15/12/2020

VinteVinte - 154 (conclusão com XIII & XIV)




XIII

Ainda o prometido temporal não arribou.
A calmaria sideral sitia a vizinhança.
Pode ser que seja de festa a madrugada.
Conto dormir entre nomes de minha estima.

Bernadette, a Suave, trabalha muito.
Os pais hão-de deixar-lhe a vivenda.
É bela casa à face de denso pinhal.
E ainda estuda à noite, é categórica.

Avelino, o Rude, trabalha muito também.
Vive no sótão dos avós, nada futuro planeia.
Vende no mercado, faz recados a toda a gente.
Mal sabe ler, nada entende de metáforas.

Albano, o Órfão, morreu em Abril.
Toda a vida foi sozinho como a Lua.
Dormia numa garagem com retrete & lavatório.
Não conheceu o êxtase da carne – nem outro qualquer.

Francisca, a Magra, geme de saudades hostis.
Namorou um algarvio, que a abandonou.
Tem a boca queimada de excessos co’ anis.
A confusão na Misericórdia? Foi ela quem na causou.

Enfrento a noite nova sem estranhas expectativas.
Tenho o corpo lavado, escorreita a caligrafia.
A manta é aveludada, materna-me a pele.
Raspei ontem a barba, não estou hediondo.

Nas trevas domesticadas deste quarto, recordo.
Aquela noite alaranjada no baldio da zona industrial.
A voz dos amigos atirando graçolas hílares.
A tasca do Morais só para nós de serviço.

Como pode ser que eu haja sido tão moço?
Quantos invernos não desperdicei até ontem?
E se este livro não for um êxito milionário-estrondoso?
Nesse caso, que outro poderei ainda riscar?

Ainda o prometido temporal
etc.

XIV

Nunca com ele as coisas eram diferidas.
Tratava por tu a realidade mesma.
O que queria, conseguia – mas não por magia.
A força era dele natural como a respiração.

Conheci-o quase bem, faltou-me algum tempo.
Ele passava a buscar-me no barracão decrépito.
Umas vezes para comer no Porto Santiago.
Outras, para trabalhar no duro na carpintaria dele.

A nossa ligação era instintiva & factual.
Como já disse, ele nunca diferia.
A mulher dele respeitava-o, a ele que a respeitava..
Vi-os em harmonia sem vacilação.

Cheguei a conhecer o pai dele, era viúvo o velhote.
Gostava dos meus episódios idos no estrangeiro.
Inventei-me aventuras exóticas que ele festejava.
Ambos porém sabíamos ser tudo literatu’menti’rita.

Fui eu a desertar desse tempo-espaço incotejável.
Uma mulher imprestável prestou-se a perder-me.
Agora, não posso voltar, seria prostituir o encanto.
E isso eu não farei, serei como Albano, o Órfão, até Abril.


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Canzoada Assaltante