15/01/2021

VinteVinte - 190 (I-IV, só)

© MIKE GOLDWATER

London Underground (1973)


190.

 

A DA AVÓ

 

Coimbra, sexta-feira, 13 de Novembro de 2020


    I

    Maldonado Rapaz Wilson, gerente de loja-de-utilidades na Baixa. Tem sentido sinais viscerais de ordem diferente. Menos apetite, certo ardor ao urinar, uma que outra turvação do sentido óptico, delíquios da vontade. Faltam quatro anos & nove meses para a pensão completa, 48 anos de descontos, outrora trabalhava-se desde criança, quem podia ia estudar à noite. À noite – como agora parece que. Até sempre, senhor Maldonado & mal-pago.

    II

    Veio ao cabo de dois meses passados a sul, cruzando às vezes o rio Gilão, outras ficando horas solares lendo na açoteia. Não procurou razões nem deu justificações. Porque podia, manteve-se só na vivenda da Afonso Henriques. Dela descia, manhã muito cedo, ao Atenas. Aí desjejuava como deve ser. Aí também, escrevia duas cartas do foro profissional. Descia pela Sereia. Ia ao Botânico, depois ia cafeinar-se, já perto das onze, à Leitaria do Raul. Mais duas cartas definitivas. Descia a dos Combatentes, arribando a São José de apetite fresco. Almoçava sem pressa no Viaduto. Não chovendo, dava-se então ao périplo longo da tarde. Já então não merendava. Encontraram apontamentos minuciosos para mais cartas no saco caído a seu lado. Mas não tinham destino – ao contrário dele & ao contrário de nós todos.

III

Para melhorarmos a nossa vida, fomos ouvir a Artista.
Tivemos boa sorte, ela estava bem, foi noite ganha.
O nosso casamento ainda durou uns dois anos.
Desfez-se depois como o fumo que era, nem cinza deixou.

Houve então a empreitada larga das avenidas novas.
Quatro foram os anos de indefesso trabalho diário.
Compensou bem, é verdade, fiz mealheiro gordo.
Em boa-hora alienei a minha quota societária.

A década seguinte foi dada a municípios.
Aqui uma ponte pluvial, além uma zona industrial.
Nem meio-salário gastava ao mês, amealhava.
Comprei terreno, fiz a gosto a minha casa em Lordemão.

Financiei a padaria-pastelaria da minha namorada.
Escrupulosa, pagou-me cada tostão aplicado no negócio.
Comprei apartamento numa das torres da Solum.
Foi na noite de lá dormir pela primeira vez que soube.

Deveriam ser as dez da noite, tinha o rádio ligado.
Era a morte da grande Artista, o locutor comovia-se.
Eu também. Desliguei o aparelho, vesti o casaco preto. 
Fui ao Vesúvio queimar tempo, que deveras ardeu.

Não tenho filhos nem herdeiros nem merdeiros.
É imbróglio que deixo aos tesoureiros do Estado.
A minha namorada casou-se com um rapaz decente.
E já pensa em abrir sucursal no centro comercial novo. 

    IV


    O dia chega em que a pessoa se acha estatelada na própria idade. É como espelho deitado ao chão – de vidro virado para baixo porém. Não se é tão lesto já nas pequenas pressas. Despertam a meio da ideia prática repentinas associações d’antanho. Há imobilização da boca em cisma. Nomes mortos florescem à visão de um recanto da Cidade, este ou aquele & aqueloutro. Sabores & perfumes da meninice impõem retorno sensorial. Despovoada de dentes naturais, a boca parece a da avó na nossa cara. A noite desse dia não finge ser de repouso, antes se mostrando como de estágio. Assim é.



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Canzoada Assaltante