19/01/2021

VinteVinte - 202

© DA. 26 de Agosto de 2020 – 20h47m42s


202.

SAL À CHUVA

 Coimbra, segunda-feira, 30 de Novembro de 2020

 

 

    

    Acaba-se-nos este Novembro para sempre, as hidras farmacêuticas babam-se de antecipada fortuna ante as cifras astronómicas de vacinas a vender, vacinas que não sabemos se são ou não solução para a pandemia, nas ruas já acenderam as gambiarras natalícias, no meu tempo era chuva-em-novembro-natal-em-dezembro, agora não, o consumismo anda irritado com o confinamento, o desemprego & o subemprego & a submedíocre remuneração são manos, acaba-se-nos enfim um mês mortífero, continuam a cair como tordos os mais anosos, Dezembro parece-me já mais do mesmo, oxalá me engane – mas não parece que erre (por) muito. 

II 

Pelo entardenoitecer de outra idade 
Homens tornando a casa ao cabo da jornada 
Difusas aparições em uma era desfeita 
Permanentes porém em a minha atenção. 

De um deles vem a mulher ao quintal 
Vem a esperá-lo em sinal de presença 
Era outrora assim, agora não tanto 
Agora os casais dissolvem-se como sal à chuva. 

Não tem importância peculiar, enfim, nada de grave 
Todo o ser se indigna de não ser eterno como o horizonte 
Chega-lhe o dia em que se vê anacrónico, descartável & descartado 
Esperneia em vão, feito barata-tonta de costado no chão. 

É todavia verdade o retorno dos trabalhadores 
Vejo-os finivesperais em sua decência útil 
Esteio de tudo, casa, fábrica, bairro, cidade, pátria 
Embora pátria seja pária palavra hoje. 

Sei bem que nem todos eram ministros da bondade 
Humanos eram em seus erros aliás recorrentes 
D’então para hoje nada de tal mudou um cisco 
Mas era na minha primeira luz, tudo vivia. 

Se ora V. reporta tão pouca acção, tende cuidado: 
Homens de trabalho tornando a casa dão segura lição 
Uma rotina no cais, um cais de pedra, pontual maré 
Não é de somenos valor, é tão-só efemeríssimo. 

Quando na terra original subo ao campo-santo 
Leio-os a todos em pedra de bidatada epígrafe 
Sou mais anoso ora do que eram eles então 
E a casa a que regresso nem quintal tem. 

    III 

    Construíram a casa na margem-esquerda da ribeira. 
    Pouco alteraram à flora indígena, nem árvores cortaram. 
    À primeira equipa de operários sucedeu o inverno, que suspendeu a obra. Em Março, o trabalho recomeçou em força. Foi estreada em Outubro. A realidade não tinha parado. No alto da vila, a fábrica de sapatos tornou-se armazém de químicos. A escola velha foi adaptada a cozinha-dos-pobres pela misericórdia local. João Joaquim Inácio voltou do Luxemburgo com dinheiro a granel. O casal Donato/Letícia Bregieiro morreu naquele incêndio que até cá trouxe a televisão. 





2 comentários:

cid simoes disse...

Boa tarde. Gosto do seu blog e do que escreve, e até já lhe roubei poemas, peço desculpa, mas não vou abusar. Boa saúde!

Daniel Abrunheiro disse...

Obrigado pela leitura.

Canzoada Assaltante