21/01/2021

VinteVinte - 208


JOHN LE CARRÉ
(1931-2020)



208.

 ELES É QUE O GANHAM

 Coimbra, sábado, 12 de Dezembro de 2020



O rebanho resignou-se à mascarilha, santo povo o nosso, que o somos. 
Saio esta manhã de uma pouca de sol dando no mundo-local. 
Aves verticais acorrem à mui branca farmácia do bairro. 
Mulheres na farmácia, homens no café, pombas no beiral. 
Já se vê muito carrinho-híbrido-de ir-às-compras. 

Não o fazia há muito, faço-o agora: consulto o jornal. 
Académica eliminada em Viseu da Taça de Portugal. 
Faleceu algures uma senhora chamada Capitolina. 
Faleceu alhures um senhor chamado Roque. 
São mais raros os avisos natológicos do que os necro. 

Nada é de muita importância neste carnaval sem relevo. 
Lucram as funerárias com a mortandade estatística. 
Como tudo & todos vão para o mesmo, há só que ter calma. 
Cumprimentou-me o Zé-Tó Ribeiro, filho de Armando & Odete. 
Há muito se finaram Odete & Armando, também vieram no jornal. 

Mais uma senhora híbrida estacionada à porta da farmácia. 
Vem de caniche, lenço de seda escarlate, botinas de verniz verde. 
(Parece a República mas de peito agasalhado, ó Mãe.) 
Faltam mosaicos na empena lateral do prédio da mercearia. 
Deve ter sido alguma infiltração aquosa, não sei ao certo. 

Já a manhã se nos acaba, é gaja para não voltar. 

(II) 

(Provenho de uma estirpe de homens dados ao sorumbático pasmo 
Não renego a condição, é cada um vela de velejar ou arder 
Entendo-me bem a sós com essa ancestral mas muda voz a esmo 
Prefiro de longe mais ninguém ao perto, assim é & deve ser.) 

    (III) 

    (Não vale a pena fanatizarmo-nos de sáfaros clubismos, eles é que o ganham, é  ou não é?, é pois.) 

    IV 

    É um pouco triste assistir ao frémito de ilusões parecidas as nossas mas sem a desculpa de serem nossas. Acontece-me sempre que penso em bibliografias bem-intencionadas, coitadas. Agora já não tanto, mas dantes sim, e muito, vinham ter comigo a que lesse este que aquele papel. E que a minha douta, afinal rôta, opinião lhes abençoasse a escritura. Era quase sempre quase tudo muito medíocre, chorrilhos de lugares-comuns, ecos de leituras mal-feitas de páginas mal-escritas em Língua mal-tratada. Eu todo rangia por dentro a tal frete. Até sonetos(!) me impunham tais almas provindas de algum florbelospancamento no costado de augustosgis-caixão-à-cova. Fui-me, naturalmente, fechando em copas & copos. Deixei de (a)parecer disponível a imitações versilibristas de eugenisophismas prenhes de “dedos”, “música”, “silêncio”, “solidão” , “vazio”, “mar”. Por vingança, já só leio coisas deveras óptimas. Assim me escapo de ler as minhas, ora tomai. 

    V 

    Lances, gestos, situações, frases – muitos destes elementos se me demoram. Aquela vez em que Gil Dias se comoveu ao dizerem-lhe que Cristina Draciano era viúva desde as onze da manhã, aquela manhã mesma. Aquela ocasião de Eurico Mourão, perguntando a Henrique Manuel se o velho Arnaldo Mário ainda matava o porco, lhe ter respondido este com a pergunta – Qual deles? Coisas destas, Sofia Verónica, coisas destas. 
    Sei já que não voltarei a essa povoação. Passou-me o tempo dela. Morreu demasiada dessa minha geração: Lino Leal, Manuel António, Tino Maria, Joaquim Francisco, Lucídio Miranda, José Antunes, Lídio Dias. Estão por franças & luxemburgos outrossim outros. Já nem todos vêm esparvoar em Agosto: têm lá netos, a miudagem nada quer da portuguesa maneira. 
    Não quero todavia ir por o modo-triste. Prefiro reaver aquela manhã em que por uma unha, negra decerto, não chapad’esbofeteei o cabrão do talhante que se fez à minha Muriel. (Sim, namor’andei com a Muriel, Verónica Sofia, não faças essa cara de caso-pasmo.) E quando andámos pelas ruas, bêbados como cachos-de-mesa, à sacada-d’água sem cuidar de serem as quatro da matina já dadas. Quem, Sofia V.? Pois éramos o Luís Baptista, o Zé Fonseca, o Orlando Costa & o Amílcar Moinhos. (A filha do Baptista enlouqueceu, vegeta no manicómio mais carregada de antipsicóticos do que de engaço a destilaria do Celestino Ventoso. Sabias, Verónica S.?) 
    Assim me entretém a mente – que às vezes, sim, mente: mas não por mal, SofiVera, nunca por mal. 

    VI 

Casa alta com terra de cultivo em torno. 
Dentro, o casal repara o dia conversando. 
Perfuma a casa um pão no forno. 
Gosto de visitá-la de vez em quando. 

    (VII) 

    (Fico a saber que morreu hoje, aos 89 anos, o grande escritor John Le Carré, nascido David John Moore Cornwell aos 19 de Outubro de 1931, uma segunda-feira.) 






Sem comentários:

Canzoada Assaltante