16/01/2021

VinteVinte - 194 (íntegro)


Três irmãos conversam pela tarde solina de um Maio sem documento



194.

 ÁRVORE QUE NOME OS FAZ COMUNGAR

 Coimbra, terça-feira, 17 de Novembro de 2020

 


I

Três irmãos conversam pela tarde solina de um Maio sem documento
Anos passam sem que se vejam, desencontrados porém foram nunca
Irmana-os precisamente essa árvore que nome os fez comungar.

A casa é do António, visitam-no Daniel & Serafim
Olham o longe que perto lhes parece por a infante comum idade
Cotejam o casario novo com o deserto antigo da terra.

Os três ora terra eles também.
Também eles três terra.
Desencontrados porém nunca.

II

Com a vertiginosa lentidão que ilude os distraídos
A tarde está em paisagem franca além-janelas
Em jardim interior cultiva rosas amarelas
O cultor de instantes-d’antes em verso revividos.

Insistem os mandantes em a dita sensibilização
O comportamento dos jovens tem sido estólido
A smartphonix-geração é calhau-pedra (e do sólido)
Não cuidam, antes zombam, da contaminação.

Em confinado fado sempre afinal estiv’estar’emos
Novidade antiga é todavia cada óbito
Aos pretos números enfim ganhamos hábito
Se não forem de família, já só os (des)contamos.

Em livro a vida é deveras mais segura
Não tem cotejo à aflição organizada
Em mente a grei não se vê já futura
Já lhe aparece à porta o Grande-Nada.

III

Nada sei do homem de rosto branco & níveas barbas
Esse que à porta nos batia mui ao de leve
A quem meu Pai esmolava com moeda branca & frases pessoais
Sei que morreu já, isso sei, mas mais não
Como se chamava, onde nascera & de quem
Ele não pedia, vendia calendários hagiológicos, não é a mesma coisa
Só uma vez por ano aparecia & mui ao de leve batia
À porta nos batia na esperança
De ver abrindo a meu Pai.

Também eu.

IV

Em outra bem melhor do que esta dimensão,
jardineiras está aguando à varanda Serafina.
O marido é Rogério, conduz seu camião.
E a filha, Graciana, é muito boa menina.

V

Vai empalidecendo dos prédios a cor que fresca foi.
À passagem (só mental, que em casa estou) anoto tal paleta.
Gasto já acima de cinco décadas, algo conheço alfim.
Esta zona deu-me nomes, gente do meu tempo-de-levante.
Tal mocidade não demando, que alienada a sei de sobra.
Opera-se-me serenidade aqui passando.
Aceito, sim, o que indeferir não posso.
Além, à porta, era o senhor-da-cadeira-de-rodas.
Há muito, claro, se fez cinza, ido seu tempo.
Certo cão recordo altaneiro àquela varanda.
O andar parece hoje espaço devoluto.
É pequena a capela que ao bairro serve.
Ali foi velado o doutor Carvalho, gentil cavalheiro.
Desço empinada escadaria, vou ao Café do Lancelote.
Só uma luz acesa, predomina o escuro.
O dono engelhou como pano sobr’usado.
Não tem ar feliz, era má para o negócio.
Nas prateleiras de vidro, bolacha-baunilha.
Anis. Porto. Brandy. Whisky. Tequilla. Vodka.
O televisor ladra um crime de facadas rurais.
Também estas paredes viram já melhor tinta.
À saída, saúdam-me com as boas-noites.
É o Feliciano, do tempo cíclico-preparatório.
Devolvo-lhe a saúde, já torno por baixo.
É já outro o bairro, de cota inferior.
Ao balcão da vivenda, pasma uma velhota.
Ao lado, o gato: nutrido, mansarrão.
No Natal passado, por aqui passei.
Não tarda, é Natal outra vez, parece mentira.
Rapariga de lenço roxo, saia verde, calçado castanho.
Já tem um menino, que porta ao colo: mansarrão, nutrido.
Morou aqui um polícia reformado.
Era pai de uma Filomena de vistas azuis.
S’inda não morreu, estará nalgum lar.
O pinheiro-manso velhinho é vivo, alegra-me.
Um de seus ramos raspa a janela do n.º 4.
Entristece-me o lixo pelo chão.
Não faltam todavia contentores, que porra de gente.
Decido não rumar a norte, flicto ao viaduto.
Aqui houve gente mesmo muito moça.
Esbatido amarelo, deslavado verde, até telhas soltas.
O esqueleto da bicicleta oxida-se em a silveira.
Foi em um Maio que aqui passei, mas de há mil anos.
Havia festa de menina, ainda então nos falávamos.
Tudo tal é cinza, tal o senhor da cadeira-de-rodas.
Não se me abate a serenidade – nem recrudesce.
Hora de jantar, ouço tinir o talher trás-as-cortinas.
Querem ver que chove? E é que chove mesmo.
Abeiro um alpendre de casa desertada.
Se quisera, entrara: há uma janela quebrada.
Distingo um tremeluzir de candeia.
É o Café Odette (com dois tt), bendita epifania.
Estive aqui dois dias antes da morte do meu Pai.
Estavam então o Teodoro, o Magalhães, o Edmundo & o Garrido.
Dos quatro, nestes 26 anos passados, só revi o Edmundo.
Achei-o próspero – mas já foi há bom tempo.
Foi já há muito tempo, foi no dia do desastre de Diana, a Frívola.
Já não chove, já estia, nem de noite é já.
Da cama onde escrevo, largo voo a outras aragens.
Agora as casas nem cor têm, chove a-cântaros-que-deus-dá.
Cega de água, a aragem semelha um televisor mal sintonizado.
Não sei bem se isto é onde era para ter sido.
Tenho outra idade mas a mesma distância entre olhar & ver.
E se não voltar ao caderno que comecei?
E se esta tinta se evaporar antes de penetrar o papel?
A casa é do António, visitam-no Serafim & Daniel.

VI

Uma parte do campo nunca foi cultivada.
Fica entre a fábrica de cerâmica e a que era a casa do Amílcar.
Ninguém aproveitou aquela terra.
Ficou, por assim dizer, solteira. Ou órfã enjeitada.
O grande nevão de 11 de Fevereiro de 1983 (sexta-feira) não a poupou.
Depois dele, as estradas novas comeram-lhe uma parte.
Às vezes passo à face dela, continua limpa, virginal.

Outra zona impoluta é certa barreira descendo ao Mondego.
Ocultam-na cedros de bom porte, divisórios de propriedade privada.
Já por ela desci ao rio, mas então era novo & temerário.
Vi-a da ponte metálica em Agosto passado.
Apeteceu-me deitar-me à sombra das grandes árvores dela.
Quando na cama, repensei-a com agrado.
Esse sítio vale para mim como pessoa amável - & amada, outrora.




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Canzoada Assaltante