24/11/2020

VinteVinte - 138 (completo, já agora)


No Largo das Ameias mora humanidade exemplar. 
Aos domingos, é mais tenebroso estar vivo ali.



138.

 

TRABALHOS NO CAMPO

 

Coimbra, quarta-feira, 9 de Setembro de 2020



(I)

(Deixo alguns montões de palavras,
oxalá encontrem sentido montículos.)

II

No Largo das Ameias mora humanidade exemplar. 
Aos domingos, é mais tenebroso estar vivo ali.
Já muitas linhas dali recolhi em graça.
Há muito que lá não vou, não tenho precisado.

Rua da Sota, Portagem, Emídio Navarro.
Mais humanidade, claro, mas de diverso teor.
Coimbra é tão cósmica quão Souselas, claro.
O transitório é pessoal, o sítio é planetário.

Viajo sem grande bagagem, daqui me não movo.
Comove-me sentir pertença ao Nada urbanizado.
Ser da família arbórea do Parque, apenas dela.
O resto é apenas gente como eu, vale meio-tostão.

Mas meio-tostão compra muita coisa no Largo das Ameias.

III

Conheci uma pessoa chamada Conway, de Oldham.
E outra conheci chamada Frede, de Norton.
E uma Heinke, de Konstanz.
Todas como eu foram gratificadas por boa sorte.
Boa foi a sorte de compreender a tempo.
Cada um por si, agora como para sempre.
E afinal desde sempre.
Esta verdade, ninguém no-la escamoteia. 

Conway-Oldham era de tias abastadas, muito.
Apareceu pelo Calhabé, acampou na Rua do Teodoro.
Nem de falinhas nem manso, agradou devagar.
Morria por ele uma Fátima, do Tovim.
Heinke-Konstanz negociava no turismo.
Aparecia a esparsos espaços só – e sempre só. 
Agradou também, era sabedora pessoa. 
Pai & mãe chegaram dela a centenários.

Frede-Norton foi o que menos se demorou.
Tinha família em Tróia, que o imperava.
Deixou-me o relógio & um cheque de mil & 500.
Conway abraçou-o, Heinke beijou-o, eu lamentei-o.
Já ninguém aparece, assim a roda a Esfera.
Não frequentamos as redes-pseudo-sociais.
Conservamos o que conversámos.
Não pode ser-nos escamoteado tal tesouro.

Éramos um quarteto delicado & forte.
Saber tudo de antemão perdido nos servia de ganho.
O prazer da mesa não nos era alheio nem raro.
Fizemos música ouvindo o restante trio.
Também Brel, por assim dizer, emulou Gauguin. 
(O verso anterior é exemplar de como nos falávamos.)
Vendi o piano, até Dezembro tenho de que viver.
Só não digo de que ano.

IV

Conversam na antenoite sobre trabalhos no campo.
O mais velho tem consulta médica na quinta-feira.
O filho dele anda preocupado com o velho.
Às oito da noite há bola na televisão do Café.
O empregado deles, Ramiro, já guardou o tractor.
Têm tempo, vão lavar-se, beber alguma coisa fresca. 

Erigiram nos montaltos moinhos electr’eólicos. 
Parecem estes esperar que os assalte um Don Quijote gulliveriano.
Toda a gente espera não haver incêndios este ano.
Já por aqui tem morrido pessoal no fogo.
As vinhas incham de fartas, ao ouro solar.
Ramiro vai já de bicicleta rumo ao Café.

Há-de haver já meia-hora de jogo, volta o pastor.
A fadiga do rebanho antecipa sono certo.
Cálido odor a sopa transita quintais.
Avós dependuram ’inda roupa lavada de fresco.
A cadela dos Matias está de novo prenhíssima.
Também esta respeita a lei & a luz dos cães.

Tácito silêncio recobre em manto o crime de Abílio.
Abílio é morto, matou a mulher, matou-se, e pronto.
Ninguém de fora há-de bedelhar por aqui.
A capela alveja ao sol derradeiro.
Recolhida a criação, repousemos um pouco.
O jogo é de pouca monta mas dá p’r’entreter.

(V)

(Pátria minha não enjeito, o desbarato dela sim.
Não a reconheço em soez gasto de tanto cabrão.
Gasto eu em ela minha vida sem outro fim
que o fim mesmo da vida mesma em pátrio chão.)

VI

Naquele baldio entre as duas vias do lugar,
para aí deitavam restos de máquinas,
restos de animais também, tesouros infantis,
era alta a erva, raquítico limoeiro ali subia,
terreno afinal de maravilha, afinal oásis
onde arqueologia & porvir rimavam na imaginação,
inçado de material poemático, sideral até,
se assim o digo, crêde-me, não o minto de todo. 

Sei que é ainda baldio, protegido, patrimonial,
de todos & de ninguém, na verdade foi limpo,
a erva é ora rala, o limoeiro desapareceu,
serve o terreno de pontual estaleiro da junta,
dorme por vezes lá alguma máquina, algum veículo,
a realidade extirpou-lhe o sortilégio,
para mais desaguaram em adultas as crianças,
só a matéria poética ainda o age.

Envelheci, não o revisito senão caligraficamente,
voltar aonde se foi feliz não é boa ideia,
sei bem que um baldio é um baldio,
não traz mal ao mundo nem o melhora, 
uma lixeira a céu-aberto é pouco lírica,
enfim, é pouco lírica mas pode ser épica,
naquele baldio a noite galvanizava a atenção,
isso ninguém me tira, o luar no frigorífico morto.

Se revisitar o muito que já caligrafei, é provável
que tal baldio conste já de algum caderno,
não o afirmo nem o desminto, talvez,
não sei, não sei muito, quero sempre aprender,
quando aprendo não envelheço tão depressa,
é como se achasse alguma jóia naquele baldio,
a asa de uma chávena amarela, uma fivela de cinto
ou o teu nome, esse que esqueci na erva alta.

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Canzoada Assaltante