02/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 85 a 87

© DA.

85

Segunda-feira,
1 de Março de 2021

    Céu nublado, temperatura entre 9 & 16 centígrados, vento fraco de sudoeste – diz o boletim para amanhã. Acho bem. Não é tempo que me desagrade, antes pelo contrário. Não o aproveitarei muito: entra Março mas continua vigorando o confinamento. Vou ventilando como posso a casa mental. Alucinações controladas por arreata. Não em vão se envelhece. Disponho de veterania q.b. para lidar com as sereias-cantoras. Tenho vitualhas em um saco amplo. Faço repastos breves, incisivos, nutrientes, suficientes. Claro que penso na rua, no ar-livre, no movimento alheio, no teatro-do-mundo. Resigno-me folheando, digital como figurativamente, cartapácios espessos. Não me aborreço. É dom – ou fortuna – que desde menino me ampara. Pouquíssimas vezes me entedio a sério. Melancolizar-me? Sim, melancolizo-me. Mas chatear-me, nem tanto. Acontece – mas não assim muito por-’í-além.

86

    Ó Vitorino Pródigo, meu excelente Amigo:

    Cá estamos. O Rui morreu no ano passado. Ficou por lá, entre cá & lá um oceano, digo, dois oceanos: o Atlântico & a Eternidade. Soubemos da ocorrência por indirecta via. Um telefonema na madrugada – e já está. Nós cá estamos. Mesmo que muito nos não mexamos, para o mesmo vamos. Pouco há que muito importe.
    Escrevo-te para entreter este ócio demorado com que os chineses nos mortificaram. Leituras? Não muitas mas todas boas. Releio mais, aliás, do que busco novidade. A livralhada lida na juventude merece uma segunda demão oftalmológica. Não devo é abusar: ardem os olhos de fadiga, as dioptrias são já altas, nem tu nem eu, meu generoso Companheiro, somos já vintões.
    Alimento as aves livres, atiro-lhes maná nutritivo a partir da marquise, as iguarias despenham-se no telhado das garagens, miro-as comendo, é um nirvanazito inócuo, quotidiano, meu & delas.
    Não, nunca mais vi o Jorge Conceição. Ele deve ter outra mulher – e por isso outra casa, outro endereço, outra cidade até, se calhar. Ele também não foi nunca assim muito de tabernas – como eu ainda sou e tu quase foste. Não tenho visto seja quem for. Não alinho no Skype. Quando der para sair, sairei. Anda por aí muita gana de voltar aos bebedouros abertos. Tenho tirado o passe-d’autocarro na mesma. Como tenho desconto, acaba por compensar. Aqui há dias, tive de ir tratar duma coisita. E é que fui. Andei um bocadito de autocarro. Gostei. Não se estava mal de cu tremido. Pouquíssimo maralhal, no entanto. Lojas encerradas. O pessoal trabalhador a tinir. Os cegos-de-pedir, não sei como farão: o Eduardo Neves, o Luís Cortez, esses & mais alguns. O putedo triste do Largo das Ameias deve andar penando ainda mais miséria que de costume. Nada te minto se te disser – e digo – que isto me comove muito. Por razões 8também; ou sobretudo) escreventes, frequentei muito essas singelas perdições. Revê-las-ei, enfim, quando de novo for legítima a liberdade urb’ambulatória.
    Quanto a gajas, nihil. Para esse merditório, já (pei)dei. Mais assisado é coçar a própria sombra com unha roída a sós. Não me tenho dado mal com tal celibato. Envelhecer tem o seu quê de monástico. Não é mal nem bem – é como é. Sim, por vezes sonho – mas olha: sem erotismos chafurdantes. Sonhos tipo microfilmes, coisas audazes & ininteligíveis: como versos, portanto. Nada porém de alto quilate.
    Assim vamos, excelso & primaz Vitorino meu, assim vamos – que um só sou, modesto que não majestático.

    Sempre teu demoradamente,

    Parnada Idemuno

87

    Ah Meciana née Assis ex-Pródigo ora-Martins, então

    Viva!
    Cá estou. Escrevi ao teu ex-consorte (ou sem ela, consoante o ângulo) aqui há horas. Dei-lhe conta de meus nadas, que idênticos aos dele devem ir desandando. Olha, quanto a nós todos – antes confinados que finados. Na nossa idade há já que temê-las. Mas não quero ir por aí. Não quero, aliás, ir por lado algum. Faz conta de esta carta ser a minha parte do nosso monólogo-a-dois, esse silêncio murmurado desde que me desnamoraste, te casaste, te descasaste & te recasaste, ouvi dizer que com um professor de Álgebra não-sei-quê-Martins.
    Li (sempre li, afinal) aquele calhamaço do meco, perdão, do sueco que me recomendaste. Mira: não me fez nada, nem mal de mais nem bem algum. Li-o todo só porque não faço às leituras o que fiz à vida. Hoje-em-dia, releio mais, aliás, do que busco novidade. Sei que contigo não é assim, que crês desde sempre em coelho novo atrás de moita por estrear. Eu vou mais pelos velhinhos, que são mais seguros do que a lotaria.
    Vivo sem vizinhos – incluindo por dentro. Dei por mim aceitando sem resmungo de maior o que aí vem – ou devém. Não posso ir ao Botânico, nem ao Trianon, nem ao Gil, nem à Lapa, nem à Geral. Mandam-me o dinheiro (mínimo) para casa, saio a levantá-lo, gasto qualquer coisita, acerto as despesas fixas, forro o resto: e o resto é q.b. para tinta & papel-de-carta, que a caneta é ainda a que em boas vésperas me deste. No mais, não telefono nem sou telefonado. Quinta-feira passada, chamaram-me senhor-Franco-Matias. Era engano, claro – e logo de uma farmácia da Parede. Por instantes, não me deslustraria ser Matias – para ser franco. Mas não sou. Sou o teu velho sensorte, que te estima

    Sempre, desde Sempre,

    P.I.


2 comentários:

cid simoes disse...

Como gostaria de saber fazer um diário assim. Que saudável inveja!
Tanto que tenho para ler e fazer e no entanto estou viciado em ler o que o Abrunheiro escreve e lá vou eu todos os dias passando pelo Fernando Campos, o blog Chaves e o Dalai Lima tão diferentes entre si.
SAÚDE!

Daniel Abrunheiro disse...

Quanta gentileza, amigo Cid, mas quanta.
Pronto, já ganhei o dia.
Sou-lhe grato pela leitura como nem imagina.
Ou se calhar sim, imagina.
Saúde, resistência, sempre.

Canzoada Assaltante