18/01/2021

VinteVinte - 199 (nem tudo)




199.

 DIEGO, ALADO

 Coimbra, quarta-feira, 25 de Novembro de 2020


(...)



    II 

    O indivíduo Galhardo percebia de química. Certo vegetal de colombiano plantio recebia dele trato a querosene, cal, algum ácido, éter, acetona. A lama resultante, devidamente pulverizada & branqueada, já pode matar – a troco, claro, de muita plata. Caso contrário, plomo. Galhardo está reformado – definitivamente, aliás. Alguém lhe rebentou o crânio à bastonada. Não vi quem o chorasse. 

    III 

    Rebenta a má-nova: morreu hoje o Maior dos Grandes – Diego Armando Maradona. Deixa-nos obra incomparável. Maior dos Grandes, reitero. Obra incomparável, reforço. Primus inter pares


IV 

Doçura crepuscular de extintos estios 
Envolve ainda a cuidosa atenção ao mundo 
Coisas há que permanecem, são recorrentes 
É bom sopesá-las no balancete de cada dia 
Mal ao mundo não vem de atentar-se-lhe 
Menos conta (nada conta) o aparato gritante 
Mais vale a áfona lucidez mirante 
Creio nisto sem ser religiosamente 
Religiosa mente me falta felizmente. 

    (V) 

    (Disponho de uma colecção de tesouros incrustados na mente. Nem sempre sou pródigo de sua guarda – mas bem mais insensato fui, a isto quanto, em mais moços anos.) 

VI 

Duas senhoras moram na casa branca com nespereira de quintal. 
Uma é reformada da secretaria do hospital: Graciana. 
A sua co-inquilina, Adélia, vive do amparo dela. 
Não se diga que Adélia serve de criada a Graciana. 
Ajudam-se, são mútuas, ambas beneficiam do entendimento. 
Os perversos (que os há sempre) anatematizam-nas de lambidas. 
Erram acintosamente, mas ninguém lhes corta as línguas más. 
Elas vivem porém suas vidas em calada serenidade. 
Uma sobrinha de Adélia, casada na vila, traz-lhes provisões. 
Ferve-se água, infunde-se-lhe cevada, merendam bolachas com ela. 

A sobrinha chama-se Cidália, é uma mulher-de-armas. 
Talvez por tal se casou com um enfèzado, que domina a preceito. 
O fruste parrana, Arménio, é dos que vilipendiam as senhoras. 
Cidália já por duas vezes o esbofeteou por tal nojo. 
Ele nem assim aprende, se calhar gosta de ser assoalhado. 
Ora, sei destas coisas porque ainda sou primo-esquerdo da Cidália. 
Por saber que escrevo, ela não me conta tudo, escolhe o que me diz. 
Ora, como bem sabeis, eu invento pouco, minto quase nada, certo? 
Muito certo. Assim sendo, tranquilizai-vos quanto às velhotas. 
Têm uma existência bonita, amanham cada hoje, sem amanhã nem ontem. 

VII 

Consuma-se este ano de epidémica mortandade, 
já pouco falta a Novembro para fenecer sem volta. 
Quem, de mês & ano estes, lembrar a hora estulta, 
decerto não sofrerá lembrança de mor bondade. 
Morreu hoje El Pibe, o grande Diego Armando, o mirífico Maradona. 
Há 45 anos, Portugal via morrer algo chamado PREC
Só o ir veio para ficar, nada humano há que fique. 
Dorme, q’inda a noite é uma menina. (*) 

 (*)  Linha de José Afonso


VIII 

Há muitos anos que sou 
um desses doidinhos-mansos 
que, em vez de tirar, atiram: 
refiro-me a alimento às aves. 
Ao telhado das garagens 
na traseira do prédio 
acorrem pontuais as aladas. 
Não só o comum pardal, 
não só a vulgar pomba. 
A preciosa arvéola, 
a rara poupa, 
o furtivo melro, 
a feminil rôla 
– seres da minha melhor graça. 
Cada uma das aves 
aproveita o bocado. 
São elas o instante, 
nada curam do Tempo. 
Eu sim, curo dele. 
Não me curo dele. 
Há muitos anos que 
etc. 


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Canzoada Assaltante