12/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 114 a 117



114

Quarta-feira,
10 de Março de 2021

    Já a bruma do entardenoitecer obnubila da serrania as encostas – menos uma, torrada ainda do ouro-poente. Deste longe, parece lambida por língua ruiva. É bonito & fugaz, mormente em se retornando a casa empós de visita a um par doente. A pátina mercurial já é ora senhora de tudo. Vou de boleia pela finitarde, traçamos na diagonal a Cidade. Já pretéritas, visita & serrania.

115

    Trata-se de hora & meia, menos de duas horas sempre, fora desta casa. Avisam por telefone, um gajo está pronto, sai-se. O objectivo da ronda foi traçado de véspera pela – chamemos-lhe assim – capitania. Há só que atingi-lo, dá-lo por terminado, voltar para casa, esperar uma semana que o telefone volte a movimentar este tão pequeno mundo.
    Começou por um repasto de queijos, enchidos & salsichas grelhadas em casa de V.P. Foi essa a única vez que o sueco se deixou ver. A despesa dessa expedição corria por conta dele. Sabe-se hoje que houve lucro a roçar os 400%, metade para Estocolmo, metade para Lisboa.
    Não é fácil nem difícil. Um pouco de risco mortal uma vez por semana, menos de duas horas para atacar, apresar, eliminar, recolher, salvaguardar, entregar, voltar para casa. O pagamento da operação é feito à vista de & em contado vivo. Convém frequentar o centro de emprego, manter a inscrição, continuar a pedir o subsídio ínfimo.
    Cadeirão na saleta, mesa baixa ao lado esquerdo, bolachas na mesa, chá-gelado, malga de massa com carne, fruta. Televisor com aplicações-net. Filmes, documentários, muita bola. Poucas vezes, uma cerveja. Nada de vinho, nada de brancas, nada de branca. Telefone só para receber a chamada.
    Há vidas melhores? Tratai da V.ª.

116

    Américo Virgílio Nóvoa Relvas, nosso vizinho há quarenta anos, morreu ontem em sua casa. Expirou durante a sesta, a filha só deu pelo facto quando se achegou a ele de jantar na bandeja. O funeral é amanhã de manhã.
    A filha é Olga e única. Casou-se com o dono do Café ao fim da rua, moram na sobreloja do estabelecimento. Tem a vida organizada, o marido é Joaquim e trata-a com decência.
    O senhor Relvas tinha um BMW 2002 branco. Era encarregado de produção da Porcelânea, ganhava bem, reformou-se antes de a fábrica falir, é vê-la hoje em lamentadas ruínas. Estava reformado há dezassete anos, ainda gozou alguma coisa, ainda bem, era boa pessoa.
    A mulher fugiu-lhe quando a Olga andava na segunda-classe. Ela também trabalhava na fábrica, encantou-se com & prendeu-se de um fulano operador das muflas. Toda a gente entristeceu, ninguém o desrespeitou.
    A fugitiva era Ordália, nome ironicamente justo, convenhamos. O fulano dos fornos não aparelhava bem do juízo. Partiu-lhe ambos os braços, mais do que duas vezes lhe rachou a cabeça & lhe belenensizou os olhos. Ela lá conseguiu livrar-se dele. Não sabemos mais nada, acho eu.
    O gajo era Teodoro. Formosa cabeça, vistas claras & marinhas à Paul Newman, gestos dançarinos, lábia pegajosa. Dava-se com ciganos. E incendiava pinhais no Verão por ter a pica de ver os bombeiros desbancando o perigo ante os operadores de câmara das têvês.
    O dono do Café trata o BMW do senhor Relvas como trata a mulher, dá gosto vê-lo ao domingo a lavá-lo, aspirá-lo, dar-lhe mimos, ir nele ver a Académica, seja no Calhabé, seja fora.
    São vidas, não sabemos mais nada, acho eu.

117

Pouco o olho.
A bem o faço, mas pouco.
Do mesmo provimos, ao mesmo rumamos.
Tudo é prónubo da dissipação.
Somos idênticos todos, nenhum porém igual.
Falo-lhe ainda.
Pouco lhe digo, mui pouco.
A bem o faço, mas rouco.


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Canzoada Assaltante