06/01/2021

VinteVinte - 179 (completo)


Anoitece a frio em panorama de fábricas arruinadas



179.

 

CRIANÇA NENHUMA

 

Coimbra, domingo, 1 de Novembro de 2020

 

    I

    Enfim Novembro. Dez meses idos por inteiro. Continua esquisito este ano doente. Fechamento geral de cortinados & ferrolhos. 

II

Em vivendas disseminadas pelas campanhas felizes da idade,
crianças povoam relvados submissos a carvalhos únicos.
Hospedam de quando em vez algum artista convidado.
Senhoras de mente secreta brincam à amante impossível.
Patronos austeros usam cornaduras transparentes.
Graves mordomos tecem nos bastidores a teia do serviço.

Em uma destas mansões houve um James D.P.
Especulava no comércio marítimo, apurando fortuna razoável.
Forrou, para mais, duas heranças oportunas de velhas tias.
Fôra camarada de colégio do futuro arcebispo.
Viveu uma história reles que metia costureira.
Não cedeu à tentação muito em voga de redigir memórias.

Hoje, ou em ruínas ou volvidas hospedarias idênticas.

III

Em famílias de pano cai a nódoa da morte
Estes são dias submissos ao vírus estrangeiro
O ano fica nos anais carregado de sujidade
Nada o resgatará de tal mácula homicida.

Queria em Janeiro este fôra outro livro
Acabei por fazê-lo ao (dis)sabor da onda má
Ainda assim venho aprendendo em frente
Não faço nem de ridículo coitado nem de herói irrisório.

Talvez alguns dias venham ser de completude
Certa harmonia entre velhice & novidade
Alguma ponte eles estendam de cá a outro cá
Ponho-o assim por mais talento não ter.

Que serenidade não escasseie a quem a mereça
Sábio é o que da amurada se sabe rio
Vi-me despojado de mocidade, não o pranteio
Natural é ir-me obliquando ao que sabemos.

Já o furor erótico me não efervesce
Já sonhar não sonho olimpicamente
Antigamente copulava ainda à Panenka:
Para o exacto centro & por cima.

Isso lá vai, que voltar não volta
Tem o outono compensações portáteis
Uma delas sendo a familiaridade livresca
(A outra familiaridade é aliás defunta pavana).

Em famílias de pano
Etc.

IV

Anoitece a frio em panorama de fábricas arruinadas.
De carro-de-mão com pedaços de lenha passa Alípio.
A zona é desolada, tem seu quê de lunar.
Grandes silveiras tomaram conta do cimento.
Créus há que dizem saber de espectros nas ruínas.
Alípio não é desses, não se dá a crenças nem a fés.
Bebe o seu copo, trabalha a sua parte, dorme na sua barraca.
É sensível ao que cala & indiferente ao que escuta.
Anoitece ora a frio, não sem algum esplendor, diz Alípio.
De facto assim é, esplendem muito os abandonos.

É a norte de Coimbra, a urbe cresceu também para aqui.
Aldeias passaram a bairros, bairros a dormitórios.
Agora os dormitórios volvem-se colmeias devolutas.
O encerramento das fábricas despejou os laboradores.
A especulação imobiliária, porém, caiu de morta à nascença.
As ruínas impõem-se ao olhar mais desarmado.
O olhar mais desarmado, todavia, não lobriga a barraca.
A barraca de Alípio fica entre as antigas fundições
& os antigos mármores, vera terra-de-ninguém.
Alípio faz desse ninguém, calado, atento, diverso.

Derredor há ainda quem viva, mas é diferente do que era.
A diferença é serem menos as famílias & mais os indivíduos.
Uma oficina além, aqui um café, uma gasolineira, pouco mais.
Nenhuma criança – é gritante esta parte: criança nenhuma.
É como se Noé tivesse naufragado antes de contruir a arca.
Alípio ri-se mudamente do verso precedente.
Ele, por assim dizer, não embarca em noés nem lendas afins.
Foi à lenha nas ruínas fabris, há muita madeira morta.
Já reparou a barraca com boas ripas inteiras.
A fragmentada, queima-a no canto de pedra.

Moraram aqui perto mulher + dois filhos & uma filha.
Eram feirantes, tinham uma Transit, vendiam roupa.
Tinham uma cadela mais raposa que cadela.
O pêlo dela flamejava como um sol ruivo.
Alípio adorava o animal, que o seguia tipo sombra.
Quando os feirantes se foram de vez, deixaram-lha.
A raposa morreu no dia em que fecharam a cerâmica.
Alípio embebedou-se quase mortalmente nesse dia.
Sepultou a menina dele em lugar que me não disse.
Também escrevivo, eu, como exumando às cegas.




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Canzoada Assaltante