10/01/2021

VinteVinte - 186 (I, não-inteiro)


© DA. 

Há pouco, na marquise, consultei o trecho avistável de mundo.
Incluí o céu na epifania.
Excertos de azul tentavam vingar entre a nublação mais carregada. 

 

186.

 

INCURSÕES A TOMAR EM FORÇA

 

Coimbra, segunda-feira, 9 de Novembro de 2020

 


    

    Avenidas esvaziadas mostram ao céu a degradação da terra. É o anti-espectáculo maior do genocídio-em-andamento deste ano-chinês. Multidões de “jovens” rebelam-se contra os constrangimentos sanitários. A Europa das “Luzes” deixou-se papar pela bicharada. Penso: vivo mais vinte anos & livro-me desta caca. 
    Enquanto não, hei a tomar incursões em força por vias/vidas alternativas. As mesmas avenidas hoje evacuadas guardam de si mesmas certa monumentalidade memorial. Digo avenidas – como digo praças, ruas, vielas, passadiços, betesgas, escadas & escadinhas, pátios, becos, ladeiras, travessas, alamedas, rotundas. Além houve em tempos um cais exíguo para no máximo quatro botes. Às seis da manhã, já homens floresciam do sono, apresavam as embarcações, subiam o rio. Fluviavam em liberdade plena. Vejo como singram. 
    A hora precoce permite acção limpa. Desdobram-se os cenários de fusão citadino-campestre – como o pátio com laranjeira & o andar com antena-parabólica. Íntima oratura ciciada, rumor do corpo desperto, nem ridente nem choroso. Como as raparigas operando máquinas-de-costura: umas, Singer; Oliva, outras. E há cinquenta anos como hoje: a pessoa livre a si mesma levando. 
    Nem sempre clareza subjaz ao levar-se. 
    Curvas ínvias integram o itinerário. 
    Anos pode demorar a clarividência una. 
    Tornam-se então poucos – e breves – os restantes. 
    Há- muito – que fruir os instantes. 
    Não ficar, sobretudo, a residir no que correu mal, no que a maldade logrou fazer acontecer. Menos tempo queimado se deseja, nenhum carnaval obsoleto, nem culpa nem perdão – singrar é que sim. Em campo de neve como sobre areal ardente, se vens para fazer – fá-lo. 
    A televisão mostra, de relance brevíssimo, o artista Artur do Cruzeiro Seixas, agora falecido aos 99 anos de nascido (em 1920; pouco lhe faltou para o centenário). Era da geração do M. Cesariny & do A.M. Lisboa, entre outros maganos do surrealismo-à-portuguesa dos anos 40-50/XX. 
    (...) 
    E ao mundo saio em automóvel locomoção, levado. Ao contrário do que temia, há para já outon’inverno, modo natural que de longe prefiro à ardência homicida do Verão. Na finimanhã, apetrecho-me, atavio-me, disponho objectos coerentes para com o espaço residencial próprio. Da máquina, o pianista nasce sons perfeitos. Dá depois lugar à cantora. Não sei onde pus os sapatos da última vez. Nem sei já quando essa vez (se) foi. Quarta-feira? Não sei. 
    Sei pouco. Faço muito do pouco de que disponho. Horácio Pratas, sei alguma coisa dele. Era um faz-tudo, dessas pessoas preciosas que se entendem em perfeição com a natureza & a função das coisas mundiais. Trabalhou numa quinta agrícola, num teatro municipal, em casa do doutor Taborda Robles, em Inglaterra também trabalhou, foi mineiro no norte da Ilha. Acabou num lar de velhos, pagando com trabalhos de recurso o internato em regime de pensão-completa. Coxeava um pouco, como dizem que coxeava o caprípede diabo dos contos à lareira. 
    Está toda a gente, parece, à espera que o corrente ano acabe – como se o próximo mais água-doce traga no bico. Não sei se trará. Entre a resignação & a revolta, o interlúdio é a solidão: da natural-existencial à gregária-social. As televisões fervilham de “especialistas”, gajos & gajas com aquele catedratismo do tipo eu-bem-vos-avisei, profetas do pretérito, adivinhadores da chuva-molhada. 
    Eu, por mim, vou pelo Alan-Fournier. Também o velho Sófocles parece querer voltar a dizer-me coisas perpétuas. Há mantimentos nesta casa. Foram supridas algumas faltas mais instantes. O Gato anda na cozinha a ver se caça uma mosca. Adora caçá-las – comendo-as depois, o magano. Em Moçambique, continuam os raptos contra portugueses. Nos EUA, prossegue a comédia Trump-Biden, à imagem & semelhança das ex-colónias africanas com suas eleições de fa(nto)chada. Fraca, embora reveladora, farsa. 
    Ericeira, Pêro Pinheiro, Felgueiras – topónimos que vêm a lume a propósito de episódios de violência entre a arraia-miúda deste jardinete-à-beira-mar-descuidado. É uma espécie de insolvência comportamental. Nos rincões provincianos, velhos & novos dedicam-se, com certo esmero até, ao espancamento metódico de novas & velhas. Uxoricídios não são raridade. E não há vacina para tal moléstia. Só o placebo das boas-intenções. 
    Um moço morre em acidente de trabalho em Montemor-o-Novo. Esta sim, é triste história. Não conheço verso que a alegre. 
    Desapareceu de Sarge (Torres Vedras) um homem-de-família, de 51 anos, no passado dia 10 de Setembro, faz amanhã dois meses já. Chama(va?)-se João Carlos Belchior do Carmo Vicente. À data da desaparição, envergava pólo azul, calças de ganga & sapatilhas brancas. Empresário de tipografia, ao que dizem. Não há, até ao momento, revelações objectivas. Aventa-se, claro, cenário-de-crime. Tem (ou deixa) mulher & filha. A Judiciária está em campo. 
    Outros desaparecidos: nas últimas 24 horas, mais 63 óbitos-virais (total provisório, 2959 casos de morte); acrescem 4096 contaminados (total do momento, 183420). É muita fruta para um pomar exíguo. 
    Prefiro a contrapartida da indagação sozinha. 
    É uma forma de resistência ao acarneiramento. 
    Tenho de sobra experiência de malevolências. 
    Vivências afins já me não deturpam, não-mais. 
    Há pouco, na marquise, consultei o trecho avistável de mundo. Incluí o céu na epifania. Excertos de azul tentavam vingar entre a nublação mais carregada. Nisto, chuviscou. Cerrei as vidraças-corrediças, comem menos hoje as minhas aves. Cirandei depois um pouco por demais zonas-de-conforto da habitação. Corrigi a disposição de livros que o Menino desarranjou, intrépido alpinista de móveis. Espero tão-só viver o suficiente para ler os que me ainda fazem falta. Ler & reler, pois que preciso desta idade para cotejo das leituras de há muitos anos – esses em que a mocidade me envelopava. 
    Lavradios frescos assimilavam a morrinha. 
    A bruma dissipava-se pelo meio-dia. 
    Apurava-se em sequeiro o grão auriprecioso. 
    Ainda cavalos perfilavam a raça ao tempo. 
    Vias comunitárias davam serventia democrática. 
    O moleiro criou uma horda de filhos fortes. 
    Os mais fracos morriam ou à nascença ou logo depois. 
    Era como naquele livro de Darwin que o padre odiava. 
    Maria & João tiveram meninos sem serem casados. 
    Ralhou-se muito a tal (des)propósito, bem me lembro. 
    Hoje seria irrisório, naquela idade não era. 
    Que será feito desses enão-bastardos? Médicos? Ladrões? 
    A largueza do Campo garantia uberdade, trabalho sendo feito. 
    Em dia de festa oracular, houve danças pagãs. 
    Ao centro do terreiro, subia o mastro fitado a cores. 
    De roda, os pares circulavam cada um sua fita. 
    A tocata era de concertina, viola, rabeca & adufe. 
    Havia entre os homens um José Leite. 
    Havia entre as mulheres uma Maria dos Santos. 
    Ainda penso neles se passo ao dito terreiro. 
    Tudo foi exposto à dinâmica deletéria da passagem. 
    Não conheço fotografias de tais pretéritos. 
    Se alguma houver, em remota arca deve sufocar. 
    Há muito que é morto o, por alcunha, Sargento. 
    O velho Rendilho já não frúi à porta a noitinha. 
    Andam agora por ali furtivos eslavos pós-império. 
    Fizeram daquilo um gulag pelintra. 
    Já o Miranda não mostra por aqui o bigode risonho. 
    Ao entardenoitecer cheirava docemente a bolachas. 
    Era então viva a Triunfo, varicosos sejam os cus de quem a matou. 
    Sim, agricultura & indústria alimentavam famílias. 
    Lamentar as ruínas é hoje visto como mariquice comunistóide. 
    Não é – mas não importa o que ladram os néscios. 
    Às 16h11m, é glauca a luz disponível. Será noite antes das dezoito, ou quase. Hei que compartimentar o tempo discursivo restante. Ir ver o Zé, voltar, dáctilo-compor a entrada 114 deste VinteVinte. Para a nutrição nocturna, tenho aprontados os víveres: sobrou bastante feijão-preto que ontem aporcalhei, assim como sopa-de-agrião. Tenho por poetar o infeliz caso do doutor Augusto Fillipe Simões, procrastinei-o de mais. No entretanto, especula-se sobre se a novel vacina da Pfizer será a panaceia milagrosa há tanto desejada pelo covidianos. Oxalá – mas atender como o sábio & prudente São Tomé. 

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Canzoada Assaltante