28/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 778 a 781

© Walker Evans


778

Domingo,
26 de Setembro de 2021

    Da coluna alta, uma canção dos ABBA, de seguida outra dos Queen. A senhora um pouco marreca meteu dez euros no euromilhões, está o jackpot a acumular, oh sonhos!, acima da centena de milhões de aéreos. Domingo, Dia do Senhor & de Eleições Autárquicas. Já cumpri o meu dever cívico, já exerci o meu direito democrático, já botei o meu X nos três boletins. Rapariga quarentária raspadinhando quatro cartões de diverso prémio. As eleições locais funcionam como espécie de Taça de Portugal dos pequenitos – mas sem gigantes a tombar. De qualquer modo, é democracia – e importa, releva, interessa. A abstenção é, infelizmente, altíssima: perto dos 50%. Já o Domingo se foi.

779

Segunda-feira,
27 de Setembro de 2021

    Foi há coisa de trinta anos. Um Amigo que então tinha na vida contava-me coisas de família, dolorosas umas, graciosas outras. A noite abara já sua tenda ingente, da Cidade o diadema néon-eléctrico refulgia. Era em Santa Clara. Sentáramo-nos em muro que dava a retaguarda à Senhora Rainha Santa Isabel. Éramos novos como pêssegos na árvore. Já o não somos. Ele é vivo, algures a Norte. Eu não me norteei. Estamos ambos, julgo, muito bem de & na vida – pois que vivos somos, estamos, andamos & seguimos. Não é alegre, não é triste – não é nem deixa de ser. É necessário não confundir o Zorro com o Lone Ranger.

780

À babugem das décadas, não passemos cartucho.
As coisas outrora importantes – sabeis V. quê?
As outrora importantes são ora cazaquistões inócuos.
Inócuos. Inodoros. Inefáveis. Inimputáveis.
Mandámos fora coisas adentro, aconteceu.
Já não, coitados, somos o que de nós se (des)esperava.
É como sermos dali das Carvalhosas, acho eu.
Ou não sermos nem Mascarilha nem Tonto.
Ai-ô, Silver!

781

É uma finitarde, a de hoje, como sempre gostei:
chuviscosa, atonal, outonal, mercurial, cinza-rosa.
Quando reentrar em casa, porém não será nA Casa:
a de meus Velhotes, que ora dormem no Cardal.

Achei-me enredado em uma idade híbrida:
cachopo d’alma, pré-senil de corpo.
A serpente amostra-me a língua bífida:
e em sonhos refilo; refilo mas caio de borco.

É por hoje a finitarde como sempre gostei:
é tecnicamente impossível vir a ser mau gajo.
A felicidade dura um pouquito a prumo:
de sua natura é ser, ela, orgásmica.

Desfaz-se tipo serradura a maciça praia-árvore,
como em areal se desfaz & recompõe o adamastórico penedo.
Camões é morto, dele não sopra medo.
Não eu, mas alguém, mais o devore.


26/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 776 & 777

 

© Robert Doisneau

776

Sábado,
25 de Setembro de 2021

    Lembranças súbitas & impertinentes, dessas a que apetece logo clicar CTRL+ALT+DEL – quem as não teve/tem/terá já? Calma, não é hoje o caso. Está-se bem aqui na guarita. As casotas de cima, baixo & lados mostram-se neutras, sossegadas, sem bulício nem remédio. Cada um(a) em seu casulo, cada bicho em seu nicho. Antes caladinhos & recatados do que de nós/cada um(a) digam: Antes o teu pai tivesse feito um requeijão… Sim, antes. Lembranças impertinentes & desgraciosas é que não. Como a daqueles tempos em que bebia tanto, mas tanto, que, se caísse ao chão, me teriam de apanhar à colherada. Fosca-se, já lá vai. (Já ’tá cheio?) São preferíveis as epifanias em que algo se nos volve luminosamente óbvio – como por exemplo aquilo do copo-meio-cheio-ou-meio-vazio?, sendo a resposta: O copo está meio. Mas nem isto importa por-aqui-aquém. Alternam-se no mundo-lá-fora massas sombrias & clarões-hélios. Este papel mesmo muda de cor, rosto, pele, tensão. Jorra música do aparelho eléctrico ao canto-poente do cubículo. Talvez amanhã saia a dar uma volta pedestre. Hoje já não calha. Problema nenhum. Um bocado de jazz do bom. Um bocadão de Bach, que é bom por qualquer lado que se revire. O facto de eu ser hoje (bem) mais idoso do que os meus Pais eram na altura em que nasci – não obsta a que continue olhando para cima quando os encaro em ideia. Nenhum deles era vivo quando se (des)travou a Guerra Anglo-Boer. Desta perspectiva, tudo parece remo(r)to, impossibilitando ver no sol a rosa recente que há tantos éne-milhões de anos vem sendo. Bem, esta lembrança não é impertinente. Pode que seja tão-só uma flor do ócio sabatino. Escrevo sem abrir a boca, a Avó dorme, ladrar acordá-la-ia. Em silêncio pois, anoto (para amnésia futura) que não sou obrigado a gostar do canto do Andrea Bocelli só porque ele é cèguinho, só sou obrigado a lembrar-me do David Bowie de cada vez que vejo um cão de olhos um de uma cor, outro de outra. Nada de grave, nada de agudo. Aguda & grave é a situação nas Canárias, com todo aquele infernal aparato vulcânico na ilha de La Palma. Não tem graça. Vá que não morreu gente – mas a destruição de tantas casas-de-família dói à vista. A Natureza é soberana em regime absolutista, nunca brinca, nós é que andamos com mariquices idílico-bucólico-pastoris, com versinhos & coiso. Não sei. Não imagino o que seja perder materialmente tudo. Não sei que ou como faria sem a minha biblioteca, a minha gaveta das cuecas & das meias, os meus dois pares de sapatos, três idem de calças & quatro camisas e meia. Não dá para imaginar. Imaginar-imaginar, só cada noite, ao deitar. Ao deitar-me cada noite, gosto muito de montar a tenda ao relento, ou então em choupana de pau & pedra com lareira, adormecendo ao crepitar resinoso & rico da lenha perfumada & viva, havendo ceado toucinho, biscoitos água-&-sal, tomate coração-de-boi, broa-de-milho & melão com presunto fatiado, acamando o repasto com uma canecada de café / um copázio de aguardente-de-abrunho. Isso sim, isso sou eu capaz de magicar, inventar, cismar, anelar por. Não me faz mal algum, por mais dissociativo ou auto-alienante que possa parecer. Acabo por adormecer em candura. Os sonhos é que, depois, pioram um bocadito a comatosa jacência obrigatória. Aparece-me gente, falando-me até, que na vida-acordada (= vigília) só me desaparece & me desconversa. Acordando, retiro-lhe qualquer importância – que aliás não chegou a ter. Devidamente acordado (o que não ocorre sempre, nem automaticamente), boto-me a pairar sobre a realidade – mas não a imediata, antes sim a diferida, a das coisas escritas & a dos seres proscritos. É uma existência felizmente desgraçada, a minha. Sou de mísera alegria, pobrete & alegrete mancebo na orla pré-sexagenária do presente campeonato. Partilho com o Menino-meu-Gato, em rotação, a terrena translação. Os bens consumíveis vão-nos proporcionando a ambos a, aliás insistente, subsistência. Ocasiões de banheira são aquelas em que me dou ao despudor de acariciar, com sabão & tudo, o meu próprio corpanzil. Não é auto-amor. Não é oblíquo onanismo. É livrar-me de imundícies involuntárias resultantes da fricção & do atrito entre as gorduras exsudadas & as rugosidades da fazenda têxtil. Em tais ocasiões, não é raro que cados de maus sonhos acabem escoados pelo ralo, eles também. Torço-me depois em toalha gorda, lavada, gulosa. Nessa esfrega, vejo-me (imaginariamente, claro, lá está) de novo em balneário de futebol-distrital, em que quase fui CR6 – ou menos. O resto? É só ir respirando, que o resto sempre vem – e em forma de restos, geralmente. De restos sei eu, aliás. Tenho tido de abocanhar & deglutir alguns – em geral âmbito como em particular minúcia. Mal nenhum. Até o que mal se come bem se caga. De maus usos & piores experiências, ai, ninguém se livra. Não seria eu a nascer excepção. Do comércio comportamental-interactivo é que se faz a humana associação da grei. Esta subdivide-se em três: género-masculino, género-feminino & género-tipo-coiso. (Este último não se divide – multiplica-se; é só ligar o televisor ou a internet.) Mas enfim, sim, é interessante cada coisa em conformidade a cada bico. Não há nisto escandalosa novidade. Do que (julgo) V. falava, era de certas lembranças abrutalhadas que rompem a uma pessoa a seda, por assim dizer, de seu sossego. Mortos, desquites, emaranhações de índole erótico-cavalar, dívidas à Segurança Social, tristezas demoradas & euforias palermas, ingratidões próprias (perdoáveis, portanto) & alheias (fideputices, portanto), etc. Se nem tudo faz arte, tudo faz parte. É de lei-natura. Depois, morre-se – esmifrado o pedaço, estica-se o pernil, bate-se a bota, enrijece-se a nalga, expira-se a derradeira nicotina, volatiliza-se o derradeiro copázio. The End, como no fim dos filmes dUSAmericanos. Fazem-nos cortejo ou não fazem. Derramam-nos flores ou não derramam. Choram-nos crocodilamente ou não crocochoram. É-nos bestuntamente igual. Digo: ser-nos-á bestuntamente igual. Invejável é a paz serena dos mortos. Bons ou maus que em vida hajam sido, irmana-(n)os o passamento. Tenho conhecido muitos casos. Uns, partidos cedo de mais. Outros, demorados como o carago. Mas todos enfim, alfim, deitados ao torrão em género cadáver ou boião de cinza. Já os bebés vivos, bem, são outra coisa. Encantam com tão supina quão involuntária facilidade. Mostram & exercem a inocência dos animais. São rechonchudos, róseos, cheirosos, luminosos. Os Vossos, não sei – mas os meus (digo: as Minhas) assim foram tal-qual. É quase uma pena que os bebés cresçam, se desinfantilizem, por assim dizer, se tornem obnoxiamente adolescentes, redessocialmente adultos, caquecticamente astronautas de lares-terminais. Mas pena pode ser muita coisa – qualquer galinha no-lo reiteraria sem cacarejar duas vezes. Sei bem que sim. Vai da própria polissemia da pena mesma – mas não vamos (não ora) por aí. Era (não era?) da irrupção de lembranças que íamos perorando. Toda a gente – queira-o ou não – é de muita recordação. Toda. Toda mesmo. Farta-me o sarcasmo sempre que alguém se vangloria de só-viver-(n)o-presente. Como se houvesse coisa menos fiável – e/ou menos estável. Perdoado o futuro pela morte em que nos trará & perdoado o passado pelo nascimento a que nos forçou – o mais sensato há-de ser, talvez, saber conviver com a esquizodinâmica de tempos-espaços sobrepostos. (A propósito, ontem até V. citei a sagaz Rosamond Lehmann, não foi? Foi.) O próprio hoje é quase ontem já. Que agora me lembre, a mim, tem sempre sido assim.

777

Arauto da raridade consciente
Flor em absoluto vertical
Raro arauto & flor-de-gente
Cravo terreno & também sideral
& o mais que não tenha responso:
Ecce homo José Afonso.


25/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 775



775

Sexta-feira,
24 de Setembro de 2021

    Crianças protagonizam as páginas de um livro que me tem tomado a atenção por estes dias mais recentes. A narração pisca-nos um olho adulto: porque o narrador (de facto, a narradora) é uma dessas crianças. Corrijo: foi uma dessas crianças. É agora gente-escrita, pessoa em posse de perspectiva sobre o tempo volvido mas nem por isso acabado ou menos dinâmico. O volume tem por título The Ballad and the Source, viu a primeira luz editorial em 1944 & é da pena da ex-menina Rosamond Lehmann (1901-1990). Faço-Vos aqui uma citação, por me parecer ser coisa muito bem posta:

    “Looking back into childhood is like looking into a semi-transparent globe within which people and places lie embedded. A shake – and they stir, rise up, circle in inter-working group, then settle down again. There are no dates.”


24/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 774


Noivos repurificados por esse milagre de tontos chamado literatura

774

    Segue-se um fragmento composto no Domingo, 7 de Abril de 2019, e recomposto depois, na Segunda-feira, 29 de Abril de 2019, e na Terça-feira, 30 do mesmo do mesmo – mais as emendas de hoje. São linhas sob esta sumária inscrição: primeiro esboço. Cá vai:

    Nem o prodígio insensato de acordar viva ao cabo de oito anos e um mês (menos quatro dias) de morta fez com que menos a espantasse o milagre de isso a que toda a gente, à falta de melhor palavra, chama realidade.
    Isto aconteceu ao primeiro anil da aurora – e ao cabo de uma noite sem lembrança durante que a chuva purificara o silêncio do pátio, primeiro, do monte, segundo, e, derradeiro, dos campos de arroz e laranjeiras que à melhor esperança abrem nos corações a ânsia do mar.
    Ainda sem permitir-se o mexer de um lado, a primeira coisa a ocupá-la foi certificar-se de que a seu lado continuava dormindo o homem da sua vida, esse já quando vivo fantasma que havia vinte e cinco anos (menos dezassete dias) se resignara à autoridade óssea do sono até então perpétuo.
    A chuva matrimonial amanheceu de ares rarefeitos pela lentidão da morte dupla, que é a dos casados toda a vida. Sete rosas naturais continuavam coroando o psiché de triplo espelho – uma rapariga & seis rapazes que só então puderam permitir-se murchar de acordo com o ditame da falência vegetal.
    Tudo isto deve ser contado agora por ser agora que contado pode ser. O próprio sofrimento estagnado acaba merecendo remissão, facto que nos leva a preferir a hipocrisia armada de Deus à sinceridade desarmante do Diabo.
    Sendo de diversa natureza os minutos que não servem para os relógios por só serem capazes de contar a eternidade, não é aqui contável o tempo que ele demorou a despertar depois dela. Conta que acordou. Sem interrupção nem lapso, ele continuou de imediato a amá-la para sempre. Isso – e a pensar de pronto naquela sexta das rosas em número sete que primeiro se apagara.
    Ela não fez por menos mas continuou sem falar, no intuito de prolongar a delícia tão simples que é a de negar à morte a loucura de não ter vivido. Noivos repurificados por esse milagre de tontos chamado literatura, acharam-se prontos para o primeiro dia de uma eternidade diferente, a qual costuma ser apanágio das tipografias.
    O anil arterial da alvorada alvejava intermitências na persiana, que era preciso descerrar para reiteração do pátio, onde já se alinhava o famélico elenco de cães, gatos, patos, pombos e pardais que desta casa houveram sempre mercê. Então, não menos que olímpico, ele levantou-se do leito e foi-se a ferver o leite para ela, que ela preferia com café negro de seis colheres em água só para quatro.
    Era como se nem segunda-parte deste livro houvesse – mas tão-só o prodígio de a humildade pagar em amor o infinito amor recebido, esse mesmo que a morte não entende, Deus não compreende e o Diabo impõe.

    É depois dela que ele acorda para a despesa impagável de se ver vivo quando nada ficou por pagar. Sente dela a volumetria morna de fêmea fértil, essa ilha sem homens por todos os lados que um eu torna mãe. Pasma um pouco ante a febre que desenha o tecto do convalescente. Sente a existência pressurosa dos animais no pátio, a vigília do cão preferido, a constante indignação sopeira das galinhas, o chumbo alado das pombas, a impertinente alegria dos pardais, a solidão de professor-primário do alto milhafre.
    Um roçagar de papéis pela fímbria inferior da porta da rua: cedo de mais para o carteiro, terror fantasmático do espectro que escreve e quer dar a ler. É ele quem então reabre as amáveis hostilidades da fala:

    – Sentiste aquilo? É quê, cartas?
    Ela escutou também os papéis metidos à força em casa:
    – Não deve ser cartas, deve ser folhas de diário tingidas e atingidas por alguma dessas sete rosas.
    Seis – corrige-a ele.
    Sete sempre, homem, o Jorge continua a contar.
    Que é dele?
    É doutro livro, não te ponhas já a pensar nisso, que me morres outra vez.
    
    Ele serve-lhe o café com leite no ponto de fervura. Torrou pão de há quase vinte anos, lambeu em ponta de faca a manteiga de que ela lhe foi nata sempre. Estão na cozinha de dois metros-quadrados, continua pingona a torneira da água-quente, não há maneira de cá vir o Zé Agostinho.
    Ele:

    – E aquilo da carta?
    – Chama-lhe carta, pronto. Se calhar, é carta, se calhar tens razão.
    – Que é que diz?
    Uma das sete volta para cá, eu estou doente, eu sou uma viúva doente, o Tempo apanhou-me a jeito, já lavo o teu mármore, queixas de amor, coisas assim.
    – Assim como?
    – Amor. Muito verso, muita cantilena. Miúdo que não aceita o preço do pão: ou então: que é suor escusado.
    – Que o Diabo amassou.
    – E Deus vendeu. Sim. Isso mais ou menos.
    – O meu Pai, uma vez…
    – O teu Pai era bom homem. Lembro-me dele: azul-índigo diluído em água, olhos da segunda-rosa se os da segunda-rosa não fossem tão castanhos.
    – O Van Gogh, no entanto…
    – Maio acaba sempre cedo.
    E ele:
    – Nós não.
    E ela:
    – Nós nunca.

    A questão daquilo a que chamas carta – diz-lhe ela.
    Estou a pensar noutra coisa – isola-se ele.
    Outra vez. Lá estás com os ciprestes azuis do Holandês.
    O azul é mais pobre do que o verde.
    Tenho de lavar a cozinha com soda-cáustica: cheira a abandonado, isto cheira a abandono.

    Pouco demorou até que a cozinha cheirasse a vento-solto dando em água fresca. Baixa a ponto de mal meã, ela desenvencilhava a sua morenidão de índia mercê de gestos precisos, de esforço calculado ao milímetro. Louças, vidros, torneiras, fogão, frigorífico, madeiras, chão, paredes e tecto só tiveram de haver-se com o brilho incandescente que as melhores almas têm por limpeza.
    Enquanto ela lidava, ele arriscou dois passos no pátio. O cimento gretara-se à maneira dos pergaminhos monásticos – e pelas gretas rompiam, com branda mas invencível fúria, madeixas de erva azul.

 

23/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 773


773

Quarta-feira,
22 de Setembro de 2021

    As duas entradas imediatamente precedentes primam por, primo, opor-se, e, secundo, complementar-se. De facto, a de número 771 carrega seu bocado; a de 772 alivia o fardo. São oponentes mas não se digladiam; são complementares mas também não andam por aí aos beijos.

22/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 772

© René Magritte



772

Terça-feira,
21 de Setembro de 2021

    A senhora minha Mãe não lia nem falava Francês – mas:
os célebres (& magníficos) versos de Paul Éluard

    “La nuit n’est jamais complète
    Il y a toujours puisque je le dis
    Puisque je l’affirme
    Au bout du chagrin une fenêtre ouverte
    Une fenêtre éclairée”

não lhe eram estranhos. Nunca os soube, nunca os leu, nunca ouviu dizê-los – mas:
era veramente a filosofia-de-vida dela. Era. Sempre foi.

    No auge da amargura uma janela aberta
    Uma janela iluminada







21/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 771 (tal como ficou, que entretanto se fez noite)

Alberto dos Santos Abrunheiro (1914-1980)

pintado por Daniel dos Santos Abrunheiro (1917-1994)



771

Domingo,
19 de Setembro de 2021

Alegres facadas na Malveira
De & entre meliantes sem livros
A escumalha é activa, é laboriosa
Também faca brilhou na Cordoaria do Porto
E em Santos, Lx., é a mesma a alegria
Imita-se do film’ollywoods os gangues
Ruas degradam-se ao sol inclemente
Viveiros estercorosos a céu-aberto
Os ajuntamentos de “jovens” em festa
A anormalidade quer ser, e é, a norma
Tatuados iletrados com direito-de-cidade
Os jornais televisivos rejubilam
O mironismo boquiabre os pategos
“Políticas para a juventude” mortas à nascença
As escolas diplomam por grosso
As universidades, por atacado
Só nas creches há por enquanto sossego
Putrefaz-se qualquer assomo de ordem
O “progresso” era afinal isto
A “educação” deu afinal nisto
A “justiça” é dos juízes-astros
O “jornalismo” é a liga-dos-campeões-da-asneira
A “opinião” é toda ela “especialista”
As “novas-religiões” impõem a “nova-lei”
Ele é o lobby-gay
Ele é o lobby-afro
Ele é o lobby-vegan
Ele é o homem-lobby-do-homem
Ele é o lobby-do-coitadinhismo
Ele é o lobby- católico-sarraceno
Ele é o lobby-judaico-jeová
Ele é a moda do budismo-de-sacavém
O existencialismo-de-alverca
O nihilismo-de-rabo-de-peixe
O fotocopismo-dos-novos-talentos-de-imitação
O carneirismo-das-redes-anti-sociais
O estrumismo-da-livralhada-tipo-da-vinci
Mas se nada se ganha, nem tudo se perde
Não se perde pela finitarde o oiro da solidão
Não se perde o arvoredo ainda vivaz
Não se perde o azul substantivo por cima
Nem a força do húmus produtor por baixo
A visão úbere da mulher com ancas de parideira
A ubiquidade fotográfica da Beleza distraída
O indivíduo é afinal dono do ar que respira
A massificação merdosa não é inescapável
Inescapável é a morte, é o nascimento
Ondas ideais dão à praia improvável
Os domingos vaporizam qualquer espera
“Pessimismo-iluminado”?
Rótulo, como tantos outros, apenas
“Vontade-de-vida”?
Outro, que mal não faz
Há muito dorme o bom Schopenhauer
O pessoal continua porém a reitera-lo
Insciente do velho, sim, continua
É engraçado & é verdade
É trágico & é verdade
Que brincadeira, andar até parar
Apaixonarmo-nos comicamente
Desintegrarmo-nos cosmicamente
Vale-nos de quando em vez o quê?
A velha sempre moça Beleza
Num andar de prédio escaqueirado
Numa casota de cão esquecido
Era Atman o cão de Schopenhauer
Dizem que Alma para os budistas
Atman/Alma, não mijes aí
Ouço na luz o crepitar da pele
Cirando por viáticas atenções descampadas
As questões filosóficas fundamentais?
Continuam & continuarão
O que não percebo é o lixo pelo chão
Com tanto contentor apropriado
Não percebo o despejo gratuito & até vil
Acabei saindo um pouco à tarde dominical
Levo calçado o calçado vindo do sapateiro
Restaurado, sabe-me a novo
Fácil & ligeira é a alegria do pobre
Salazar-salazar-salazar
T’arrenego-t’arrenego-t’arrenego
Saio ao sol não excessivo do domingo
A brisa fresca despenteia ao de leve
O comum andante, ocioso po’pat’eta
A solar lareira alta hoje não calcina
Andarilho-me por sítios batidos
Batidos pelo tempo-em-mocidade, digo
Chega a ser não-desagradável estar vivo
O cuidado-todo é porém pouco-sempre
Cuidado com a lancinante propensão
Lancinante propensão à melancolia fácil
Difícil é não sentir dos Amados Mortos
Deles a falta intransigente & certa
Hoje, logo hoje, dia tão bonito
Tão doming’bonit’o, logo hoje
Dezanove-de-Setembro-de-Dois-Mil-Vinte-e-Um
Domingo-Dia-do-Senhor-mas-das-Senhoras-também
É o primeiro dia sem José-Augusto França (98 anos)
Ilustre nome das nossas, se as há, Letras
Historiador de Arte ele foi afincado
Tenho livros dele, que até folheio
Era Nabantino de nado, morreu em França
Morreram ainda & também:
Coimbra,
António José M.F., 67 anos
Maria Emília D.R., 74
Maria da Soledade P.V., 91
Cantanhede,
Alice F.C., 89
Figueira da Foz,
Vítor Manuel P.F., 71
Miranda do Corvo,
Fausto C.A., 74
Montemor-o-Velho,
Maria de Nazaré Z.S., 85
Tábua,
Eduardo Manuel A.P., 78
Seia,
Maria Helena F., 82
Sei que sim porque vem no jornal
Amanhã talvez mais facadas na pátria
Animem um pouco o morredouro local
Não é muita a compaixão que sinta
Nem esparsa a felicidade como arroz-aos-noivos
Os noivos-bonecos-de-topo-de-bolo
A bailarina-caixinha-de-música
O psiché-de-triplo-espelho-infinit’infância
O Vauxhall à porta, o Cortina
Jeremias vivo antes de Aveiro & do Futuro
Cheio-de-papel – assim chamamos ao rico
E no entanto, como tão ’inda há pouco
Como tão ’inda há pouco o jornal
Do jornal a fiel Necrologia partícipe
Do rol de figuras-nomes-idades-locais
Com ou sem Vauxhall
Com ou sem Cortina
Saio no & ao Domingo-Luz
E nada de António Fragoso, Compositor
E nada de Amadeo de Souza-Cardoso, Pintor
E tudo de Grip’Espanhola-ChinaCovid
Cem anos depois ainda aos milhões os tostões
Uma vez por semana visito um Irmão
Alquebrado mano, da queda tocado
Outro morreu além-mar
Outro em um autocarro desta Urbe
Cada um amealha seus desfavores
A graça esteja com outros, à-mãe
Poupei sempre os meus Amigos à novidade
Disse-lhes consabidas imitações do Nada
Retorquiram-me eles igual moeda
Perdi, achei, decompus, refiz
Apontai-me Vós quem o não idem
Agora descanso sem sossego
Supra o sublimado amor não-sexo
O amor-vero, esse do sangue
Esse que do gene ao génio traz
Traz a pessoa pendurada
Quando racional, não
Quando serena, não
Quando melancólica é que sim
Quando triste-por-nada, sim
Em 1981, eu & um rapaz-João
Vimos Didier Lockwood no Gil
(Gil é Teatro Académico de Gil Vicente)
Didier + Christian Escoudé + Henri Texier
Inesquecível esse Julho afinal único
O que não percebo é o lixo pelo chão
Em Agosto de 1998 o João acabou-se
Eu não, eu estou firme neste Verão
Até pelo menos dia-quê-não-sei
Sei de outras minúcias doutros andamentos
De por exemplo Lisboa, Cidade não-Coimbra
Mas um pouco minha afinal por em ela eu
Sozinho como a Ursa-Polar entr’estrelas
Já então eu era pai de Filha mas sozinho
E olhai que ser sozinho em Lisboa é pior
É pior do que ser sozinho em Coimbra
Ser sozinho em Coimbra é apesar de tudo
É apesar de tudo ser reconhecido por alguém
Eu tenho passado a vida a reconhecer ninguéns
A começar por & sobretudo ao espelho
Esse senhor-rapaz a que canhotamente faço
A que canhotamente faço a barba, rapo a espuma
Como a onda do mar-figueirense, o da Foz
Onde o Mondego morre para renascer Atlântico
Estoril-Praia Recebe Este Domingo o Sporting
Mas só o meu Tio Alberto sabia de Ciclismo
O meu paterTio Alberto de pern’amputada
1914-1980, parece pouco mas
Parece pouco mas foi eternitarde tal vida
Alberto dos Santos Abrunheiro
Solteiro como as freiras da superstição
Quem te desse um quarto-com-WC
Numa casa em que crianças
Em que crianças te chamassem Tio ou Pai
Não percebo é o lixo pelo chão
O cansaço chamado despejo
O ires-t’embora-&-nem-um-beijo
Me molhe a cara de tua feição
Onde (antes disto dos híbridos), onde?
Digo: onde antes disto-híbrido mudar-o-óleo?
Digo: Ganho um dia ou perco a noite?
Que horas são as gastas em tribunal?
Qual é, se não outra, a magreza branca
De Albert Camus (1913-1960), à face de Paris ?
Albert (é justo) Prémio Nobel
Alberto é o meu Tio
A Brutidade é outra coisa
Existe onde campeia a ignorância
No meu Portugal, o CDS de Adriano Moreira
Esse mesmo CDS, sim
É hoje de um miúdo daqui perto
Mas só depois de ter sido do Portas
Do Bloco, perdão, Miguel, perdão
Independente
Perdão
Porra-porra
Ainda agora enterrámos o Sampaio
& nada de 25-de-Abril nem 28-de-Maio
Esperai(-o)
Deve ser difícil ser um amputado
Pelas minhas (de Pai) contas em 1933
A gangrena é do carago, corta muito
1933 é o da Constituição Salazarenga
1933 é o do Hitler subido a Chanceler
Mas 1933 é também & sobretudo
O do nascimento de Ruy Belo
O do nascimento de António Osório
Falei de Alberto dos Santos Abrunheiro
& falei de 1933
Mas só em 1943 é que
É que se casam as pessoas
Homemulherdemeumal&bem
Pai & Mãe
25-de-Julho-de-1943
Casamento do Irmão de Alberto
Daniel, o Noivo
Com
Hermínia Leite dos Santos
A belíssima noiva
Morena & branca & grávida
Linda como os poentes-de-postal
Mas sem postal nem fotógrafo
Miúda afinal apanhada simples
Na corrida-Schopenhauer da progénie
Falo devagarinho
A quem ouve pouco
É regime de louco
Nada pão ou vinho
Datas esquecidas
Esforços deitados
Papéis apontados
De nuvens já idas
Lado de nascente
(Com o berço posto)
Mistura-se a gente
Mesmo a contragosto
Há-de sempre ser
A pessoa estranha
Se portuguesa Espanha
Ou Portugal nascer
Pequena esperança
Nascida do nada
Tem resposta-pronta
Dessa pequenada


17/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 770

© Edward Steichen



770

Quinta-feira,
16 de Setembro de 2021

Os dias tinham de vir, estes de menor afluxo de matéria dizível.
Quanto à matéria sensível-pensável, essa é de sempiterna duração.
Pelo calendário, vai-se acabando o Verão devindo inacabável afinal.
A condição da vida corporal continua sujeita a sufocação.
Olhei hoje o meu roupeiro: a roupa-de-inverno espera sine-die.
Não me faltam, é certo, leituras com que resgatar-me à raiva.
Raiva, sim: porque como peixe-fora-d’ água me sinto há anos & anos.
Fecho-me. Leio muito mas é fechadamente que o faço.
De pouco ou nada sou tenente, pego na vida & não sinto grama.
Agora mesmo que afinal algo digo, transpiro porque-sim.
À breve chuva da véspera sucedeu o ferro mordente deste sol.
É doentio, uma pessoa sente-se presa de uma maldição insensata.
Tudo isto são porém lamúrias pouco pudorosas & zero interessantes.
Alguma coisa fiz hoje, enfim, que nem tudo se perdeu, nem tudo foi vão.
A literatura é que foi pouca, dias assim também são gente.

16/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 769

 

© Adelino Lyon de Castro



769

Quarta-feira,
15 de Setembro de 2021

    Interessam-me detalhes de dúbia importância. Toda a vida-pensante tenho sentido (& aderido a) tal interesse. A diversidade campeia. Mesmo em certo período mais letárgico, vou colhendo sinais & índices que parecem pretender alguma coisa da minha atenção. Não há uma norma evidente, uma regra nítida.
    Pode ter alguma coisa de trabalho rural
    Esse parentesco da pessoa com o orbe
    Ligação-directa vida-vivência-sobrevivência.
    Na manhã anónima, parece-me razoável seguir por tal senda. Nem alternativa vislumbro, valha a franqueza.


15/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 768

© Stephen Shore

768

Terça-feira,
14 de Setembro de 2021

    Ontem como hoje, trovoada & aguaceiros veementes (mas de curta duração). Eu gosto. Sempre gostei destas fúrias da Natura. Desde que não se aleije alguém, gosto de ver o concerto & o desconserto dos elementos. Uma pessoa sente-se mais ínfima ainda do que de costume.
    Já pastores & rebanhos se recolheram a abrigo. Que noite aí se prepara? Esperemos: qual for, ela é certa. Também A.J., que vive sem companhia sequer de animal, já fechou a porta. A telefonia canta baixinho no seu canto. Há que comer estas bananas, já não duram muito, estragação não vale.
    Queimaram os barcos na praia. Só em frente era possível pensar & seguir. Mesmo tal não dura muito. Ao estabelecimento de padaria-pastelaria vêm pessoas desirmanadas, sacudidas como moscas pela chuva em chamas. O Bergo dá uma ajuda com as cadeiras, depois dão-lhe o pequeno-almoço como gratificação. Pouco passa das seis horas.
    Aqui, já passa das vinte & uma. Há caldo feito há pouco. Se A.J. morasse mais perto, dar-lhe-ia uma dose boa de caldo novo. Ele vive sozinho, nem cão tem. É como o Bergo, mas o Bergo ainda tem menos de seu. E, como previsto, são as coisas o que têm de ser. E as pessoas também têm, por mais que de pouco ou nada sejam tenentes.



13/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 760 a 767

© DA.

760

Sábado,
11 de Setembro de 2021

    Com Maria da Conceição vim ao Ventura, desjejuámos bem & devagar. Conversámos través uma mansidão de boa-ventura. Ela contou-me do curso, das irmãs & do irmão. Bela Maria da Conceição.
    Também o Negro Encarnação veio a pequeno-almoço. Vi-o papando bolos-de-bacalhau, sandes de iscas, dois topázios, perdão, dois copázios altos de tintol.
    Nada disto foi hoje. Há bem Ventura nem boa-ventura. Foi quando saiu o disco do Fausto, o Por Este Rio Acima, vejam bem.
    Também o Café Abadia fechou portas, Reabriram-no com outro nome, outros móveis, outra geração. Estas coisas entristuram-me mais do que é são, São.

761

    Ajaezada de esmeraldas azul-citrinas, a senhora impôs seu aparato través os sentados no Arcádia. Esposa abastada de advogado, mula de antiga louçania, Elvira de baptismo. Colo branco, de leite duro, sobre que as esmeraldas de limão-celeste. Mas esperai: não pode ser no Arcádia, fechado há muitos mais anos do que o Abadia. Tem de ser em sonho que durmo, presa de uma sensação de irrealidade até sonho adentro. Fulguram chispas & centelhas de um lume de mica, serpentina, jaspe & quartzo. É um dédalo de riscas insculpidas em penhascos de papel.

762

    Em outro dédalo, esta autoconsciência: nunca gostarei do presente.

(763)

    (Quanto ao 762, é tão desanimador quão vero.)

(764)

    (Olhos monossilábicos de estupidez pura: os do rapaz que me mirou em espectacular incompreensão. Guardei os adjectivos para linhas ulteriores: monossilábicos & pura.)

765

Mas, olhai, é Sábado.
Véspera exacta da desértica placidez dos domingos.
Alta como uma flor
(qualquer)
passa a menina enamorada de a seu lado o namorado.

766

Domingo,
12 de Setembro de 2021

    Momentos há, incomuns embora, em que certa lucidez me não desampara a loja. Atocho o cachimbo mental, sujeito a sevícias & a ordálios a distracção, descuido a maquia ciclópica que a idade já me perfaz, malbarato dissensões intestinas (id est, ex-familiares), frúo a rima dos substantivos revelim & lascarim, tachorno de alfazemas & violetas o veludo da ideia pitoresca, relembro a piscosa (de robaletes) Quinta do Canal (“Rui, tem música? Tem música!”), vagueio alpondras & bambúrrios recordados, emborco mais do que embarco, durmo fora de mim o mais que posso (e pouca é tal posse), tantalizo a carnalidade hoje micção, perdão, ficção, sei corredias & corrediças as alegrias atomizadas pela ingente indiferença mundial, gravuro a água-forte esconsas encostas escalvadas, esvazio momentosos cunhetes de munições, aprecio ao imaginado pôr-do-sol (mas são as cinco da manhã, Zé, Rui, Jorge) garranos refulgindo & passos tropeando a ouro acústico, por taludes resmoneio a mais crocitada, a mais bufida, a mais tinida solidão, a trancos de escantilhão sou euforicamente triste, mais por mortos que por mortais me interesso, salvados, despojos & destroços atiro a uma praia a que me esqueci de ir, momento houve.

767

Não sei se gostaria de saber quando despedir-me.
Faz-me por enquanto falta estar vivo por aqui.
Caminhei sem alheia presença uma hora no domingo novo.
O Cristiano marcou ontem dois golos no teatro-dos-sonhos.
Vêm a farináceos & a lácteo-cafeínos os vizinhos.
O mundo não é breve, breve é por ele a passagem.
Caras às vezes rostos mas raramente rostos, feições apenas.
É de novo o domingo-velho, pausa-de-deus, arrebol-de-pobres.
Solene é de enterro-grande a manhã em Lisboa.
Sepultam Sampaio, o que autorizou touros-de-morte em Barrancos.
Talvez agora conheça o que é estar ante a espada mortífera.
Não seria decerto mau homem, pareceu-me apenas banal.
Foi todavia Presidente da República de Portugal.
(Também o fantoche-Carmona, também o inefável-Cavaco.)
Adiante, tenho mais que desfazer.
Passou um perfil de vivo que um morto me recordou.
Ao canto-nascente bebem malvasia dois maganos.
São septuagenários, sabem-na toda, curtem a duração.
Parecem-me envelhecidas as crianças, não sei porquê.
Profissionalizadas, quero eu dizer, de menos inocência.
Não sei se gostaria de voltar a criança.
Talvez a velhice a tal me condene, a patibular idade.

11/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 758 & 759

© R.D.A.



758

Sexta-feira,
10 de Setembro de 2021

    A luz mesclava as qualidades do frio às da cinza
    na manhã de unânime maravilha só local.
    Minha era então uma mocidade que, hoje ’inda,
    me assoma a lapsos em o ideário pessoal.
    Em um trecho de via, sinais laranja-cónicos
    demarcavam cautelas viajantes à passagem.
    Em paquidérmica lentidão, pueris, cómicos,
    os pesados rodavam bramando na paisagem.

    Os oito versos acima expostos, compu-los em mais ocioso momento de uma manhã ulterior a si mesma. Anima-os, julgo, a velha (velha em mim) necessidade de experimentar a elasticidade idiomática. Em o plano pragmático mais chão & mais francamente comezinho, nada tenho a ou que dizer ao vizinho. O meu ócio, o meu momento, do meu idioma a elasticidade – de/para nada serve ao vulgo. Esta verdade estima em carestia o vulgo mesmo, não o subvaloriza – note-se bem isto, por favor (se não por caridade).
    
759

Na plataforma da gare, em breve.
Juntar pequena maquia, ir limpo.
Fonte azulejada a azul-cerúleo.
Janela debruada a encarnado-fogo.

O viajante leva-se em leitura activa.
Vai ganhando papéis que o oficiam.
Nenhuma banalidade o ofende.
A verdade é privada, geral a ignorância.

Sobre colcha azul-tempestade, os livros.
Um, pleno da gesta doyle-holmesiana.
Outro, idem de fantassins napoleónicos.
Outro ainda, de Wenceslau de Moraes.

Experimenta ler Durrell no comboio.
De barco, embarca tu em Rilke.
No autocarro, os compassageiros:
deles, os rostos tornados medalhas.

Vento, vento constante, instante força.
Tão pouca gente a quem falar dele.
Longa, longa frase/verso ele soa.
E o viajante de papéis se perdendo.

Tive um Irmão nascido no exacto
vigésimo-quinto aniversário da morte de
Rilke. Também esse Irmão já não respira.
Esta conta é real – resto-zero inclusive.



10/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 757

© Berenice Abbott


757

Quinta-feira,
9 de Setembro de 2021

    Contado a direito, movimento descendente. A rua fervilha de operários & de escolares – todos em moção. É muito cedo, tudo parece possível. Não é contado no momento – são precisos outros mo(vi)mentos. Tem de morrer gente, nascer outra para ocupar as vagas. A força disto: como a do mar redesenhando a costa. Sem exotismo de postal-ilustrado, sem sublimação tosca: dar conta da vida em vidas. Resistir à invisibilidade da formiga: sim, também.
    Perspectiva aérea – precisa-se. Do passado como do intangível presente. Penso no Verão de 1982, depois no de 1999, nos dois ao mesmo tempo. Mesmo-tempo, disse? Mas só em escrita é possível, por mais improvável.
    Ainda ontem me senti agraciado pelo tempo pluvial. Fiz viagem breve com ida-volta sem surpresas. Não trabalhei muito. Apreciei a obra exposta de um hortelão. Sim, é mecânic’aótico o Tudo-que-É-&-Há. Nenhum teísmo. Nenhuma humanidade primordial. Um fósforo de consciência – e é tudo. Não é (não deve ser) assustador: não há mortos em pânico.
    Posso ir – e vou – por diante. Sim, um objectivo há que me seduz: o da pacificação interior. Desemaranhar pré-conceitos (herdados, adquiridos, casuais, sistemáticos, recorrentes, repetidos & repetitivos). E o Inverno de 92/93.
    Se, como em L.W., o que possa ser dito claramente, seja dito; o que não, não, então: eu vou de canoa no lago frígido, aponto a barca ao vértice invertido do fiorde, mas este é tão mais longínquo quão mais perseguido, um homem não é só de ferro, desço na margem norte, subo à casa que ali me fiz. E se isto não é claro, não sei que seja trevas.

09/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 756



756

Quarta-feira,
8 de Setembro de 2021

Têm-se-me enviesado os dizeres escritos ultimamente.
Pasmo muito, cismo muito, fantasio alguma coisa
– mas escrever, nem tanto, não tanto quanto preciso de.
Assim é & tem sido. Finjo a sós que mais ninguém aqui está.
Digo: na mente, pântano a que vão beber os fantasmas.

Estas linhas, escrevo-as cinco-a-cinco para V.ª comodidade.
Não é poesia, parece sê-lo por os quintetos semelharem estrofes.
Não é poesia, semelha sê-lo por as quintilhas parecerem estâncias.
Hoje é dia de ir-a-ver-Irmão, tarde meada, quarta-feira.
E talvez não-coincidência seja o escrever isto na manhã.

Não-coincidência: porque águas celestes tomam a terra.
Há muito não acontecia, pelo que mais valoroso me é.
Imita um inverno que a realidade me interdita.
E eu prefiro a invernal vicissitude ao estival langor.
À janela indo, topei molhada a realidade possível

e fiquei contente como um menino cismático,
desses meninos de antigamente que iam à escola sem esforço,
desses que as máquinas não zombieavam, por assim dizer.
Ainda assim me sinto & me sento, meio-dia dado já.
Raspei a barba devagar, evitei-me como pude o olhar adentro.

Sinto (nitidamente sinto) certa animação no bosquete.
O bosquete das traseiras deste prédio, digo.
O arvoredo está a beber directamente do céu.
As aves mesmas do meu dia-a-dia alegram-se meninamente.
Não é temporal, não é violência, é tão-só doçura pluvial.

Tinha meia-couve a cozer, umas lascas de carne-branca, massa.
Lidei pela casa sitiada pela chuva branda, como transparente fogo.
Daqui a quatro horas, saio, vou ver o Zé, levo calma química.
Levo, também, comida para os gatos de lá do Lar, cinco ou seis.
Torno depois a casa, há-de ser noite, mesmo sem escrita.


08/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 755

© DA.



755

Terça-feira,
7 de Setembro de 2021

    A Entropia torna norma a desordem, incluindo o raciocínio humano. Experimentamo-la desde a nossa primordialidade mesma. Não parece terminável (nem determinável) o conjunto – mas a partícula autoconsciente tem todas as razões – as da razão – para se crer pré-(de)terminada.
    Este jogo deixa perceber algumas regras. Estas são inclementes. A idiotia da antropomorfização condena-nos à cegueira. Não temos de ser desumanos – temos tão-só de nos reconhecermos partículas ínfimas sujeitas, como tudo o mais, à Entropia.
    Ainda bem que a alma é uma impossibilidade.
    Imensurável por nossas mãos, o céu é um sempre sem nós.
    Não me vereis divinizando um bocado de pau.
    Não queimarei tempo rondando qualquer pedra gatafunhada.
    Não há quem não seja faroleiro do oceano-de-si.
    E, depois como antes, os itinerários pessoais não cessam com a morte. Digo: alguns itinerários pessoais. Penso já em dois casos: Bill Evans & Chet Baker. Ambos de supina Beleza (musical), ambos de máxima tragédia (a morte precoce – et pour cause etc.).



07/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 754

© DA.



754

Segunda-feira,
6 de Setembro de 2021

Algumas coisas acabam deixando conhecer-se.
Tornam-se assim parte da bagagem ambulatória.
De porta em porta parecem querer falar as casas vazias.
Muito há quem tenha que dizer mas não arrisque fazê-lo.
Exaltante como fazer a ponte de ponta a ponta:
ao vento da manhã, na luz nova da cidade velha.
Luísa doente anos a fio, despedida afinal tranquila.
Artur com nada lhe faltou, agora vai ter Joana.
Uma oportunidade, dizem. Nada aproveitam, os conselheiros.
A infinitude de temas dinâmicos é assaz sedutora.
Nenhum herói figurado cumprirá passivo ensejo.
António Fragoso, Amadeo de Souza-Cardoso.
Sebastião da Gama, Cristovam Pavia.
Mário Botas em contacto com António Osório.

Podeis ver/ler em tudo isto um laconismo caótico.
Não andareis excessivamente desavindos para com a verdade.
O objectivo chama-se concisão/depuração.
É um entretenimento individual, uma consumpção.
Não é pasto para acefalia arrebanhada.
Também não é esclarecimento ou iluminação.
Egoísmo, egocentrismo, solipsismo – cartas furadas.
Cartas viciadas, pensando bem – e desperdiçadas.
Não há que enganar: o entretenimento é fulcral.
Quem não repara que cada raciocínio ressoa no singular?
Uma vez, sendo domingo, dormi todas as horas de luz.
Ao despertar, a bússola interior desgovernara-se.
Isso aconteceu num dos pretéritos da minha galeria.
Não me tornou diferente nem melhor nem herói.
Algumas horas bastaram a repor o ciclo luz-lua.
Não há além-vida: só elementos dispersos, nenhuma unanimidade.
Unânime idade, só agora-mesmo, já-agora, para-já.



05/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 753




753

Sábado,
4 de Setembro de 2021

    Mesinha-de-cabeceira com garrafa de vidro transparente meia de água. Medicamentos em final de provisão. Retrato de um velho com tarja oblíqua negra. Tudo por desempoeirar. A cabeça da adormecida atira farripas brancas da bainha da manta, que é verde com clarões rosa. Prímulas morrem em um jarro de vidro azul. Fora, no pátio comum do prédio, o Sábado já começa a despontar.
    Deu outrora lições particulares de piano. Sobrevive com uma pensão mínima. As meninas já não aprendem a tocar piano nem a falar francês. Faz de cozinha o canto do lume. Uma folha de mármore assente em quatro toros, louça portuguesa, púcaro & cafeteira de folha. Uma terrina de marmelada, meio pão-de-segunda. O futuro chama-se Domingo.


04/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 749 a 752

© Robert Mapplethorpe



749

    Da janela do comboio, o mundo parece mais rápido do que a vida.
    Em curso, como na mente, os tempos do Tempo: instantaneidade de figuras, situações, palavras atiradas ao ar como as aves costumam.
    Amplos campos de que reconheço os cultivadores: e como eles redigem em fruto-produto cada jornada, a tempo do Tempo.
    Não saberia responder (mas não mo perguntam) se é o pretérito a instaurá-los ou o futuro a consumi-los – eu não sei.
    Sei que voltei a dormir a horas ponderosas, levantei-me às cinco em prontidão de trabalho, dactilografei quási uma hora, hora a que o mundo não atrapalha.
    Concluída essa operação, separei os papéis de que a manhã necessita: aqui os hei, ei-los aqui. Para almoço, sobra-me de ontem vaca cozida com arroz, limpo manjar cuja nomeação não destoa em pauta literária.
    Da janela do comboio, quando rapaz, algo me adiantava o perigo da velocidade. E não o do campo/mundo mas o da vida.

750

Sexta-feira,
3 de Setembro de 2021

    A cabeça funciona a quanto vapor pode. Está em permanente oposição eu-mundo. Não é uma distância pacífica. Há condicionamento biológico, psíquico, social, cultural. E há que fazer algo quando & enquanto está acordada. Ainda não lhe veio – ou se lhe impôs – a doença terminal ou o brusco desastre letal.
    Que temos hoje?
    Um crime em Metz, France, no ano 1998 d.C.
    A anedota trágica da ditadura albanesa do Enver Hoxha & C.iª.
    O esplendor goleador de Cristiano Ronaldo.
    E o sentimento justificado de nenhum eu ser superior a outro. À mediocridade própria não falta espelho por a alheia idem.
    Música & Literatura são a vi(d)a propícia. O resto é a certeza-da-morte-em-o-porvir. Certa pureza não é impossível ou sequer improvável.
    Em mente, vivos & mortos convivem.
    A cabeça visa esclarecer-se, ser partícipe da luz. O modo mais recorrente é a Poesia, arte que demanda a verdade mais depurada. Paradoxo real: até a má poesia a procura.
    Em certo bosquete próximo deste caderno mesmo, as aves voam aTempo. É maravilhosa pensá-las contemporâneas de uma existência atemporal. Não as vincula quaquer sofrimento humano.
    Esta cabeça que medeia os meus ombros? Esta apenas: não melhor & não pior. Também ela contemplou alguma alegria, certa ordem elementar.
    Em Metz, a assassinada Chantal, mãe de Justine & esposa de Didier.
    Na Albânia, a caricatura (mais uma) da Utopia.
    Não só pureza ou verdade: também o desajustamento integra a necessidade poética. Um certo a-mais-no-conjunto. E no gracejar e na ironia e no não-raro sarcasmo cruel. Autovitimação é que não. Inteligência suficiente para evitar tal ardil. (Autovitimação em vez de autovitimização; contextuar em vez de contextualizar.)
    Como pacificar o luto?
    Como resignar-se ao inaceitável?
    Como aceitar o intolerável?
    Como escutar alguém – a bem?
    Música, Literatura. Canja a cozer.
    Física & Química.
    Mudar as fechaduras deste abrigo.
    Fonte azul no verde panorâmico.
    Incessante demanda.
    Oclusão & reclusão.
    Denegação perpétua de gente que não merece a própria sombra – quanto mais a luz. Perícia afinal simples: silêncio-em-desprezo.
    Edmondo de Amicis – finalmente lido na íntegra.
    Compreensão de Proust/Joyce/Pessoa.
    Catalazete/Oeiras.
    Norte e Soure.
    A Língua Portuguesa como Viagem Vital.
    Aceitar que nunca se irá a Paris. Nem a Londres.
    Continuar escrevendo textos esquisitos.
    Unificação pessoal.
    Seguir guardando pétalas entrepáginas.
    Dante. Machiavelli. Italo Calvino.
    Eliot. Woolf. Greene.
    A senhora de Sévigné.
    A insuperável Yourcenar.
    E eu (a cabeça, digo) que não queria senão um Verão gentil, anoitecer em segurança na tua (de ninguém) pele.
    Reza-se hoje missa-de-sétimo-dia pela alma de Rui Manuel Marques Borges. Percebo a tradição. Isso a que chamam . Nenhum rito & nenhuma metafísica o devolvem todavia em-físico. Em pessoa singular. Em trabalhador-assalariado-contribuinte. É na terra onde fui infante. Depositaram-no no terreno-panteão onde apodreceram meu Irmão & meus Pais & meus materAvós & tantos Amigos meus. Festim esquisito. Olhai: nem salvação nem perdição.
    Mas:
    Como pacificar a luta? Que cabeça para tal & tanto?

751

    A partícula reflexa
    deve incidir
    não sobre o verbo-auxiliar
    mas sobre o verbo-principal,
    esse que infinitivamente
    volve absoluta
    a acção universal
    da oração (ou ora’c’ção).

    Penso nisto quando já não amo.
    Nem a V.ª ausência
    nem o V.º ter sido presente.

    Laranjas & pergaminhos.
    Se há perfeição – é a da impotência.

    A diferente entre Jesus Cristo & o Pai Natal
    é mensurável pela tabela-de-vendas
    não por o nosso vizinho socorrer os nossos filhos.

    Espero como desespero a tua morte,
    Como a minha não desespero.
    Isto vem do nascer, não vai da sorte.
    Quero & não quero, não quero & quero.

    (Depois de ver-te hoje, trouxeram-me de volta a este papel.) É um entardenoitecer de doçura exclusivamente portuguesa. Escolho um sítio a que os trabalhadores (ganhadores do dia) vêm temperar-se um pouco. Exerço um silêncio só por dentro retórico. Gostaria de este ser um Setembro como os de antigamente. Não sei que será. O futuro é, quase todo ele, incerto. Juntei provisões para a noite. Não tenho plano para amanhã. Hoje é dia de escrever este papel. O meu caminho é paginado.

752

Rosas vivas na frente da casa branca.
Toda a tarde a nuvem as olhou.
Este é um canto esquecido do mundo.
Ainda é vivo o que pintou de branco a casa.

Um que foi carteiro
(quando tal ofício era para toda a vida)
costuma trazer chocolates às crianças:
mas já por aqui não há crianças.

Há rosas – mas já por aqui não há crianças.
Acontece muito nos lôgos envelhecidos:
haver mais rosas do que infâncias.
As infâncias restantes, só recordadas.

Só recordadas: o que tem até sua graça.
Tem sua graça se não fizer chorar.
É triste um envelhecido chorar sem relógio.
Faz de relógio a nuvem olhando rosas.

Toda a tarde Vos olhei do meu ofício.
Trabalho fora do sistema – mas trabalho.
Os espelhos não me envergonham.
Os espelhos só me macambuziam.

Excelentes pinturas juncam o dentro da casa.
Refiro-me à casa branca de que é vivo o pintor.
O pintor é vivo no ter-sido carteiro.
Os chocolates acabam sendo dados às formigas.

As formigas não envelhecem nem foram crianças.
Já nascem formigas, sustentam a monarquia.
São como as abelhas, laboram, sustentam a terra.
E são como a consciência humana, que não cessa.

Rosas vivas
etc.






Canzoada Assaltante