28/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 172 & 173

© DA., Sr.


172

Sexta-feira,
26 de Março de 2021

    Convalesço em devida soledade de certo doer que a vida por vezes se compraz a trazer. Só se lá vai com calma. Não está na religião nem há nas farmácias antídoto para tal. Mais: o desespero não é remédio.
    Pela tarde, deixei-me vendo & ouvindo Cesário Verde dito por Mário Viegas. Muito bom momento daquele actor cedo desaparecido – tal como o grande Poeta que ali lia.
    É assaz concludente que Beleza & Tristeza se casem tanto. Parece ser de regra, aliás.
    À noite (agora), enquanto a bênção do sono me não devolve à condição fetal (mas, hélas!, sem mãe em volta), persigo linhas activas: enredos, histórias, clarões vocabulares, farrapos de algo que já tenha sido uno & inteiriço.
    O Passo Dyatlov. A Passagem Noroeste. O ADN-mitocondrial. Hess em Spandau. Pessoa nascido no mesmo ano dos crimes de Jack the Ripper.

173

Sábado,
27 de Março de 2021

    Velha senhora em casa antiga. Apetrechos mínimos são provisão bastante. Os fios da vida estão ligados, não dão ainda sinal de frouxidão, sustém-se ainda a frocadura. No pátio, o limoeiro é de grande generosidade. Há restos de uma eira que outrora enxugou muito milho. Hortas, depois. Não foi assim há tantos anos que trouxeram a electricidade pública. Todavia, a galeria de vizinhos vai já esboroando-se. As mulheres resistem (muito) mais, são bem mais as viúvas do que os viúvos. Não é raro um homem apagar-se aos cinquenta anos.
    Do inverosímil mundo estrangeiro, esparsas novas de outra guerra. Por aqui, a madressilva silvestre pintalga os prados. Há ainda quatro estações ao ano. A velha senhora lê o seu Camilo, que a faz chorar, & o seu Júlio Diniz, que a faz sorrir. Também folheia a Bíblia Sagrada, abrindo-a ao acaso a lotaria do mistério, a rifa da epifania.

2 comentários:

cid simoes disse...

Reli, e aconselhei a amigos, e pensei no autor que, estivesse ele mais perto procuraria conhecer.
Tem algum livro publicado?

Daniel Abrunheiro disse...

Bom dia, Cid.
Sim, desde 2003 que alguns livros meu em papel andam por aí (sobretudo ao desbarato na net). Foram mal lançados ao mercado: e se calhar também não mereciam mais.
Cronicão (2003)
O Preço da Chuva (2006)
Licor, Sabão e Sapatos (2007)
Terminação do Anjo (2008). Este último é o único "do princípio ao fim", isto é: uma história só. Os outros volumes comportam crónica, narrativa-breve, teatro.
Saúde, meu Caro, com gratidão.
DA

Canzoada Assaltante