16/01/2021

VinteVinte - 193 (tudo)


Os acólitos têm-se esquecido de agradecer
(...)



193.

 CUIDADOS INTENSIVOS

 Coimbra, segunda-feira, 16 de Novembro de 2020

 



As palavras na desordem-do-dia agitam as patinhas incessantes. 
Os especialistas debitam-no-las mui metralhadoramente. 
Fala-se mais em camas do que nas películas pornográficas falam. 
Urgências são afinal vagarosas, locupletadas as ofertas. 
Encerramentos compulsivos & confinamentos cívicos ralham-se. 
São irmãos o teletrabalho & o desemprego-de-proximidade. 
Restrições à circulação toda – pedonal também, por desgraça. 
Contágio, restaurantes, lista de concelhos, risco elevado, movimento, 
dificuldade, transmissão assintomática, milhões em casa (das 13h às 5h), 
cumprimento, incidência, achatar a curva, acatar a necessidade, 
actuação musculada, percentagem obituária, casos de recuperação, 
testes rápidos, dúvidas nas escolas, 
surtos dos lares de idosos, utentes infectados, santas casas, santas 
misericórdias, tratamento institucional, limite da capacidade, 
lar dos mareantes, sentimentos de impotência, testaram positivo, 
telescola, isolamento profiláctico, situação desgovernada, risco a 
aumentar, próximas duas semanas, cuidar dos outros cuidando de si, 
protecção civil, avaliação da possibilidade de regresso, encomendadas 
x-mil unidades, regulamentação em vigor com o actual estado-de- 
-emergência, mais esclarecimento sobre a aplicação de orientações 
& medidas. 
Façamos entretanto café, sentemo-nos em placidez. 

II 

Imagens do tempo frio, só papéis as revivem, nesta casa. 
O infinito é feito de papel nesta casa, as janelas também. 
Zepelins pairam a contr’azul de praia aos clarões de oiro. 
Tempo frio, puro, de horas de porcelana dando vidro. 
Range no cais a madeira aparelhada das naus pré-imperiais. 
Tinem os eléctricos tão, como periquitos, amarelos ao ar. 
Equivoca-se quem ao imediato limita a atenção operatória. 
Mas não pode ser obrigatória qualquer orientação, mesmo que em verso. 
A pessoa trilha a senda que a mente lhe desvenda. 
Quando afogada em populaça, não é já pessoa mas mecanografia. 
Intrigas, enredos, voltas, sinuosidades, meandros, rodeios – tudo vale. 
Terrível é o dia em que abdicar por abulia vem co’ a noite. 
Isto é todavia especulação poética, não é sequer urgente. 
A prática individual também quer ir aos correios & à bola. 

    III 

    Oficial: nas mais recentes 24 horas, 91 mortos em Portugal pelo vírus-chinês. Novos casos, 3996. Total de óbitos este ano: 3482. 

    IV 

    Os acólitos têm-se esquecido de agradecer à de Fátima (& às de outros morredouros epifânticos afins) tanta mortandade viral. Do meu País, o Presidente da República & o Primeiro-Ministro foram à Cova da Iria rezar pela alma dos perecidos em inglório combate ao vírus-chinês, vulgo COVID-19. Fizeram mal, embarcando na charlatã barca daquela fraudulenta mistificação anti-republicana e certificando aos asininos créus que tudo está bem sob a asa da Virgem mais Brilhante do que o Sol Bailarino. Entretanto, a velhada (mas não só a velhada já) morre sufocada pela praga pequinesa. Isto até me divertira, não fôra tão macambuziamente tristonho. Nada, enfim, que faça esmorecer a ganância das multinacionais farmacêuticas. Por cá, quem quer vacina nem vislumbra aspirina. Lúcia, Lúcia, mal nos faz a tua astúcia. 

[V] 

    [Enquanto se desenrola a comédia chamada Presente, procedo em conformidade com as minhas vicissitudes (viciosas-atitudes) & idiossincrasias (reservadas às minhas idionomias). Isto é: faço sopa nova na panela-média. Como presigo, tenho riqueza de unha, chispe & chouriço porcinos. Bom azeite transmontano. A coisa compõe-se, agora que anoitece antes das dezoito horas. Lá fora, no mundo esquizo-esquisito, nem toda a gente pode sopa. Eu por enquanto posso.] 

VI 

É tratada pelo diminutivo Li
Já fez cinquenta & tal anos mas ainda o merece. 
Grácil, leve, nunca leviana. 
É tida na rua como fonte segura da verdade. 
Qualquer verdade pode contar com ela. 
A condição é ninguém beneficiar de alheio prejuízo. 
O meu pai deixou-a comigo a dois meses da luz. 
Aguentou a estocada, a comiseração pública, o assédio de machos. 
Forçou & forjou as condições de resistência. 
Ajudei-a quanto pude – e eu pude sempre. 
Arranjei trabalho na distribuição de lacticínios. 
Ela ajudava no minimercado de manhã. 
À tarde & á noite, limpava escritórios. 
Convenci-a a não ir à noite trabalhar. 
Convenci-a a ir à noite estudar comigo. 
Foi assim que ambos tirámos o curso comercial. 
No dia em que fiz trinta anos, jantámos à rica. 
Ela gosta de marisco, eu também, foi fácil escolher. 
Disse-me que certa vez o meu pai quis voltar. 
Eu perguntei-lhe o que achava ela disso. 
Ela perguntou-me o que achava eu disso. 
Eu disse que achava mal. 
Ela suspirou e disse: – Ainda bem que achas mal
Nunca mais tocámos no assunto. 
Tive alguns namoricos mas nada sério a valer. 
Ela nunca interferiu, sabia mas não comentava. 
Poupámos dinheiro, comprámos a casa cor-de-rosa. 
No dia em que a estreámos, fomos de novo ao marisco. 
Estou a chefiar a distribuição, frota de doze carrinhas. 
Não ganho muito mais, mas sempre é mais que menos. 
A Li está bem, a mamografia deu felizmente negativo. 
Há coisas negativas muito positivas. 
E todo o cuidado deve ser intensivo. 




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Canzoada Assaltante