30/03/2022

REGISTOS CIVIS - 108 (primeiro parágrafo)

 

Hortênsia - 108

                      

Terça-feira, 22 de Março de 2022

 

Anoto quanto posso, não me perguntando nem me respondendo por/para quê. Uma nota: Jacques Doriot: 26.9.1898 – 2.2.1945. Outra: Gastão Belo Cidadestado Valedhive (saber datas). A memória do Dr. Veiga e Moura recitando: “Júlio César, homem de todas as mulheres e mulher de todos os homens.”  Mais outra nota biocronológica: L.F. Céline (27.5.1894 – 1.7.1961). Nótulas afins juncam os meus dias-depressa-décadas. Cada uma delas presenceia o instante perdido em que julguei ganhar tempo. Como esta ingénua, tão ingénua: Antes pessoa de bem que de bens. Sim, já fui selenita. Hoje, propendo mais para m’ir-afonso com tais ingenuidades. Sou fâmulo de clarões idiomáticos. Espeto espontão em relíquias vocabulares. E estudo (em vão, bem o sei) para aguazil. Sofro por maravedis que nunca sobram, antes soçobram apenas. Parte da mente, tenho-a lacrada por certa gafeira viciosa. Não me vejo em acomodatício transe – não (por) agora. Também me não associo (não mais) a foliculários. Se mereço enxovia? Já a terei merecido menos, agora que por escrito penso nisso. (Até este texto mesmo é atrabiliário – mas não faz mal, deixá-lo-me ser.) À brasileira, sou animal-teatino. Esplendente alvoroto de passageiras agonias, perdão, alergias, perdão, alegrias. Tive um amigo, na década de 80/XX, que, proficiente de mente & gordanchudo de corpanzil, fez as minhas delícias oratórias. Pressago destino (m)o levou, em paz (de)more. Vida acerba. Destino mais de terracota que de granito. De escassos, ínfimos, atómicos aprestos disponho. Não me vereis sátiro. Sentir-me-eis acre, isso sim. Bravatas & mofas? Antes estas do que aquelas. Frase-feita, quem não, afinal corteja a morte – pela simples teima de viver? Lerdas merdas, enfim. Pessanha & Wenceslau mirando sampanas. Conchego de (muito) relê-los – meu. Afuselados são os metafóricos dedos do Ceifeiro-Terminante. De altos alcantis cai quem foi feliz. Flamante donzela em cadeirinha de rotim. Ó morte, poterna, mais que prometida, garantia. Ainda assim, enquanto respirante, relutante. E agora: posso eu dizer de diverso modo? Posso, pois. Posso sempre. Pois:



28/03/2022

REGISTOS CIVIS - 107

© DA.


Signos - 107

                      




    Começou hoje, Terça-22-do-3, impondo-se-me a criação de uma narrativa nova com a preeminência & a predominância de dois nomes masculinos: Hermínio, um; Delfim, outro. Talvez estes Registos Civis tenham de dar vez & lugar ao novel projecto. Ainda (me) não decidi.
    Enquanto não, meteorologizo: dia invernal em plena Primavera já oficial, hoje. De uma maquineta audiovisual, chega-me em manação todo um cardápio de vocábulos mais ou menos ligados entre si: segurança/status/autoestima/associação/poder. Outros: deserção/filiação/integração/ideia/mochila.
    Esta atenção aos signos nunca me desampara a loja. Pode ser que, (se) chegado à velhice, venha a desamparar-me-la. Não sei – mas julgo tempo estragado pôr-me agora a pensar em tal. Se algo conheço, é por/com/de/em signos. Mais: se algo me conheço, é em/de/com/por signos.
    Na mocidade universitária, estudei umas quantas coisas de semiologia/semiótica. Mal me fez nenhum. Naquele tempo, idade & novidade eram-me sinónimos. (Ou signónimos, para trocadilhar um bocadito.)
    Hermínio & Delfim – dizia-Vos. É cá uma ideia. Uma possibilidade. E até: uma probabilidade. Hermínio relata coisas a Delfim: actos/factos/gajas//datas/hábitos/óbitos/etc. Delfim faz de compère/mudo – mas atenção & cautela: o seu silêncio é de forte compleição retórica. (Tenho de ver como conseguir tal tácita coisa, é desafio giro.)
    Outras coisas em necessidade-de-consecução:

Alguma palavra-justa quando, justamente,
mais falta faz a um pobre-de-deus-&-de-espírito.
Alguma doutrina pessoal capaz de resistir ao vento
de inânias de “amigos” afinal imigos.

O teu rosto sobre um corpo que já não frequento:
se bem me entendes, ou te recordas, ou não negas.
Ali à beira da vivenda cor-de-rosa do engenheiro,
no pátio da que rodavam os ranchos & os tristes.

De não somenos importância: validade da pers’ex’istência,
obstinação, pertinácia, vontade-de-viver-apesar-de.
Não é mentira, isso da dor-crónica – não é.
Mas ajuda não nos expormos a dentadas ou sordícies.

Toda a tarde hei por frente nenhuma fronte
– ou, sequer, fonte. Hei a vida teimando recorrências,
ipsilateralidades, (in)constâncias & (in)certezas.
Mas como disse – tudo signos, signos tudo, tudo

por-quem-os-signos-dobram.




23/03/2022

REGISTOS CIVIS - 105 & 106

© DA.


Vincelhos - 105

                      

 

    Um homem na berma do trânsito que fervilha na avenida. Muita intensidade na sua mente, enquanto progride em marcha rumo ao centro da Cidade. Se se descuidar, mais aflitivos lhe serão os dias – que noites precárias mal separam. O ano é indistinto – mas é vinda já a Primavera com seus mortos perfumados, ungidos a esquecimento.
    Sempre algo virá. Sempre algo será. Melhor coisa seria não tão intenso o que fulgura na mente. Difícil controlar essa azáfama. Digamos que uma segunda à tarde tem de tratar da reparação dos óculos. Digamos que uma sexta de manhã tem de apresentar requerimento a um instituto oficial. Digamos que ele cumpre essas manobras. Há sempre o perigo da desimportância-de-tudo.
    Entreter & entretecer liames à realidade suportável – bom objectivo. Nem que provisoriamente, nem que com vincelhos – bom objectivo. A existência como documento-autêntico, avulso embora. Isso na cabeça desse homem sem particular (pública, muito menos) notoriedade. Alguma coisa em algum sentido se resolve. Segunda à tarde, sexta de manhã, algum sábado menos cruento, algum domingo não tão pungente.
    O tempo-individual de tal homem + o tempo-multitudinário em que age: permanente interacção de mundos. E entre um & outro, não muitas são as peças-legos, por assim dizer. Os vínculos são precários, há que, em constância, forçar diques, oposições, alheamentos, indiferenças. Tal embate é de perfeita inexorabilidade.
    Este homem é de uma naturalidade & de uma nacionalidade. Trata-se de uma pertença: de freguesia-nação. O que vale isso em amendoins? Em tremoços, nada. É um vínculo de outra essência. É uma condição em que a Língua bate em cheio. Esse tempo-contínuo do Idioma unifica & multiplica, à vez mesma, a pessoa natonacional. (Chamemos-lhe assim, mal não faz.)
    Talvez um sábado à noite. Já sucedeu muita alegria a muita gente nas noites sabatinas. (Muita agonia também, vai & vem do regulamento.) Algum rosto em vez de uma cara qualquer. Algum fraseado em lugar de qualquer alarido. Um encontro de afluentes na rumorosa noite. Barcos chapinhando como patos. Frio lá fora, não aqui entre nós. (Nós – por assim dizer.)
    Em pura interioridade, aliviar o nó estreito-angustiante mercê de recurso a imagens fortes, bem inscritas & bem gravadas, dinâmicas & gratificantes. Não já o hedonismo primário mas outra coisa – outra levitação.

 


Em frente - 106

                      

 

Pensei hoje em António Nobre.
Há muitos anos que faz parte da minha plêiade.
É por excelência um literato oitocentista português.
E é um dos finados demasiado-moços da galeria.

Por arrasto, também Cesário Verde me acudiu.
Outro-único, virtuoso quedado tão novo também.
Tanto Anto quanto Cesário preconizam a modernidade poética.
Têm sobrevivido alguma coisa – não muita mas alguma.

Por mim, andam comigo sem esforço.
Faço deles releituras as mais vezes tranquilas.
Invariavelmente me encantam & gasalham.
Há muito não ensino – mas desde sempre aprendo.

Pensei, também & ainda, em regato murmurando pedras.
Apascentavam-se quadrúpedes em inclinado plano.
Árvores esparsas pintalgavam a contraluz panorâmica.
Soube-me o pensamento a tempo estagnado na mente mesma.

Em trâmites ordenados, recebo vozes escritas coerentes.
(Há ordem nessa dimensão da minha vida, garanto-o assaz.)
Escuto-as pensando-as, tenteando em suas areias líquidas.
E não me parecem de todo mortas, não enquanto respiro.

Em outras dimensões, falo o mínimo sobrevivencial.
Fora de papéis como este, não excedo a alheia paciência.
Prefiro rondar os silêncios esmagadores da roda social.
Sim, espécie de levitação (última palavra do 105, sim).

Penso ora em um dos tu(s) que já avizinhei em fala.
É pessoa em constante afã, de úbere dinamismo constante.
Pessoa de merecimento singelo, ordenadora da existência.
Melhora o mundo por gostar de viver quanto possível.

Não estranharia que lhe falasse, eu, de Nobre & Cesário.
Ou de outras coisas, diversos lances, farrapos de coisas, tudo.
Ou quase tudo, enfim, do imaginário real &/ou surreal.
As pessoas às vezes partilham deveras & de facto tesouros.

Sem nome, é mais precário estender a ponte.
Sem rosto, não julgo possível fazê-lo.
Ainda respiro? Então caminho em frente.
Ainda penso? Então caminho em frente – (a)onde Anto & Cesário.








22/03/2022

REGISTOS CIVIS - 103

© DA., Sr.


Pai(s) - 103

                      

 



    Dia do Pai. Já não tenho um. Estou por minha conta. Não tenho sénior a quem responder. É como é. Lei velha sempre remoçada. Não faço queixa nem apresento reclamação. Faço versos – isso sim, faço. Do popular adágio francês: “On ne peut pas contenter tout le monde et son père.” Não estou em maré de contentamento. Em dias assim, o sentimento de orfandade é mais preclaro, mais imperioso, menos fácil, menos suportável. O meu Pai ficou órfão de Pai em menino. Eu não. Faltavam-me duas semanas para fazer trinta anos quando ele se desmatriculou desta escola. Acompanhei-o até à véspera do passamento. Fui depois um dos que deram mão ao caixão. Foi sem serviço religioso: sou de um clã sem igreja. O Rui beijou-lhe a testa na sala, ali o velámos. Dia do Pai, dicunt mihi. Está sol, é de luz aberta o dia corrente, Sábado-19-do-3, é um dia de portuguesa boniteza. Entra um senhor portador de saca plena de maçãs doiradas. Bela fruta. O cavalheiro parece-me de alguma ilustração sapiente. Fere as sílabas todas, não elide. Isto acontece no bairro chamado Santa Apolónia, a célebre (conimbricensemente falando) “cidade-satélite” de há umas poucas décadas. Não me importaria de conversar um pouco com ele, saber algo de suas sabenças. Não acontece nem vai acontecer. Ele veio investir moedas no euromilhões, não olha derredor nem se demora. Eu sou tão-só um corpo inclinado a lápis sobre um papel. Nunca fui ou serei outra coisa – ou figura, ou (in)distinta aventesma. Sou filho & neto de desaparecidos-em-combate: nada original, por conseguinte. (Irmão também, irmão também de, ’té ’ora, dois.) Há quem (feliz) de mui diverso modo lide com o luto-de-sangue. Parece nem ser coisa que sobremaneira lhe(s) diga respeito. Feliz gente. Seguem em frente descuidando fímbria de abismos. Morriam de congestão, antigamente, na Barrinha de Mira. Hoje, morrem de terem nascido tão-só. Não estou fora de tal bicha – mas é ordeiramente que espero vez, sem queixa nem reclamação. Dia do Pai? Tanto ao mar & tanto à terra. Consueta orfandade. Comunizo com fantasmas vagamente silábicos. Alguns deles deixaram monumentalidade de si: Herculano, Camilo, Eça, Wenceslau, Pessanha, Cesário, Pessoa. (E o senhor meu Pai, que, não escrevendo embora, contou.) E o vago rapaz-da-camisola-verde de Pedro Homem de Mello. Nada a fazer quanto à extinção de sua fisicidade – a grande porra é a maravilhosa voz aliada à maravilhosa escrita. (Gostaria de ter dito isto ao senhor das maçãs doiradas em Santa Apolónia. Não pode ser.) Vou ver o meu Irmão Zé esta tarde (que é, também, Pai de alguém). Depois? E depois? A rua. A anónima rua de nomes históricos. E as pessoas-sem-Pai que andam aí a fazer de adultas, digo, crescidas, digo, este poema do Dia do Pai?






21/03/2022

REGISTOS CIVIS - 100

© DA.


Fala o pobre maravilhado - 100

                      

 

Maravilha de pobres: a passarada livre reiterando os céus.
Dou a tal epifania as poucas moedas que vale a vida.
Do patamar de Alberto Fidalgo, assisto às esquadrilhas aéreas.
Tenho a manhã livre, só trabalho à tarde hoje.
Hirsutas, grisalhas oliveiras em o terreno baldio.
No essencial, a infância sobrevive (– mas faz doer, faz sim).

Estudo algumas leis, aprendo uns quantos ardis operatórios.
Continuo porém a recorrer à dupla Óscar Lopes / António José Saraiva.
Não me ouvirá falar muito quem comigo se acampe, se acaso.
Disseram-me que Anselmo começou tossindo sangue em Janeiro.
Isso entristece-me, logo agora que se reformara de pensão completa.
Dizem-me que todavia segue venerando a Senhora de Fátima.

Na mocidade, José Roberto Vinhas Fernandes conheceu Maribela.
Dela se encantou ele muito – mas assaz em vão, por rejeitado.
Maribela nem era daqui, nascera em Portimão mas parecia alemã.
Como todos os amores perdidos, acabou migrando para Lisboa.
(Refiro-me a ela, que o Zé-Berto por Coimbra se ficou – e finou.)
A beleza destas histórias está no serem tão tristitas & tão inúteis.

Arfa a máquina-cafeteira, muitas bicas ela serve.
Senhoras encanecidas vieram a seus abatanados.
Lê o Diário de Coimbra um cavalheiro de perfeito atavio.
Morreu em autodesastre o rapaz que presidia à AAC, donzel Cesário Silva.
Não sou mais inteligente do que outros: e esperto, muito menos.
Descuidei a fortuna, dei-me (& dou-me) a fraquezas & a irrisões.

Já as andorinhas tracejam tinta-rápida na luz-matina.
À porta da mercearia, um casal moço confere as compras/contas.
Ele, parece que trabalha na fábrica dos artefactos de borracha.
Ela, diz que está desempregada, q’era caixeira de retrosaria.
Vão duros os tempos, isto na Ucrânia também só desajuda.
Digo-Vos isto por saber que V. interessa excruciantemente.

Já meã, a corrente manhã aguenta-me vivo, mais não peço.
Professoras reformadas gralham, muito alegres, aqui perto.
Eu nunca serei nem professora nem reformada – mas também gralho.
Daqui a meia-dúzia de cigarros, torno a casa, refervo o caldo.
Dois rapazes do Oriente tomam lugar perto das ex-docentes.
São vintistas decerto, duvido que conheçam o que seja ter trint’anos.

Fuma-se (só, a sós) na rua, há que respeitar as pessoas-de-interiores.
O antitabagismo é uma das mais viçosas neo-religiões, aliás.
É um tempo de “derivad’ò facto”, um tempo de “elo-de-ligação”.
Geral alegria de escola-mandada-à-merda, rapaziada!
Geral euforia de parecer valer mais do que ser, rapaziada!
(E não, não há remédio para os simplóides, os ignaros, os eleitores.)

Desinformação massiva ao gosto sionista-hollywoodesco?
Sim, por aí sem graça grassa, sim, não há como negá-lo.
Renitente escol proletário (perdoe-se-me o paradoxo, sff)
persiste na pureza dialéctica de uma doutrina falada mas falida.
O capitalismo-selvagem é papá de todas as bombas-de-gasolina.
Mas eu vou por Óscar Lopes / António José Saraiva: e é bem que vou.

Maravilha de pobres: rés-meio-dia, a livre passarada ceruleando-se.
O tempo (meteorológico) revira-se um pouco, talvez ’inda cacimbe.
Tornou-se mercurial o firmamento-matino, somos em aquário.
Lentos rapaces carvoam o ar da Conchada, daqui avistado.
Rápidos rapazes passam ao gás, em caminheta distribuidora.
(Gostaria muito de telefonar à minha Mãe, mas hoje não pode ser.)

Há perto de 900 anos (mui perto) somos Portugueses:
mas duvido por vezes de que queira tal coisa ser,
abre-se-me de madrugada a rua fria, estou sob o viaduto,
a mamã-de-Marcel-não-vem-beijinhar-me, pas-de-Paris-par-ici,
abandonei de modo decente a carreira docente,
outra não tinha, ou só a fingi, digo, escrevendo.





20/03/2022

REGISTOS CIVIS - 99 (incompleto)

 

Consec'úteis - 99

 



    Em a lei não especificando dias úteis, são consecutivos então. É esta a norma. Da utilidade dos dias, a utilidade propriamente dita, não há muito que se lhe diga. A corrente segunda-feira, 14-do-3, é fosca. Anda arredia a luz alta. Edital de sombras húmidas, a dúbia claridade hodierna. Talvez saia um pouco pelas quatro & picos, ainda não sei. Não sei se posso chamar-lhe, à corrente segunda-feira, útil.

Não mais dilação.
Pedras rolaram pela encosta.
Atiram lixo a zonas-verdes.
Desrespeitam impunemente.
É tudo feiamente triste.
Outras vezes, o sol lava.
Nem todos a crédito:
mas todos a prazo.

Jorge vai à Farmácia Donato.
Benedito visita Ulisses.
Elias rememora Fernando.
Bernardo convoca seus sócios.
Isabel chora na igreja.
Juliana cozinha regiamente.
Antonieta é feliz em casa.
Tiana, doida por compras.

Linha de choupos à berma-rio.
Homens maltrapilhando derredor.
Grandes cheias, as de outrora.
Foi antes do açude, muito antes.
Um carrito verde través as águas.
Afogamento de galo, tragédia-mor.
Daqui a vista atirada a Montemor.
Em poucos anos, a eternidade.

Por enquanto, a eternitarde.
Pânico: o preço dos combustíveis.
Barafunda: o preço do pão.
Não há volta a dar ao humano.
As bestas-bélicas nunca pensam.
Há um novo Diabo-Inimigo:
é o Homem-Branco-Agnóstico-Heterossexual.
Toda a demais raça é santa.

Marcial abre loja electroméstica.
Tó-Zé rilha pêssegos furtados.
Adalberto tira brevet-d’aviador.
Jesualdo reforma-se à-maneirex.
Graciosa abre loja florista.
Carmina rói nozes rangentes.
Telma só anda de bicicleta.
Túlia tem onde cair morta.

Cite-se. Notifique-se.
Efectue-se. Envie-se.
Electrifique-se. Abone-se.
Copie-se. Arquive-se.
Parecemos diligências adiadas:
semelhamos excepções avulsas.
(Por regra, semelhamos.)
E pendemos a granel.

Inclino-me a vocábulos.
Espalho-os pela mesa.
Junco deles a cama.
Durmo-os dentro.
Adentro-os em son(h)o.
Reconvenciono-os a jeito.
Espadano sílabas capitosas.
Há mais de 50 anos o faço.

Consigno por vezes a verdade.
A verdade é a rima da pessoa com o real.
A mentira é mais fácil em verso-livre.
(Se disser verso-branco, sou racista?)
Desgosta-me a gula espectacularóide:
do jornaleirismo mormente.
Também me desgosta a má-literatura:
a que ao espelho escrevo mormente.

Embargam-se-me de salitre os olhos
quando acaso reajo a alguma má-fé.
Passa-me depressa, também Vo-lo digo.
Não mais dilação.
Não mais o-mal-pelas-aldeias.
Rumo antes à simplificação.
Amanhã ninguém me fala.
Hoje não estou surdo. Nem mudo.

Se longe, tudo te corra bem.
Se não, que o mal te corroa.
Que sejas sombra de ninguém.
Que a vida te não seja boa.
Se longe, tudo te faça feição.
Se não, que o Diabo te conheça.
Se não, que Deus te esqueça.
Mas se longe, não; e adeus, coração.

Consumamos agência de auto-execução.
Somos de uma atenção notificanda.
Nem toda a hora é execranda.
Suave nos pode ser a condição.
Livres destas peripécias?
Marcelino, Tomé, Luís Filipe, Manuel;
Delmina, Cândida, Hannah, Marguerite
(Eis-me consignando guardo verdade.)

Trivializando: vinde comigo.
Metamos juntos o euromilhões.
Tomemos café no Sílvio.
Enviemos foto de grupo ao Anacleto.
Divirtamo-nos até às vinte & trinta.
Digamos mal do Benfica & do Marcelo.
Opinemos doutamente sobre a Ucrânia.
Sejamos milionariamente tesos.

Ou então: Heidegger é capaz de se ter borrado.
E ainda: nazismo & estalinismo diferem?
E mais: nazismo & sionismo divergem?
Enforcando Eichmann, matou-se o Mal?
Estou em a posse das respostas, mas só minhas.
Interessar-me-ia conhecer as Vossas (se existísseis).
Tudo isto não passa porém de solilóquio.
Há mais de 50 anos que não.

Tendes a V.ª doutrina – pois ainda bem.
Vosso é o receituário – pois ainda bem.
De V. não difiro ou divirjo senão em detalhes.
De resto, carne a prazo todos.
Chamai-me pessimista ou incréu:
ambos os apodos me assentam luva.
Creio tanto no Putin quanto no euromilhões.
(Mas o Vladimir vale menos que 2,5 euros.)

Em virente prado, as ovelhinhas.
Na hipersuperfície, as ovelhinhas.
À hora de votar, as ovelhinhas.
De meu sono arredios, os carneirinhos.
Os tv-canais multiplicam os imbecis.
Promulgam a idiotia compulsiva.
A pobre lusa-manada chouta no pó.
E há quem chame música ao hip-hop.

(Eu não. Por mim, quando Mahler, nunca pior.)
Sábado passado, com a minha L., vivi.
Soube (de) coisas novas de gravidade.
Vi-me depois de novo a sós, é normal.
Em 1985, fui ao cinema ver a Meryl Streep.
Ainda então fruía a prosperidade.
Águas muitas sob pontes d’então correram.
Nihil obstat, imprimatur potest.

O Paulinho Aduelas tem companheira.
É-lhe mulher fiel, ele teve sorte.
Não chegaram a filhos, ela não podia.
(Ele poder, podia – mas não conseguia.)
A Micas Rolhas já vive sozinha.
Foi-se-lhe embora o marido, que já não torna.
Estas coisas acontecem muito, na verdade.
Acontecem muito – mas uma só de cada vez.

Lêdes a extensão desta versalhada
& pensais talvez que hoje al mais não fiz,
pois bem Vos equivocais, lavrei sete horas,
das-nove-às-cinco como as dactilógrafas
que antigamente havia & se casavam
mal & parca & porcamente com mancebos
licenciados em Letras como as mulheres,
águas muitas sob pontes d’então morreram.

(...)

É hoje segunda-feira-14-do-3, tempo ocluso.
Não raia o Sol, antes a nublação impera.
Eu gosto. Sincera & o mais francamente, gosto.
Tenho qualidade de hibernador, talvez por isso.
Deveras, há quantos anos durmo a vida?
No mínimo, há 35, quase 36.
Nada disto morigero como normalidade.
É coisa minha – & a que, a sós, pertenço.

Tiago Marques liga a Miguel Licínio.
Combinam obra para Abril.
São de contas expostas a escrutínio.
Por junto, já fizeram mais de mil.
Valenciana Augusta p’ra Ricardina:
– Queres ir ao chá-das-cinco amanhã?
Ricardina – que não, q’anda malsã,
que já se vai deitar com aspirina.

Da janela do quarto de meus Pais,
vejo quanto chove sobre a nespereira.
Ou pessegueiro? Ou tangerineira?
Não há janela, nem quarto, nem já Pais.
É na era dos livros do Fernando Namora.
É também na da Colecção Livros RTP.
Julgo há muito ida tal era-hora.
Mas se ora ainda a escrevo? Ninguém m’a lê.

Eis-me aqui devagarinho pensando em W.
Digo: Wenceslau (o de Moraes, o niponófilo).
Ele & Pessanha, que dupla sem par!
E deles a tinta em pergaminho: só perfeita.
Em Wenceslau, o povo-dos-barcos.
Em Pessanha, o povo-de-Camilo.
Portugal nem imagina quanto foram.
Wenceslau bi-viúvo, Pessanha enamorado de Ana de C.O.

Onde o cansaço me tombar, herói de nada:
de nada & de pátria alguma, onde tombar?
Sim, conheço nomes, forjei uma enciclopédia
imprestável (mas emprestável) & delicada.
E agora, agra juro que não prometo
(Houve aqui alguém que se enganou
– e só eu aqui estou, é o carago.)
Onde a fadiga me cortar as unhas.

O calor nutriente, hauri-o a tempo certo.
Este é o inverno entrante, a moda é outra.
O modo, também, e o tempo – incerto,
faz-se por modos nec-plus-ultra.
À flor da lembrança, ao arrepio do frio;
à cabana inexistente, ao aviador perdido;
à face de um entendimento, ou então de um verso;
tenho-me ratado de modo mui rente.

Li na idade certa o senhor Carlos de Oliveira.
Fez-me bem: parece(u)-me exemplar.
Guardo dele os livros, que vou ofertar
a quem os merece de toda a maneira.
Hoje, não conversei grande assunto.
Fiz dois testes, passei sem mor distinção.
Nada me adianta puxar p’lo bestunto,
isto é mais à base de arroz com feijão.

Quando a vida for um pouco menos aritmética,
poderei talvez clonar os velhos da minha infância,
curtir à guisa deles o sol em banco de pedra,
esperar a ressuscitação dos Gregos Antigos.
Se alguma solipampa d’entretanto
me não liquidar ali nas Urgências,
terei todo o gosto em V. falar do bel-canto
que cantaram senhoras & demais excrescências.

Sim, assistimos todos ao retorno de Z. da guerra-colonial.
Houve foguetório, o pai dele fumava Ritz.
Éramos já as crianças-da-revolução, tais éramos.
Hoje em dia, duvido da reforma curricular no/do Ensino.
Se lês mal, não vás ao lançamento de bons livros.
Como os bons livros são poucos, vai ao lançamento dos maus.
Sempre dá para te iludires leitor da alma impressa,
quiçá parente dos espíritos mais coiso, mais marcelo.

(...)

Passo a descrever um sol-poente-de-postal:
era em Julho/1970, era-me viva a Mãe.
Cirandando ambos pelo litoral,
aconteceu-me a mim – mas a Ela também –
a doce maravilha & o suave aprazimento
de Mãe-com-seu-filho, irreparável momento
que se hifeniza por filho-com-sua-Mãe.
(Q’isto fique só em verso, não o digais a ninguém.)

(...)

Tanto verso porquê? Para quê? Hã? Como quê?
Porque isto: para isto: hã: como isto:
pelo rocio que em 1973 vi cercando a base do pinheirito:
& pelas sílabas a negro sobre chapa-amarela na Escola Primária.
Qualquer coisa adversa que os totós-de-Lisboa ou os palermas-do-Porto
possam vir a advogar de encontro à minha constância,
desde já aviso que ainda dá para o torto
o direito sem recta que nem mede distância.


(...)

Oh dilação forever!




16/03/2022

REGISTOS CIVIS - 98

© DA.



Tempestivo - 98

                      





Luís Filipe, pai de Manuel, idos ambos já para-além.
Séculos de prática reiteram deles esquecimento-em-porvir.
É talvez uma paz que assim seja, sempre haja sido & a-ser.
Anónimos morrem em guerra(s), não vislumbro alternativa viva.

De possível a passível, Maria, vai sua distância não-bagatelar.
Linhas & linhagens sulcam navegantemente os documentos.
A finitude-perecibilidade não obsta à infinitude de hipóteses.
E a nossa incompreensão labora a favor de infinitos-paralelos.

E enquanto isto, viver vai sendo exercício tempestivo.
Em o corpo dando, homologam-se-nos pistas francas.
Aquela mulher que vi adormecida em um banco público.
Aqueles patos alegremente barafustando à flor do rio.

Acusações particulares (desamor, incumprimento de alimentos etc.),
ninguém está delas a salvo, a vida usa ser deletéria & antipessoal.
Por alguns instantes de euforia erótica, podes pagar toda a vida.
Ou então, que o Dr. Alzheimer te perdoa em género-paraíso.

Chegas ao sem-abrigo & doas-lhe roupa-de-trazer-por-casa.
Incorres em beato paradoxo, em incensante auto-santificação.
Nem cuidas se tu ou ele andam de grão-na-casa.
Tudo é mentira, autofraude, automi(s)tificação.

Imagens de uma cidade alheia tomam curso na pantalha.
Pouquíssima recuperabilidade de trechos, de pessoas nenhuma.
Obras então recentes, hoje escaqueiradas pela usança abrasiva.
Estatuária vandalizada, paredes sujas, alguma rara boniteza.

Rarefacção de rostos: são bem mais as raras caras.
Luís Filipe, pai de Manuel, sim, existiram, obraram.
E no entanto poucos, paulatinamente menos, os evocam.
Um passeio pela da Boa-Viagem e/ou Arrábida.

Maria, segue saindo-me cifrada a versejação.
É tenaz solilóquio, não tens de desculpá-lo ou incriminá-lo.
A pessoa marca & traça sem itinerário mais ou menos convulso.
Entretém-se deslindando quanto pode – nem sempre muito.

Assim é.
Assim é, Maria.
Assim foi, Luís Filipe.
Assim deixou de ser, Manuel.



14/03/2022

REGISTOS CIVIS - 96 & 97

© DA.


Necrogamia - 96

 

Algo mórbida embora, a necrogamia persiste.
Amor para lá da morte? Só em vivente o amador.
Tranquilos estão (pois já não são) os em-andor.
Prova escrita pode ficar – nada nem ninguém a mais r-existe.


 

Almoço - 97

                   

     
    Passadas já as duas da tarde, almocei com L.D.R.A., que, ex-aequo T.S.S.A., é do escol da mais formosa humanidade – vivente ora, lembrada d’outrora ou formosa-por-vir.
    O Sábado é feliz-em-mim. Passo a versos:

    Por cima da breve ourivesaria vilã,
    moram Claro & Carolina, recém-casados.
    Juntaram trapitos & ademanes molhados,
    gostam-s’inda um do outro a cada manhã.

    Talvez frutifiquem, ’inda não há notícia.
    Por enquanto são moços, dão-se em mocidade.
    Isto de viver em vila difere de em cidade,
    o tempo é outro, há menos polícia.

    E que outra rosa poderia eu ora partilhar às largas mãos, sei lá, digamos, tipo Isabel-de-Aragão-Rainha-&-Coimbra-&-Santa, à face de seus bélico-desavindos marido & filho? Resposta pronta: a minha rosa, nenhuma outra de nenhum-alguém.

    O lento milhafre, à chuva de Sábado-Coimbra:
    ei-lo voej’al’ando asas de discreta predação.
    Nuvens sobre, da Conchada, o campo-santo ainda:
    quantas tabuletas, tantas amnésias: vai da condição.

12/03/2022

REGISTOS CIVIS - 95



 

© DA.




Ressuscitações - 95




    Puníceo dilúculo roxeando
    (ou seja: Nascendo violáceo o dia)

    Com estas sílabas despertei hoje, quinta-feira, 10-do-3. Nada de grave ou, sequer, importante. Desestremunhei-me com chapadas de água fria nas fuças, cafeíno-nicotinei-me logo de seguida, de imediato pronto para as feéricas, as maravilhosas, as intrépidas & incríveis aventuras do meu quotidiano. Ou seja: terminei a leitura (que já se arrastava) do mui católico livrinho O Que É a Literatura?, de Charles du Bos (tradução portuguesa de Nuno de Bragança, ed. O Tempo e o Modo, Lx., 1961). Tirando uma sentença de Píndaro que algures neste caderno epigrafei, não aproveitei mais grand’espingarda de tal leitura – mas tudo bem, sigamos para Cem Páginas (ed. Liv.ª Bertrand, Novembro de 1945, tradução portuguesa & prefácio de Tomás de Gamboa), de Ernest Hello (França, 1828-1885). Charles du Bos: França, 1882-1939. Tanto Hello como du Bos – franceses. Um como o outro: fundamentalistas-católicos. Dois tolos, enfim. Mas é preciso lê-los para (a)podá-los.

    Malaxando negrores & macaréus
    (Amassando negrumes & ondas bravas)

    Com estas sílabas despertei hoje, sexta-feira, 11-do-3. Nada de importante ou, sequer, agudo. Duchei-me de brusco modo, alongando-me em chuveirada morna & saponificando-me os refegos. Café feito de fresco, carregado de alcatrão & com uma tira de leite. Um dia de cada vez. Uma dia de cada voz. Fatia de pão-branco torrada à força de resistência-eléctrica. Língua de manteiga lambendo o miolo da torrada. Mais café. Pronto para a refrega. Entro em meu mesmo sistema de ordenamento. Manhã um pouco mais luminosa do que a de véspera: mais fulva a violeta. Coisa boa: tenho a tarde livre. Posso (& vou) aplicar essas horas a usos ledores. Não me falta documentação abordável. Há vocábulos disponíveis, ressuscitáveis uns, nascituros outros. É a minha vida – ou o que dela (des-re-)fiz.

11/03/2022

REGISTOS CIVIS - 94

© DA.


 


Sonhadoria (*) - 94

                      

  

  

    Rostos de mulheres diversíssimas (d)entre si transpareceram em galeria no meu sonho (ou dormente devaneio) da noite antemediata.
    Um dos rostos mirava à janela um prado nevado que em senda escura um ribeiro sulcava.
    Depois (mas não há cronologia linear nos sonhos), outro rosto, permeado de árvores, assombrava de luz o bosque que ainda desejo devassar.
    Um terceiro (mas não são ordinais os fenómenos eidéticos) olhou o eu que o sonhava – mas não o/me viu, pois que o vi continuando a olhar bem para aquém da minha nuca.
    Um automóvel branco imobilizou-se em tal encruzilhada sob a vigilância da Lua: sem ocupantes era o veículo.
    Outros objectos-legalmente-impossíveis anoiteceram comigo, que, bem jantado & bem agasalhado, não me dispus a dar luta ao sono. Exemplos desses o-l-i:


    a dita Lua
    assinaturas póstumas
    um verso-branco
    sonhos tidos por cães
    felicidade em cartório-notarial
    actos-falhados
    já-vividos
    fantasmas sanatoriais
    um verso-azul
    rosas-perpétuas
    psiché de tia-solteirona
    calendário ilustrado (Paulo VI em Fátima, A.D. 1967)
    o ar dentre bordos de fissura calcária
    canções de adeus-marinheiro
    datas riscadas em cimento quando fresco
    escrituras-mortas-do-mar-idem
    filigranas silábicas escandidas a metro
    dívidas do poeta Bocage
    sonhos dos outros com outros, nunca comigo.

    Dei em rol o pouco de que me lembro & o muito que minto. Na mesinha-de-cabeceira, velam a vela, o frasco com água, o candeeiro, o cinzeiro, a pipeta das gotas oftálmicas, o livro do O. Henry, o do Cesário Verde, a revista ornitológica, o porta-chaves sem chaves do União de Coimbra (fundado a 2 de Junho de 1919, segunda-feira).

(*) Sonhadoria é como traduzo, do Francês, rêverie. (Devaneio não me parece suficiente.)


10/03/2022

REGISTOS CIVIS - 93

© Vivian Maier




Processual - 93

                      



Expeço, autuo, tramito processos – em a mente apenas.
Despacho & executo quanto acaso despache.
Não dependo de outra magistratura que a da consciência.
Tenho cartão mas não passo cartão ao deus-não-dará.

Erro & omito & até minto o mais humanamente.
Reclamo por escrito, isto é: ante cegos esbracejo,
a surdos vocifero, meu é um âmbito ment’erritori’al só.
(Talvez Coimbra me seja, por excepção, norma.)

Versos? São autos & termos & citações & notificações
para ninguém, talvez, mas não de ninguém.
Ontem ainda (que nada secretariei escreventemente),
averbei a meu elenco dois Daniéis, dois bem contados.

Foram cantores: D. Fogelberg (EUA, 1951-2007)
& D. Balavoine (França, 1952-1986).
Fizeram ambos com que não escrevesse.
Pensei neles escutando-os, sabendo-os mudos ora.

Em acarinhado processo enceleiro provisões lexicais,
são meus brinquedos o mais sérios & nutrientes.
Permitem-me profligar mais precários instantes,
escapar-me quase ileso aos mais movediços marnéis.

Dulçorosa me é cada hora a canhenhos-lexicões dedicada.
Acurada atenção doo (de doar, não de doer) ao que
a outros (tantos!) semelha merecedor de derrisão.
E trescalante me dou em cheiro forte aos sem-olfacto.

Anda algo de Vivian Maier (USA, 1926-2009) em tudo isto.
(Dúvida nenhuma quanto a isto, dúvida nenhuma.)
E de Jorge Miguel Ferreira Nóbrega, cavalariço de D. Rafael,
apreciador de ponche quente & de arenques grelhados.

(Não sei as duas datas do estribeiro Jorge, não tenho como sabê-las.)
(Já agora também, de D. Rafael d’Ávalos sei tão-só a do óbito: 1954.)
(Sei todavia que só nos resta jogar-às-escondidas com nossos prazos:
tanto os dilatórios quanto os peremptórios, por norma inglórios.)

Preciso é não confundirmos Yeats com Keats.
Nem Pessanha com Pessoa. Nem Calvino (João) com Calvino (Italo).
Nem Francis Bacon chanceler com Francis Bacon pintor.
Nem Albert Speer com Albert Camus, por quem lá tendes.

Nem marnel com mainel. Nem combinar com cominar.
Nem inocência com decência. Nem uma locomotiva com o que o maluco motiva.
Assim seja. Quanto por acaso.
Assim se veja. Mesmo que pela mente só.






08/03/2022

REGISTOS CIVIS - 92



Vigília - 92

                      

 

    Ontem, M. voltou a contar-me passos mentais que deu, há muitos anos, no sentido da auto-superação. Referia-se M. a equívocos emocionais que lhe causaram não pouca lástima. Agradou-me o que me contou – e o como mo contou. Agrada-me escutar: até de olhos cerrados pelas pálpebras em vigília. Mas isto foi ontem. Hoje, é a sós que afronto a jornada. Nem estou pronto nem não-estou: respiro, digiro. Não esperam de mim papéis, não me sobra promessa alguma por cumprir – ou palavra, por honra, empenhada.

Não me vereis diferindo da norma biológica.
Quão mais cível, menos penal.
Em processo, a atenção possível suporta os dias.
O suporte físico não nos deixa virtualidade qualquer.

    Soube, em relação a A.C.D., que foi de enorme (ingente mesmo) dignidade quanto ao seu primeiro (& penúltimo) matrimónio. Conhecendo já embora aquela que, por amor vero, viria a ser sua segunda (& última) esposa, nada fez que desonrasse a moribunda. Esperou, tratando-a com os melhores recursos de que dispunha – e poucos estes não eram. É uma história exemplar & edificante.

Cri muito pouco, ou nada, em coisas comummente impensadas.
Julgo que sempre descri, agora que algumas contas faço.
Pergunto: Nomeio eu fantasmas por medo de que (r-)existam?
Respondo: Umas vezes, talvez; outras, por outra coisa talvez.

    Em S. Martinho do Bispo, certa meã manhã, conversei com Albano Travassos Vasques Vicente & com José Maria de Deus Cristomem. Tomámos vermute os três, saudámos ausentes, por defunção, do nosso tempo desportivo. Mais nada. Ou mais nada de relevante de que ora – ou para sempre – me lembre.

Há mais que dar a ler aos olhos próprios & mesmos.
Da renúncia à rejeição, depende o caminho das pernas.
Remanescem possibilidades de acontecimento(s).
Jóias engastadas no estojo pessoal, partilhável às vezes.

    Constituímo-nos assistentes de nossos processos mesmos. Arguimos barafusteiramente. Ou damos em doidinhos-mais-ou-menos-mansos. (Recorro ao pronome-plural sem modéstia nem majestade.)

E em acúmulo de horas não-contadas
Instantes de fúlgida coloração também se dão
Hauridas as palavras alinhavadas
Em face de um pedaço simples de cartão.

Verticilados filetes de ouro-azul em porcelana
Tomando chá sem pressa, eu, sob a figueira
Foi tal em um Outono de idade insana
De tão recém-nascida a vida, por brincadeira.

    Seges, caleches, tipóias, americanos, oitocentistas sonsos como aquele que chegou a ministro, sonso de não saber comportar-se em velórios, a nível cabeçal faltando-lhe em miolo o que lhe sobrava em corno, mais esta nótula de 27 de Julho de 2015 (segunda-feira): o céu uniformizou-se hoje de azul-marinho-da-Marinha, dieta régula (regime de regadores, perdão, regedores, a sensação de o Caso Casa Pia & o Caso BES serem geminados – pois que ambos nos paparam como se fôssemos meninos, mais esta nótula de 13 de Agosto de 2015 (quinta-feira): fermentar a fala, destilar a escrita, em relação a L.S. estoutra nota: lembro-me da sua arte como se da pessoa fosse que me lembrasse, esse mesmo L.S. cujos olhos envelheceram mais célere & mais definitivamente do que o olhar, olhos que já não debruavam, já não orlavam & já não auravam nem aquele atlântico infante nem aquela púbere mediterraneidade de outras eras, horas, heras.


07/03/2022

REGISTOS CIVIS - 91

Prof. Dr. Luís Filipe Lindley Cintra

(1925-1991)


Domingo - 91

                      

 


    Falam alhures de um litoral extenso & deserto, longe de mais para que possa verificá-lo in situ. Depois, disponibilizam imagens dinâmicas de proximidade: pessoas, avenida, praia, crianças improváveis de 1928.

    Depois, terça-feira, 17 de Dezembro de 1963. Uma senhora (Nathalie Sarraute) diz de seu entendimento a propósito de Marcel Proust. As palavras da senhora são de plena clareza, nada emaranhadas.

    Ante a pessoa-em-si, possibilidade de dias tocados de diverso modo. Quantos dias & de que modo? Impossível responder já. A incerteza (logo, a insegurança também) campeia. Em certa bruma, incertas silhuetas.

    Jonas Quites cresce em casa avoenga.
    Edmundo Monte é seu amigo de criação.
    O século deles, embrulhado em papel velho.
    Tempo incinerado sem apelo possível.

    Deriva em Itália, cospe sangue arterial.
    Ganha um tempo mínimo: em pré-mármore.
    É já um ser boreal, Fevereiro o termina.
    Em raras casas será retomado, eis como é & será.

    Efígie de um adormecido, plenitude de sua serenidade gravada a cinzel. Sacro paganismo? Um pouco tal, assim. Ceptro, coroa. Cabelo azulado, que o Tempo, para lá de mero conto de anos, guarda em relicário. Resta alguma edificação? Sim: casebre, horta, poço, almácega. (Não confundir com alma cega.) Átrio, oratório, refeitório, escritório, observatório. Muito pode o esquecimento. E São Luís não tinha de ser excepção.

    Também 24 de Março de 1962 (sábado), Lisboa, Cidade Universitária, Professor Doutor Lindley Cintra, PSP & PIDE contra os estudantes em protesto. Relatividade absoluta dos actos & dos factos inscritos historicamente.

    Inelutável principado (pobrezinho embora) de cada Eu. Os Outros, em dispersa república. Combate inadiável à auto-subversão. A luz dando diagonalidade aos (poucos) móveis deste barraco. Fora, arvoredo, olhos-de-água, corvos privados.

    Arrábida, Sebastião da Gama, Mirante dos Frades, António Osório. O ar aberto abrindo-se(-nos). Sinto uma vocação de parentesco para com tal catálogo – ou tal crónica-geral, digamos. Não é factícia, tal vocação. Ou fictícia, vá.

    Linhagens crónicas, bastardias inclusas.
    Nascimento cor-de-violeta de uma matina.
    Tradição lírica, práticas épicas, mescla.
    E íntima aceitação do fenecimento, por académico.

    Luiz Damião Belchior Azuverte, esquecido.
    Belisa Lente de Faria Prado, mal-lembrada.
    São ambos demasiado não-Eu, demasiado Outros.
    Mas são de linhagem também, também violeta(s).

    Enclaves leoneses, Miranda do Douro, Rio de Onor, Guadramil. Bonito é revisitar canhenhos que aviventaram a mocidade (tão) pretérita. Consanguinidade galaico-portuguesa. Beleza da prospecção idiomática.

    Sim, também a geografia pode dar escopo ao auto-entendimento.
    A futura está naturalmente velada de sua bruma própria.
    Nem toda a pretérita, note-se-o bem, é cinérea.
    Alguma coisa se faz ser pensada em terra(s).

    Sim, é possível tutear alguns sítios vividos em corpo.
    Outra é a topografia de algum desejo recorrente.
    A Arrábida, por exemplo; a Noruega, por exemplo.
    Em verso-livre, semelham contiguidade, que engraçado.

    Bernardo, que foi depois taberneiro nas traseiras da Biblioteca, gostava muito de cinema. Tanto, que até os filmes medíocres lhe agradavam. Era o escapismo dele. Não lhe foram suaves a infância & a puberdade. Isto não é mentira.

    Roberto Daniel, irmão de Bernardo, foi fotografado na companhia da tia Lucídia no ano da morte de Robert Oppenheimer: 1967. Lucídia, nascida em 1933, migrou para Bragança, onde fez um casamento serôdio & tranquilo, de que não houve filhos.






Canzoada Assaltante