & admiro & releio-os muito. As telas da azul, também – relevantes materializações de paisagens sonhadas (lunares algumas). Morreram ao cabo de dezassete anos em comum, tendo os óbitos sido intervalados de duas semanas.
Os herdeiros dissiparam tudo o mais cerce que puderam. Menos os manuscritos brancos – que a Biblioteca Nacional conserva - & os quadros azuis, que a Fundação Filatélica Tenesmo esplende por as paredes do cerúleo palacete que acabou arrendando sine die.

11/07/2020

VinteVinte - 38 (V a VII)






V

Recordo:

O corpo imerso no largo do bosque, muitos anos antes de o terem poluído. Rapazes festivos nadando estardalhaçadamente, primeiro, pela euforia da nudez, da frigidez benigna ao sol filtrado de choupos, mais calmos depois, aproveitando a pureza que resulta de o porvir não ter vindo, não ainda. Esse sabor a demasiad’outrora, não o nego, a boca figurada da lembrança. Um lápis é quanta ferramenta tenho para nos ver(mos) nadando naquela água diamantinamente poalhada de luz. Tenho caneta, sim, mas isto precisa de ser a lápis. Antes da hora a sós por ora – e amanhã também, desde que ontem nunca mais.

VI


Rêverie – sonhambulação – dizia-Vos pois.
Não me refiro a preambulações romântico-nirvanas pasmando à Lua com o terceiro-olho (que as pessoas de siso sabem ser o do cu, não o do Lobsang Rampa).
Refiro-me às Línguas como ferramentas cosmovisoras, cosmo(a)gónicas até & mesmo.
As pessoas portuguesas menos plácidas & mais dadas ao repetitivismo repentista dos papagaios grunhem à saciedade que “lá fora não sabem o que é saudade” & que “é palavra sem tradução” para outras línguas. Disparate. Saudade & rêverie são, por assim dizer, legíveis em qualquer idioma desde que trabalhadas com senso & bom-gosto mas sem orgulho nem preconceito, parafraseando a Jane(ca) e o velho Antero.
Por desgraça, grassa entre nós o aborto do desacordo ortográfico com que alguns meliantes, em 1990, bulímico-anorectiram, por assim dizer, a nossa Língua.
“Minha Pátria é a Língua Portuguesa” – é o verso de uma vida, como também a epígrafe em pedra de uma Identidade Nacional. A este tipo sonhambulant’andante me referia – e prossigo referindo-me. A lápis, a lápis. A caneta é p’ra outras tintas (não meias- nem de troca-).



VII

Jaime Robertes, delinquente profissional desde os doze anos. Matou premeditada & voluntariamente outro presidiário. O assassinado era Francisco Arthur. Este sempre saiu da prisão. Cremaram-no, deitaram ao aterro de lixo as cinzas, família nenhuma as reivindicou. O assassino está de plantão naquele corredor que leva, ou há-de levá-lo, ao mesmo & tal aterro, depois de cumpridas certas formalidades legais.
Ana Ouvebem, assistente social do sistema penitenciário. Vive disso & nisso há mais de duas décadas. No tempo-livre, voluntária de caridades: católicas, protestantes, mórmones, municipais, raciais, trans-sexuais – todas & mais algumas. Vive sozinha em uma mansarda flagrante & fragrante de alegres encarnados ramalhetes de sardinheiras.
A execução de Robertes está marcada para 2 de Maio. Nenhum remorso de última-hora foi ou vai ser apresentado a instância alguma: o algoz de Arthur quer sair do corredor pela porta da morgue.
Ana O. mantém um diário-ficheiro a partir de cujo teor pensa um dia arquitectar um relatório pseudónimo do que viu, sabe, imagina, deseja. Não pretende poetar, no sentido pró-lacrimal, o(s) relato(s) – mas também ainda não sabe o que deveras pretende. Anda há anos nisto. Vai cuidando das bonitas sardinheiras que lhe alegram o balconete.
Francisco Arthur? Esparso, como por aí tanta literatura jamais coligida em tomo.

10/07/2020

VinteVinte - 38 (I a IV)






38.

GUARIDA POR (H)ORA

Coimbra, terça-feira, 28 de Abril de 2020 (I & II) e quarta-feira (III-XI)


I

A verdade fulgura, que à luz equivale.
Vale ela ouro puro, essa é a verdade.
Não muita hei encontrado na minha vida,
mas à que encontrei eu sempre dei guarida.

II

Fiz hoje algumas arrumações, assim externas como internas foram elas. Nutri-me devagar, sem pressa andei pelo claustro confinado desta casa. Notícias, mal as vi, nenhumas tive, nenhumas dei. Umas pouquíssimas linhas me quiseram tinta & papel, não me parecendo grave o dia – nem a noite, que, entretanto desabada, prosaica se encerra.

III

O vocábulo francês rêverie não é de fácil trasladação, por assim dizer, para outros idiomas. Para o nosso, sugiro sonhambulação. Sim, joga com sonambulismo – mas em, por assim dizer, modo-acordado: ou mot-accordé. Enfim, ainsi soit-il.

IV

Em outro, que não este, quarto, outro, que não eu, inquilino. Há dossel, crucifixo & relógio na parede apainelada a folha de castanho. Cómoda pequena. Escrivaninha com tampo de correr, não-grande também. Uma cadeira, um bengaleiro, uma mesinha-de-cabeceira. Sem prateleira, os (poucos) livros ladeiam, no tampo da cómoda, o retrato sépia emoldurado a prata de uma jovem adulta: a mãe do inquilino, solteira ainda naquela composição de estúdio com enquadramento de fundo belle-époque. Deixemo-lo(s) a sós por (h)ora.

09/07/2020

VinteVinte - 37 (integral)






37.

EM M(Ã)ELOPEIA

Coimbra, segunda-feira, 27 de Abril de 2020



Somos ilhas finitas rodeadas de infinito por todos os lados. Não é preciso noticiário que no-lo reitere. A tudo isto antes da morte podemos chamar vida. Há nomes piores.

Recebo telefonema de um dos meus derradeiros Amigos (vivos). Gratifica-me muito receber dele a voz educada, a ilustrada articulação silabante, a oratura que o unifica (& autentifica) enquanto (inter)locutor. Estamos vinte minutos nisto: como dois pássaros gorjeando-se, de remota árvore a longínquo telhado, novas não-postiças. Ganhei já o dia, mal-acabada a manhã ainda.

Depois, BBC: banho, barba, canja – tudo a quente. Restaurado, remoçado, refeito – dei rosto à Segunda-Feira: não a outra face mas ambas. Ouço vozes gravadas (não imaginadas mas concretas, vivas pela técnica): uma argentina & várias valencianas. Buenos Aires é nome referido. Outros, mas de Espanha: Alcàsser, Valencia, Burriana, Cheste, Buñol, Gandía, Altea, Cuenca. São vozes do século passado. A voz da pessoa argentina é festiva; as das pessoas espanholas, trágicas. Aquela, é de concerto; estas, sem conserto. Música maravilhosa, a do porteño; tristura agónica, a dos valencianos. Entretanto, esse século morre, outro vem, este é – tudo a frio.

M(Ã)ELOPEIA

Mão morta
Mão morta
Vai bater àquela porta

Mãe morta
Mãe morta
Entra que te abro a porta

.

Canzoada Assaltante