17/01/2021

VinteVinte - 195


Dr. António Martinho do Rosário (1920 - 1980)
(nome literário: BERNARDO SANTARENO)




195.

CÃOFINAMENTO 

Coimbra, quarta-feira, 18 de Novembro de 2020 (I) 
Coimbra, quinta-feira, 19 de Novembro de 2020 (II-VI)

 


I

Daqui a pouco vem a senhora-da-saúde contar-nos os mortos.
Tem essa sido a homilia diária do corrente ano-chinês.
Uma pessoa habitua-se bem aos mortos alheios, como se sabe.
O problema é se lhe bate à porta a brutalidade estatística.
Então, já tal homilia se volve deveras eucarística.

II

Continua eufórica a cena multimilionaríssima farmacêutica.
De repente, mil vacinas milagrosas querem-te a pele.
É tudo cifrão-santidade da cristandade terapêutica.
O cabrão do vírus ’inda é capaz de ser feito de mel.

III

A mente ingenuamente mente nomes.
Possivelmente mascara a evidência.
Pura & dura, a verdade é pedra-pomes
bem capaz de ferir com violência.

[IV]

[Não tenho vendido livros nem poucos nem muitos dos que faço.
A continuar assim, não sei como hei-de ganhar para a cova.
Não são de borla os serviços fúnebres, quem fica que os pague.
Deu-me hoje para pensar nisso, tempo me (s)obra.]

V

Ao fim do dia laboral, o homem voltava a casa vindo rés ao cais.
Tomava café pré-prandial no Café A Nau rés à muralha.
Isto foi há 34 anos, tudo se consumou nem de menos nem de mais.
Eu apreciava ver a rotina de quem trabalha.

Ainda aprecio – mas ora pouco saio, há cãofinamento.
Penso ser amanhã dia de sair um pouco, pós verei.
O corrente ano é lamentoso & lamentável acontecimento.
Quando esta merda acaba, ninguém sabe – como eu não sei.

VI

(A mente ingenuamente mente nomes.)

A Carolina Abrantes, velha amiga hoje deveras velha, pouco vejo.
D’antes ainda vinha petiscar aqui ao Manel Fidalgo.
Não sei se se acamou com alguém que valha ou tenha algo.
Não sei – nem revê-la é o meu maior desejo.

Teve a dita uma loja-de-utilidades.
Ficava entre a Portuense & a Palmeira.
Morava ela então em um casarão da Cidreira.

Avessa sempre ela foi a novidades.

Filha era de uma Salústia & de um Quaresma Abrantes.
Não eram de Coimbra mas de Moimenta da Beira.
Quaresma era mui dado à bebedeira.
Salústia timonava os por-enquantos & os durantes.

Lá morreram, ficou órfã Carolina.
Solteira empedernida, encardida foi vivendo.
Trespassou o negócio e, recebendo,
mudou-se p’ra casa bem mais pequenina.

Mas, como disse, vejo-a assaz pouco.
Ela desconfiava-me poeta, fingido louco.
Eu não a contrariei, até lhe dei corda:
quando comer não quero, boto à borda.

(VII)

(E viva Bernardo Santareno, nascido faz hoje cem anos!)




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Canzoada Assaltante