30/12/2020

VinteVinte - 171 (XI-XII)


 

XI 

Plenitude da atenção a elementos constitutivos do real-imediato. 
Respiração, olfacto, camisola d’amarelo-torrado no espaldar da cadeira, 
meias lavadas-passadas-enroladas na gaveta-tope da cómoda, 
manta laranja-salmão sob a manga amarelo-torrada, 
volume de histórias fantasmáticas sobre dicionário encarnado. 

Da radiofonia, surde sem aspereza o linho de música/XVIII. 
Uma solitaríssima mosca encontrou abrigo no quarto. 
Boquiaberta, a pasta do computador velho expele um cabo- ténia. 
A cigarreira & o isqueiro amam-se ordeiramente. 
O telefone dorme como um menino sem préstimo. 

O estojo de fármacos subjaz em apoio à caixa de velas novas. 
Aos pés da cabeceira, saco com bolachas de ingestão nocturna. 
Dois azulejos na parede, um pintado à mão, outro com cromo. 
Na parede oposta, um retrato do Eça e um panorama de Santa Clara. 
Folha solta com rabiscos pró-mercearia sob o cinzeiro verde. 

Comichão sob o umbigo, unha fendida do indicador-direito. 
(O indicador-direito é o único que aponta a escrita em curso.) 
(A dita onicofenda é portanto especialmente notória & irritante.) 
Pré-alquebramento soporífico do Leitor. 
Stop. 

XII 

Em Nottingham, o português Ricardo Jorge Verde faz vida. 
Adaptou-se bem à alheia estranheza afinal sua, pois ali. 
É trabalhador, topa tudo, amealha esterlinas. 
Aprendeu a Língua sem ter de ir a cursos intensivos. 
Curso-intensivo vero é o quotidiano: trabalho, ruas, audição. 
Já compra o jornal, já ao fim-de-semana o lê. 
De semana, chega muito fatigado ao sótão tomado de renda. 
Come do saco que traz: pão, conservas, fruta, iogurte. 
Não procura outros portugueses – para tal, de cá não saíra. 
Comprou um aparelho de rádio, que toca baixinho como a guitarra. 
Toma banho & barbeia-se nas instalações do trabalho. 
Foi uma vez ao estádio, o Forest recebia o Derby County. 
Faz vida, enfim – isto é, gasta-a como ela se lhe dá. 
Por hoje, é quanto tenho a dizer dele. 

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Canzoada Assaltante