18/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 140 a 145 (com lamúrias hipocondríacas, o 140 & o 141)

© DA.



140

Quarta-feira,
17 de Março de 2021

    Mundos paralelos: no automóvel estacionado em frente, um rapaz-pai com seu bambino na cadeira-de-segurança atrás. A jovem mãe foi lá dentro à hipermercearia, enquanto, à sombra, a esperam os dois homens da sua vida.
    A luz da manhã (que acaba) vem hoje envolta em celofane térmico superior, parece-me, a vinte graus centígrados. O azul da abóbada é prístino, lavo nele os óculos pitosgas. Sim, saí hoje de novo ao mundo a que os outros chamam seu também. Ando muito saído. Para mais, é quarta-feira, pelo que vou logo (17h30m) ver o meu Irmão.
    Prefiro horas mais frescas, frias até. O envelhecimento tem-me tornado mais vulnerável à caloraça. Por seu lado, o militante tabagismo que (faz em Setembro próximo quarenta anos) tenho diligenciado a preceito não subsidia o refrigério. Outro achaque recorrente: a região do ombro direito, cuja articulação range à maneira de gonzos de mosteiro abandonado. O costado é-me uma placa de ferro. O pé-esquerdo padece de clareza funcional, fazendo-me marchar de esguelha como algum arrependido do comunismo. De resto, quase tudo muito bem.
    Há semanas que não levo de cabo a rabo uma leitura integral. Tenho borboleteado por volumes já antigos, sobretudo relendo coisas que estreei há três décadas, e mais até. Não gasto pressa. Sou nisso mais sensato do que outrora.
    Foram-se embora os três: moço-pai, moça-mãe, bambinito de ambos. O veículo (Ford Focus escarlate) lá vai trotando como manso cavalicoque. Levam resolvida a matina. E eu, a minha: tratado está o papel a que, aliás, poderia ter dado despacho ontem. Acto facílimo. Pela tarde nova, cumpre-me fazer a dactilografia das linhas de ontem, via & vida em curso. E as bolachas? Comprei hoje as bolachas, lápis frescos, um ramo de verdes, um chouriço & uma farinheira. Livro nenhum.

141

De algia constante no costado,
fácil não é factura de sonetos.
Por este andar, não chego a ter netos:
o ’squeleto me anda avariado.

Derredor o pescoço, ranjo todo.
Um joelho já trago carcomido.
De tanta idade ter, ’inda me fodo:
de tanto me foder, estou fodido.

E eu que corri já bons oitenta metros
em nove vírgula quatro segundos!
Moço mestre fui de mundos & fundos

e a Satanás rosnei vades & retros!
Dorido o corpo todo. Tão dorido,
que, se não fodo alguém, sou eu fodido.

142

    Solar alacridade do panorama, luz de paleta múltipla, beleza impessoal do mundo à vista. Tenho lápis novos, sim – mas é com uma ponta antiga que escrevo, descobri o tôco no bolso do casaco, vetusto este também já. Venho de particular excursão a ver um Irmão: amendoeira que flor deu já – e Abrunheiro chamada. Pouca alacridade, afinal.

143

    Já não pertence à roda dos vivos o cavalheiro Lurdo Rebelo Pais Pelica, cabeleireiro de boa-fama nesta Cidade às vezes triste. Levou-o uma infecção pulmonar assaz agressiva. A moléstia devorou-o em quatro dias, sem aparente índice prévio.
    Muitos anos antes de tal fatídico desfecho, Lurdo exsudava alegria-de-viver. De propensão petisqueira, era vê-lo amiúde manjando nas melhores tabernas da Baixa. Jaquinzinhos, ossos, favas-aporcalhadas, meia-desfeita – sempre com broa-de-milho & sempre com vinho, que era tinto-maduro sempre.
    Sexualmente, era bífido; pessoalmente, um encanto. Eu quase namorei uma de suas ex-mulheres, a Branca, que aviava lápis & pés-de-alferes na papelaria-tabacaria do senhor Germano.
    É morto ora Lurdo Pelica, tem bem menos graça esta Coimbra que tantos tanto amamos. A minha geração vai subindo à Conchada do não-retorno. Moda recente, o crematório de Taveiro a muitos volve cinerários. Um de cada vez, a sua, enfim.
    A melancolia torna-me por vezes portador da pena de sobreviver a cavalheiros da estirpe de Lurdo Rebelo Pais Pelica. Depois, felizmente, passa-me a toleima. Agora que andamos todos de máscara, mais olhos-nos-olhos é que V. digo: Viver não é a pior coisa possível antes da morte. Ou, por náutica alegoria, assim: Antes de Titanic, ir sendo Beagle. Digo eu mui sozinhamente, agora que Lurdo etc.

144

Vi-o em penumbra.
Radiosa tarde porém era.
No pátio, os gatos gordos.
Uma estátua de pedra suave.
Pardais na figueira velha.
Serventia de terra mole.
Não havia fala a mais.
Nem muito que repetir.
Deram as seis da tarde.
Já tinha tudo emalado.
Faço por pensar menos nisto.
Distrai-me olhar o comércio.
Arrumo coisas já arrumadas.
Separo roupa por estações.
Há muito não vou ao mar.
Por enquanto, lido com isto.
Calçado em boa ordem.
Caixas apetrechadas de restos.
Faz sentido não buscar sentido.
Ando nisto há muitos anos.
Vi-o senhoreando alheia praia.
É outra a maré, outra a lua.
Versos já nos uniram, não ora.
Estes são meus apenas, sim.

145

Revoam folhas por chão alheio.
Faço de conta que as conto.
Só a morte nos iguala a todos.
Diferimos por natureza, é tudo.
Ninguém conta as folhas.
As árvores não as paginam.
Não faço contas – nem as presto.
Quase m’apetece lamentá-lo.
Passa-me depressa tal quase.
Mais simples, mais rico.
Menos verso, menos rasto.
Vai-se pela diferença sem amparo.
Encontramo-nos nos matraquilhos.
Lembrar é político, desassossega. 

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Canzoada Assaltante