23/11/2020

VinteVinte - 136 (conclusão: VI-IX)



VI

    Indiferença mais ou menos voluntária, mero esquecimento – tudo virá na maré de quando formos extintos. Não há nisso especial cunho trágico: é como é, assim será sem volta a dar-lhe. Daí que: 

Ouro-dos-pobres é a luz em atlântico diamante.
Hoje não morremos, festa singela venha.
Da ruína se vem & vai para mais adiante.
Não conta o que se teve nem o que se tenha.
Vamos para menos em descuidosa ideia.
O mais que não formos não dá para a ceia.

Rangem madeiras no quarto avoengo.
Retratos parece quererem falar.
Sozinho é o caminho, sozinha a senda.
O que não tem cura, não tem remediar.
Animais crepusculares serenam enfim.
Para onde não fordes, daí é que vim.

VII

Não havia por ali estrada, carreiro sim.
Há coisa de quarent’anos rasgaram via larga.
Alcatroaram, demoraram mais as bermas.
Hoje é itinerário decente, dá para seguir.
Este ano, passei por lá uma vez.
Tomei café na tenda de madeira do José-Rui.
Fumei sem pressa, nem sei já que li então.
Já o calor era quase inabitável, Maio embora.
As quatro ’stações d’antigamente não há já.
Estiola-se, é-se pedonal & de mais humano.

Agora já não, mas por ali havia rostos conhecidos.
Botai quarent’anos nisso, que não é brinquedo.
É de lei o rodar de gerações, sou da outra.
O pasquim local é de actualizada necrologia.
Os rostos de então são ora duas datas.
Tenho por enquanto só uma, pela demora não perco.
Mas o melhor é o arvoredo denso, a boa sombra.
Amailo, claro, o rumor da veia fluvial.
Pelo dilúculo como pelo poente, a passarada.
E os neonovos de coloridas camisas.

O Zé-Rui ergueu ali cantina há cinco lustros.
Andámos juntos na Preparatória, outro século.
Eu prefiro o inverno, ele naturalmente não.
Uma vez, num outubro, vi lá um velho.
O velho comia ovo cozido & bebia cerveja preta.
Ele tinha um bornal com livros.
Sentou-se a uma das mesas do parque.
Pôs-se a ler com olhos de quem relê.
Talvez, relendo, se reprocurasse.
Não o afirmo, a mim acontece-me muito.

Nem sei por que me ocorreu hoje tal recanto.
Não é nostalgia nem melancolia, é decerto nada.
Não sei em que estado se encontra a mãe-d’-água.
As direcções-gerais (viação, florestas) tratam disso.
Em Agosto, há sardinhadas & acordeonistas.
Decerto por isso não boto lá os penates.
Como disse, andei por lá em Maio.
(Não, não comi ovo cozido nem bebi cerveja preta.)
Tomei café, fumei, acho que li Rilke, sim.
Sou do tempo anterior à estrada-municipal.

Deste tempo também sou – mas menos.

VIII

Este ano esquisito chamado VinteVinte?
É o do vírus-chinês, mormente.
Não se fala de outra coisa.
Não se fala de Raul Brandão, por exemplo.
E todavia R.B. é caso único:
na nossa literatura como em cotejo internacional.

Os politicamente-correctos não querem que se diga “vírus-chinês”.
Preferem nome de satélite tipo "COVID-19".
Parece que é xenofobia dizer “vírus-chinês”.
Será mais, talvez, sinofobia, neste caso.
Ou chinofobia, vá.

O que decerto é, é um vírus de merda.
Há sobrecarga populacional no planeta.
Mais lixo do que siso.
Mais idiotia que estudo.
E ainda mais cus do que merda.

Esquisito ano este, que p’ra livro me serve.
Lutos à escala multitudinária.
Existir tornou-se auto-&-hetero-infeccioso.
Ao contrário do senhor Presidente da República,
não temos qualquer razão para quaisquer optimismos.

Posto isto, há que viver.
Não nos perguntemos porquê:
e para-quê, muito menos.
Siga.

(IX)

(Rondei anos demasiados cercanias imprestáveis.
Não recuperarei hoje, ou mais, de tais anos.
Desfeito está o que desfizeram tais danos.
Mazelas que causaram não são porém incuráveis.

Incurável é a temperatura deste perpétuo estio.
Às dez & meia da noite, sufoca-se em casa ou na rua.
Sofro de saudades do saudável frio.
O futuro do meu passado é afinal falcatrua.)


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Canzoada Assaltante