26/09/2014

Leonor em tercina



Em tercina,
cresc. poco a poco
a Leonor,
a minha Menina.

25/09/2014

Rosário Breve n.º 375 - in O RIBATEJO de 25 de Setembro de 2014 - www.oribatejo.pt







MDI

Esta é a edição n.º 1501 do nosso Jornal. Muito bem. As minhas fuças estão pespegadas nesta página há apenas 375. Muito bem na mesma.
Há casamentos que não duram nem a décima-parte dos já quase trinta anos hebdomadários deste título. São matrimónios, por assim dizer, sem direcção, sem escrita, sem aparato gráfico, sem quem os assine – muito menos leia. Os casamentos efémeros, de tão vulgares, nem grande publicidade chegam a ter.
Por seu lado, ele há também e também por aí andam jornais que nem para forrar a gaveta-do-bacalhau servem. São pasquins devotados ao serviço pulha e infecto dos gigantes da indústria e dos anões do comércio. São coisinhas que lambem. Praticam o “jornalismo” papa-croquetes dos portos-de-honra, das tasquinhas com seu secretário de Estado portátil, das feirolas “medievais” pré-congeladas e pré-embaladas para pasmo dos asnos que confundem a História com as barracas de farturas.
Tais casamentos e tais publicações não duram – porque são existências moles, invertebradas, servis, viscosas, instantâneas, aguadilhas, vocacionadas para bufas de si mesmas.
Nos matrimónios céleres, enfim, não toco.
Já nos jornais sim, toco – mas faço-o de dedos em pinça repugnada: ena tanto especialista!, ena tantas sabedorias!, ena tanta cagança!, ena tanto sobrinho de banqueiro!, ena tanto autarca!, ena tanta namorada do CR7!
A excepção está à minha frente. Escritorzeco de pastelaria de província, habituei-me a este lugar de alumínio no extremo norte da galeria da Rita. A excepção é um casal já encanecido, desses que os anos em comum volvem idênticos como irmãos naturais.
Arreiam boa roupa lavada. Calçam óptimo couro.
Ela veio de fina blusa branca sobre saia de xadrez-da-Escócia. É de olhos azuis como duas janelas viradas para o mar na manhã clara.
Ele é cavalheiro de porte não pequeno, camisa cinzenta matizada de uma chuva de rápidos riscos verdes, calças de fazenda ponderosa, morna, daquela que faz bem à pele.
Evidentemente, invejo-os.
Às vezes, vem aqui o filho ter com eles. Tornam-se então uma espécie de namorados veteranos que se dão ao luxo de ter um amigo mais novo. É bonito de ver-se.
Venho a saber que se casaram em 1985 – há 1501 semanas, mais precisamente.
Desiludidos fiquem uns, satisfeitos por eles se quedem, como me quedo eu, os demais – pois que nem aqueles nem estes esperaram jamais que Ribatejanamente durassem tanto.

18/09/2014

Rosário Breve n.º 374 - in O RIBATEJO de 18 de Setembro de 2014 - www.oribatejo.pt

SMS: Siglas Maravilhosamente Simples

Permite-me, ó bom Leitor, a seguinte confissão: tenho uma pancada muito jeitosa naquilo das siglas. Sou doidinho por elas. Mas nota tu bem: não pelo seu real significado, mas pelas possibilidades maravilhosas de significação alternativa. Tenho milhões de exemplos.
FNAC é um exemplo bom. Não quero saber se, no plano real, é a megacadeia de livros, discos, filmes e afins coisas multimédias. Nem se era aquilo d’antigamente do ar-condicionado. Para mim, FNAC é: Fazer Nojo Aos Cães. Pronto.
NASA. Esta é outro mimo para mim: Nós Americanos Sabemos a Ânus.
Na volta para casa de algum arraial com amigalhaços de copázio & coparete, o meu ideal vir CTT: Com uma Tremenda Torcida.
A política, essa grande porquita, não cessa jamais de me ajardinar-de-delícias o coração doidivanas. Olha aqui, Leitor, como lês tu esta sequência: PS-PCP-PEV-PSD-CDS-BE? Hum? O quê? Partido tal, Partido tal, Partido tal? Mas qual quê?! Tu não vês nesta justaposiçãozinha a mão do Diabo cifrador de códigos? Eu vejo.
Concedo-te: lês nisto o nome de partidos por seres mentalmente são. O teu cérebro é um alperce fresco. Eu, são, não sou. Porque na enumeração PS-PCP-PEV-PSD-CDS-BE eu leio: Pobre Seguro – Por Culpa Própria – Por Engrolar Verborreias – Pode Suceder-lhe Doravante – Costa Depois de Sócrates – Bonito Encalacranço!
Vês, vês? Viste, viste? Estava ali tudo escarrapachadinho, mas tudo – e tu, preguiçoso, a ler banalidades onomásticas.
Lírico irremediável que sou, cultor de inúteis belezas que fui sempre e para sempre serei, sou também um irremediável leigo quanto a geringonças práticas. Mudar uma lâmpada atrapalha-me a vida por mais de quinze dias. Abrir uma torneira que não seja das dos pipos deixa-me boi ante o palácio da simplicidade. E por aí afora. A minha Senhora Esposa é que me ataca os sapatos. Nunca comi sozinho uma sardinha: tem de ser ela a desespinhar-me o peixito. Uma vez, tentei fazer a cama – ela dormiu no sofá, claro.
Tudo isto te confesso & explico por causa da sigla LNEC. O mero som dela (lnec, lnec…) não te parece aquele ruído salivar dos malcriados que mastigam de boca aberta? Ou ainda: o lnec-lnec é ou não exactamente aquele estalo do elástico da cueca na anca? Hum? É pois. Eu sei que tu sabes que LNEC significa, no mundo dos não-avariados-da-mona, Laboratório Nacional de Engenharia Civil. Seja. Mas para mim, népias disso. Para mim, é das interjeições contra-ofensivas mais lindas que pode haver. Se alguém te chatear, só tens de lhe zurzir cuspo assim: vai LNEC! Ou seja: vai Levar Nos Entrefolhos do Cagueiro!
E os ex-ministros? Ah, a meu ver e a meu ler, o que (não digo que todos, mas que quase todos) fazem – é GNR. Isto é: Guardam o Naco Roubado. E a verdade seguinte é que PSP: Poucos se Salvam da Pilhagem.
Por voltas, revoltas & reviravoltas do imparável processo histórico, a sigla URSS já não se usa. Ai não? Usa, USA! No caso da minha maluqueira, a URSS é eterna: por, sendo não raro do teor diarreico, portanto humaníssima, valer – Urgência Repentina de Soltar o Saco.
E USA? Fácil: Ungidos de Santidade Astral. No mínimo.
E ONU? Olha, Nelito, Unta-me.
E NATO? Nunca Andaste Tão Osga.
De todo o desarrazoado que supra te expus, ó meu fiel e bondoso leitor, concluirás que um bocadito de fluoxetina me não faria mal de todo, bem antes pelo contrário. Talvez. Tenho um médico amigo, o Adelino Correia. Dr. Adelino Correia. Ui: DR AC. Sigla. Já sei: Demónio dum Raio, Arranja-me Comprimidos. E ele então, com pena de mim e de eu de tão pobrezinho quase de algibeira numerária como de cabeça, paga-me bagaços até a língua e a Língua me ficarem encortiçadas de todo, e a boca e o Idioma me saberem a pomada de largo espectro de acção fungicida.
Estranharás talvez, Leitor meu caríssimo, que te não ceda a minha particularíssima e dementíssima descodificação de GRP (Governo da República Portuguesa) ou de CMS (Câmara Municipal de Santarém). Pois não. Nessas duas siglas não me meto. Não é por medo. Nicles de medo. É por uma bem mais simples razão. Esta aqui: porque tudo o que nos fazem, fizeram e vão continuar a fazer, é de FNAC, só quero que tanto uma como outro vão mas é LNEC.




12/09/2014

Rosário Breve n.º 373 - in O RIBATEJO de 11 de Setembro de 2014 - www.ribatejo.pt

Ou estudo ou nada

Felizmente, o meu curriculum académico não compreende (no sentido duplo de conter e de entender) qualquer cadeira da “universidade” de Verão da JSD.
Digo felizmente com exactidão: por ser feliz que me sinto com a memória dos meus professores sérios e com a certeza de ter usufruído de uma pedagogia humanista só p’ra pessoas. A autognose que hoje posso mostrar ao espelho enquanto raspo o pelame dos queixais deriva de um lar sólido (ou”estruturado”, como agora é moda dizer), de uma escola perto e de uma vontade de aprender a que os anos não são capazes de vergar o espinhaço.
Se a infelicidade me tivesse feito cursar a tal “universidade” gaiato-citrina, eu seria hoje um palerma vácuo, um enforcado de gravata, um imbecil irresgatável, uma lesma sintáctica, um caracol morfológico, uma besta vesga, um assessor solícito, um acólito castrado, um invertebrado viscoso, um orador afónico, um esterco perfumado, um balão sem nó, um tumor com pernas, uma unha do polegar roída por prótese dentária, um nojo literário, um asco de cavalheiro, um cônjuge corno, uma anorexia idiomática, um assinante do (Amigo do) Povo Livre, um paulo-bento-contra-a-Alemanha, um dos responsáveis pelas barreiras de Santarém, um mata-peixes da Vala de Almeirim, um palerma televisivo, um infante sem infância, um programador do CITIUS, um ortógrafo indigente, um arrumador a 20 cêntimos no estacionamento subterrâneo do Jardim da Liberdade, um turista da Águas de Santarém, um colunista de O Mirante, um bilheteiro do teatro Sá da Bandeira, um actor-fantasma no Rosa Damasceno, um vizinho tê-zero daquele rapaz-escrivão da Golegã, um artolas patusco da luta contra a corrupção no Cartaxo, um padre sem fé mas deixai-vir-a-mim-as-criancinhas, um incendiário da Barquinha, um toureiro zoófilo – e, enfim, um jove’ social-democrata.
Vale-me que tal infelicidade seja, no meu caso, do mais alto grau de improbabilidade. A escola ensinou-me a pensar com os olhos. As pessoas não me são estranhas. O social não me aparece como alienígena. A pobreza material não é por mim encarada como sinónimo directo de miséria moral. Eu não vou ali ao Gambrinus canonizar um sucateiro. As escutas que me fizerem ao telefone não me ocultarão a verdadeira face. Nisto de faces, se me baterem numa eu não dou a outra, mas troco sim – e a dobrar.
Sempre que a JSD faz uma “universidade” de Verão, o Verão acaba. E a universidade também. Cada vez que a JSD diz a palavra “universidade”, as pessoas sérias pensam no Relvas. A “universidade” de Verão da JSD está para a universidade verdadeira como a Festa do Avante ser não na Quinta da Atalaia mas na Cova da Iria.
Ou numa das barreiras de Santarém.

04/09/2014

Rosário Breve n.º 372 - in O RIBATEJO de 4 de Setembro de 2014 - www.oribatejo.pt

Isto das cores

Na mesa em frente à minha, um homem doente. É quase ’inda rapaz: uns bons (ou maus) quinze anos deve ele perfazer a menos dos meus. O rosto dele é um clarão sanguíneo. A moção gestual dele é muito lenta – como se até o ar lhe doesse. De que sofrerá? De estar vivo naquele corpo, talvez. Tomou (mas tão lentamente!) um copo alto de café-com-leite. Ei-lo a respirar do esforço. O copo de água atira-lhe quatro comprimidos (um azul, um verde, um rosa e um prateado) para o labirinto gástrico (vermelho-negro). O olhar dele é feito de duas ilhotas pretas sobre nácar coagulado. A roupa é de lavada decência – alguém (a mãe?) trata dele ainda. Usa ao pescoço um fio religioso que lhe pesa na cerviz: Deus custa quilogramas na aflição. Tomou-o cedo de mais a terminação: o meu Leitor e eu, é a um moribundo que assistimos.
Repórter coscuvilheiro, junto da patroa do botequim indago dele. Diz-me ela que o rapaz é de família de bem & de bens. Mais me conta que, de quatro filhos, é ele o último. Último duas vezes: porque dos quatro o mais novo e porque único desde que, aos três outros, os finou aquela maleita irreciclável da turbina cardíaca.
Chega entretanto à esplanada a minha pomba das sete e dez. Veio com a alba no bico. É lustrosa fêmea: maciça, virente-plúmbea, duas graciosas dedadas de tinta-permanente na junção posterior das asas. Cabeça muito viva, mui latina, mui ladina. Mesmeriza-me sem pudor: quer do comer que sabe ela lhe trago eu no saco. Faço-a esperar um pouco: estou a escrever para o meu Leitor. Ela circunvagueia como um polícia aborrecido da vida. Pica do chão, por desfastio, uma migalha invisível. Sinto a indignação a crescer nela. Mas, por me faltarem dois parágrafos crónicos, haverá de esperar um pouco mais.
Quando dela aparto o olhar, descubro, para serena mágoa minha, que se foi já embora o moço do atávico coração. Ei-lo longe já além, além passando milimetricamente a passadeira. Causa ele uma fila nervosa de carros impacientes: ser automobilista é não cuidar do coração. Perdi-o. O meu Leitor perde-se dele. Não voltaremos, talvez, a escreve-lê-lo. Resta-nos a pomba. São sete e dezassete da manhã, sete minutos a demorámos já.
Vou ao saco. Tenho arroz para ela. Quatro singelos bagos tenho eu para ela: um azul, um verde, um rosa e um todo de prata – como só ela. 

Canzoada Assaltante