19/12/2020

VinteVinte - 160 (V-VII)


Imagem: © DA. 19 de Janeiro de 2015 - ‏‎17h48m26s


    V


    O primeiro cadáver a ser enterrado no novo cemitério da Quinta da Conchada foi o de António Fornelhe, de Casais do Campo, freguesia de S. Martinho do Bispo, no dia 1.º de Fevereiro de 1852. Sei-o pelo 1.º vol., de 1853, d’O Instituto – Jornal Scientifico e Litterario. Assim sendo, a dita prima inumação ocorreu a um domingo. 

    VI

    Regressa a casa o casal Abílio & Pureza.
    Vêm ele & ela do Campo, onde cultivam.
    Com eles, a cadela fidelíssima, Diana.
    Cada um com seu balde.
    Abílio, com carga de tomate, nabo, cebola.
    Pureza, alface, couve, laranja.
    Deixaram em casa de molho meio bacalhau.
    São cumprimentados na volta.
    O sino dá as seis a quem as recebe.
    Já vem fresco o vento baixo da pré-noite.
    Diana cheira o poste telefónico.
    Cumprimentam Madalena à face do pátio dela.
    Madalena acaba de matar a galinha velha.
    Morre com o dia a ave, recado antigo. 

VII

    Prefiro, ao cair do pano de cada dia, ambular sem ruído pelos escombros da luz. Nem sempre o faço por escrito – também me acontece ler. A Cidade, que ainda não jantou, recolhe-se como fazem as meninas quando no quarto as esperam quantas bonecas têm.
    Sendo amena a temperatura, é da mor doçura a volta. De calçado apropriado, roupa limpa & suficiente, bornal leve, faz-se milhas do tamanho das náuticas. Fechadas pelos homens a Deus & aos homens, as igrejas parecem ingentes celeiros sem préstimo. Mas são belas a tais horas, mesmo as feias.
    Aufiro, ao cair de cada dia o pano, transparentes alvíssaras, as quais me remuneram a escrita imediata – imediata, porque não tardo no Café Silvestre, onde há tantos anos segrego a minha baba lírica. 
    Aí, escorrem do olhar o visto & o imaginado. Outros solitários dão de beber à história que cada um não conta. O rumor é mínimo. A patroa gosta do televisor em surdina, mesmo que esteja dando futebol.
    Há pelas paredes reproduções fotográficas de Coimbr’Antiga. Conheço-as de cor – lembram-me a Lua, a que ainda não fui, aliás. A cerveja-à-pressão do Silvestre é, de longe, a melhor da Península Ibérica: perguntai-me se assim não é deveras & de facto.
    Antigamente, ainda chovia. A minha ambulação era por conseguinte abreviada. No asfalto, os charcos brilhavam como olhos comovidos. O arvoredo cantava ao frio. Uma só das torres-holofotes do estádio municipal em funcionamento: Académica ou União treinavam, talvez. Isso já assim não é. Olhai: havia então no Silvestre mais quem lesse. Uns, por estudo profissional: medicina, direito, filosofia, matemática. Outros – como eu – por & para nada. O certo é que não haveria, então, quem perdesse tempo com as porcarias publicadas hoje em detrimento das obras sérias & a sério. No Café Silvestre de hoje-em-dia, mais ninguém lê. Não faz mal. Cada um prefere & aufere quanto & o que pode ou sabe. Ou antes pelo contrário. 



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Canzoada Assaltante