27/11/2020

VinteVinte - 141 (IV-VI, com incisões cirúrgicas no IV)




Coimbra, segunda-feira, 14 de Setembro de 2020 (IV-VI)


IV

Uma vez ainda me é dado o mundo 
Saio um pouco na indiferente segunda-feira 
Nenhuma revolução instiga desordens 
Em recato de esplanada aproveito a luz. 

Gentil gente néscia descuida de mortes 
Renque de vivendas mostra florões cuidados 
Por aqui os velhos & as moscas reconhecem-se 
Crismaram de escritores as ruas do bairro. 

Vêm ao pão & ao café-com-leite os aposentados 
Amantes brasucas por aqui também moram 
À tardinha os empreiteiros vêm fornicá-las 
Deixam-lhes envelopes com o dinheiro da semana. 

De quando em vez algum palerma vozeia alto 
Futebol ou crimes comenta sem fundamento 
Como os poetas, os patetas escutam a própria voz 
Assim costuram as bainhas de seu mundo-nada. 

Gosto da brisa suave dando na pele às camadas 
Anseio por um outono que decerto não virá 
É perpétua a torreira do verão-todo-o-ano 
Isso sim me infelicita nada pouco. 

Conversei um pouco com gente dos meus juvenis anos 
Foi bom o bocado, de nós mal nenhum ao mundo 
Informei-me de gente, alguma bem defunta já 
Branda tristura nos chegou lume às mãos paradas. 

Miro certa roseira de que minha Mãe não cuida 
Outra mãe de outro poe’pat’eta a cuidará 
É de retinto escarlate o conjunto rosário 
Que sentinela monta à casa de que é. 

(...)

Versejador em branco de nulidades estróficas 
Não pareço quem fui, célere corredor de montes 
Prometida promessa de um génio sem par 
Parelhado afinal com o geral estrume de campos-santos. 

Mal nenhum todavia: preciso é ir levando 
Trazendo alguma coisa mais que só aniversária 
E nunca dar abébias à facção contrária 
Que a nosso mal vai velas negras rez’or’ando. 

Sem prosápia excessiva, há ciência em tomar café 
Longe dos desertos sobrepovoados da bípede lixeira 
Guardando para si algum sentido, se algum 
Sobra da evidente absurda autoritária nihilificação. 

(...)

Sim, ontem naveguei sem grandes escolhos viáticos 
Exerci a minha educação, que da PaterMaterCasa hei 
Etc. 

(V) 

(Gostaria de poder ajudar-te – mas tal não acontecerá. 
O que te falta – a mim me não sobra. 
A cada um sua banca – de cada banca, cada obra. 
Não há ajuda que possas dar – ninguém ta pedirá.) 

VI 

    Fecho os olhos para mais bem ver, certas vezes. Nem sempre é instintivo. Também não é a favor ou contra a realidade, por assim dizer, normativa. É coisa minha que por escrito pode ser partilhada. Cá vamos: 

    Rua de ambos os lados muralhada a granito. Calçada irregular, granítica por igual. Tem de ser um inverno antigo, o frio é de cerrar mandíbulas, os ossos tiritam – mas não deixa de ser aprazível marchar sobre pedra entre pedras. A noite já desferiu em absoluto o seu golpe sideral. A brisa democratiza o perfume dos pomares próximos, invisíveis já mas rumorosos & odorosos sempre. Estar vivo não é a pior ideia. 
    Alguém escuta rádio baixinho. Um cão despede-se da jornada ladrando um pouco mas sem grande convicção. Há ainda lobos nas encostas que sobem lunarmente para oriente. Digo hoje – apenas hoje & nunca mais – por não teres acedido, ou sequer querido, a vir comigo. 
    Este lugar, o granito dele, a fruta que dá, a modéstia de seus cães, a discrição de seus locatários – pode ser habitado ao menos por escrito. Daí que pudesses ter vindo nem que fosse apenas lendo. 
    Se ele existe? 
    Fecha os olhos. 
    Mira-o aqui. 


Sem comentários:

Canzoada Assaltante