01/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 82 a 84

 



82

Domingo,
28 de Fevereiro de 2021

    Homem sozinho voltando de carro a casa, noite madura. Mais ninguém partilhando a via. A Lua, acerada de frio, recorta (mas não recorda) árvores. Não ligou a música, distrai-o o próprio marulhar mental. São gravuras vivas, velocíssimas, vorazes. Microfilmes de existências recordas sem fio ou aparente motivo. Nem riso nem pranto. Apenas fragmentos, películas, migalhas, aparas, unhas roídas – de outros dedos por outros dentes.
    Quase meia-noite, pára no bar da estação-de-serviço. Televisor sem som, passa um filme de extraterrestres, o balconista ri-se, também sem som, dos bonecos verdes com cabeçorras aboboradas & perninhas tipo mola-da-roupa. A casa fica ali perto, deixa-se ficar ainda um pouco. Quem o lembraria, agora que nem outonos há já?
    Vai-se pensando, sendo o que se pensa, vai-se pensendo. Outra noite, talvez ele rode o botão do rádio, conduza na solidão da noite escutando por exemplo a Canção de Solveig, a Pavana de Fauré, alguma coisa do malogrado Sam Cooke, do maduro Serrat, dos ABBA, talvez a Bartoli ou a Damrau.
    Só tem os domingos por conta de alta-recreação. Sábados incluídos, trabalha os dias. Leva coisas, coisas traz. Anos disto nisto. Em casa, por biblioteca total, catorze livros. Prefere revistas profusamente ilustradas: mulheres, carros, geografias exóticas inabordáveis nesta vida, segunda-guerra-mundial. Os livros eram da ex-mulher. Se por aí aparecer, ela que os leve. E a ela o Diabo. Nem riso nem pranto.

83

    No que concerne ao moço estreante Cesário Verde, tanto Ramalho Ortigão como Teófilo Braga foram de cabal idiotia. O primeiro fez à pressa um trocadilho fácil (do tipo “seja menos Verde e mais Cesário”); o segundo, como alhures muitas vezes aliás, não o percebeu, por isso o não incluindo num parnaso de versejadores então seus contemporâneos. Desconheço se o Vasco Graça Moura daquela época, vulgo Pinheiro Chagas, leu ou não o maravilhoso novel Poeta. Não sei nem apuro saber: o Chagas como o Moura são dos que foram sem retorno de ser – em o que o Torga & o Alegre os alegre & torgamente imitam.
    Releio muito o maduro Verde, tão cedo presente à câmara-ardente. Sempre com ganho meu, meu proveito & fortuna minha.

84

Por mais porcos que comamos,
as pérolas não comeremos
que atirado lhes tenham.
Outros sim as abocanham.

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Canzoada Assaltante