24/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 156 a 161

© The Sleepers, HBO Europe


156

Terça-feira,
23 de Março de 2021

    A imensa Austrália aparece nos noticiários – ou pelos incêndios intermináveis, ou pelas cheias resultantes da mais furiosa pluvialidade. Do oito ao oitenta de travões cortados. Um doidinho armado (nos EUA, claro) mata dez a tiro num hipermercado. Restrições locais antipandémicovirais, Alemanha, Reino Unido, Itália etc. & tal. No tragicómico Brasil, o tonto presidencial etc. & tal. Uma farturinha de bocejos, enfim.

157

    Praha/Praga – deve ter sido muito bela, não sei, nunca saberei. Não é raro, cá comigo, ter destes sentimentos, destas irrisões. Continuo a achar-me nascido demasiado tarde. E agora, nascido há demasiado tempo. Há muita banalidade neste autoinfligido anacronismo. Todavia, posso bem com ele.
    De Amarante, um pianista de boa qualidade chamado Gregório. Veio em 1980 completar estudos, no que teve pleno êxito. Vive das lições particulares que dá a troco de preço módico. Vive & ensina na Rua Alexandre Herculano. Sai à noite para café & conhaque, ou no Tropical, ou no Moçambique. Também Gregório gostaria de outra Coimbra, a de antes da destruição da Alta. Mas.
    Por um dia cinzento, desci a Couraça de Lisboa sem rumo prévio. As bandeiras municipal & nacional murchavam à face do governo civil. Foi no tempo em que se me revelou a poesia de Lorca, assim como o teatro de Osborne, bem como a secura narrativa de Moravia. Era quase Novembro, ao cabo do jardim-parque a linha da Lousã nutria-se de gente do trabalho, a Cervejaria da Fábrica servia o melhor fino da Península Ibérica.
    Em soturno pátio calçado a granito, carros Mercedes-Benz sinistros como orcas anfíbias. São serventes das autoridades ministeriais, sobretudo policiais. Dá horas a catedral de São Paulo, o Epistoleiro aos Coríntios. Telhados de um verde franco-escocês que me recordam Chesterton, G.K. Pombas encardidas, poalhadas de chumbo pluvial, tiritando na podridão dos beirais. É um milagre como ainda não ruíram tais beirais.
    Esquina da Tenente Valadim com a Antero de Quental: ou Loretanska & Uvoz. Por aí.

158

Homem sentado em apeadeiro de ferrovia.
A figura opõe-se a um pano de campo aberto, cultivado.
A oeste, viaduto de passagem pedonal, deserta.
E uma torre de alta-tensão subindo em força pura.

Em torno de outra prosa, construções de um cinzento atroz.
Nenhuma humanidade delas ressuda, ressuma ou ressumbra.
É sítio mau, nenhuma bondade é aqui possível.
Envenenaram a terra com descargas clandestinas, mataram-na.

Há conluio de gajos dos curtumes, suinicultores & autarcazitos.
Corrupçãozita pindérica entre matadores da pureza natural.
Patos-bravos & vereadores & chefes de divisão & almoçaradas brutais
& brutais jantaradas seguidas d’idas às brasileiras-de-alterne.

Às 20h13m, o homem embarca na última carruagem.
É troço breve, dezassete minutos, já se apeia, lá vai.
Linha de casas-de-pasto para ferroviários, caixeiros, solitários.
Tílias, plátanos, ulmeiros, álamos, robles, prédios cinzentos.

159

    Duas senhoras estiveram em tratamento sanatorial nos anos maus em que a tuberculose grassava & desgraçava muita grei. Ambas sobreviveram chegando até a bem anosas. Polly Grace Whitehead-Ferguson, inglesa de Bristol, era uma. Maria do Patrocínio Wenceslau Cintra, portuguesa do Funchal, a outra. Travaram amizade, mantiveram correspondência regular ao fio de décadas. Polly foi a primeira a morrer: em 1981, num lar de idosos. Patrocínio morreu em 1987, a dois meses de perfazer um século, em casa da bisneta Eulália.
    Não tive nem terei acesso à correspondência. As cartas em posse da senhora inglesa perderam-se no grande incêndio de 1982. As recebidas pela idosa madeirense, ninguém sabe se sobreviveram às sucessivas mudanças de residência da velhota. O mesmo espera, felizmente talvez, a minha literatura.

160

Os monstros existem, não são medos sonhados apenas.
Outra coisa os vincula & reitera: sem excepção, são humanos todos.
A História maiúscula não os esgota nem reserva.
Também o Quotidiano é deles pródigo, não duvideis.

Ciana sofre humilhações no emprego.
Júlio é ostracizado pela família.
Ciana lamenta não ter emigrado.
Júlio lamenta ter nascido.

Em uma cave mais que aquário húmida, um assassino prepara-se.
Já por quatro vezes violou, estrangulou & profanou.
Tem saído impune de cada expedição, apesar do circo mediático.
Faz o que faz porque-sim, nem outra razão lhe ocorre.

Comborças, mancebas, amásias, barregãs, concubinas, vulgo amigas.
A minha porção consumi já, perdoe-mo Deus.
E tintos & brancos; e trovas & cantigas.
Não devo ter pousio nos Céus.

161

Sala-de-estar dos doentes, Pavilhão Nove.
Televisor sem som dando bonecos para sempre.
Mulheres entupidas de narcofacientes. Chove
no jardim-japonês, onde não há quem entre.

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Canzoada Assaltante