30/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 176 a 187 (todo o santo dia)

© DA.


176

Segunda-feira,
29 de Março de 2021

Insisto na visão de pessoa amanhando couves & ideias
Em seu quintal indivisível a obra una, estilhaçada depois
Queríeis talvez outro entendimento, menos cerração
Eu todavia não, eu risco mais do que me arrisco
Do que me arrisco à venalidade do benzinho
Do que me arrisco à banalidade da malevolênciazita.

Não batais a esta porta.
O que pode ser partilhado – não deve ser dividido.

177

    Um homem de roupa escura revela a um outro alguns aspectos de primícias pessoais que considera partilháveis. O outro está menos sobrecarregadamente trajado. A conversa ocorre & decorre a um domingo. No vale (daqui oculto pela orla da mata alta), há noventa anos já, está o hospício dos descompensados. O da roupa escura esteve lá por quatro vezes em três anos, internamentos de três semanas cada. O de roupa clara não o interroga – nem sobre os internamentos nem, na verdade, sobre qualquer outra coisa. Vão conversando ao fio do instante. Há livros nesta casa, mas não vêm a lume.

178

Filipe Larparente, há só que deixá-lo andar.
É de uma casa raramente aberta a estranhos.
Sidónio, pai de Filipe, inenarrável ogre.
Eva, a mamã, sofreu o que não é contado.

É agora certo que instantes empalhados perduram.
Perduram para cá do saudável, obrigam a ri(c)tos.
Deixá-lo, deixar Filipe tornear seu bosquete.
Reinaldo, seu amado amigo, quer-lhe bem.

Fieira de fábricas mais pesadas que o ar.
Fedor frio a peixe feito farinha.
Ente transiente – todos & cada um.
António, Margarida – todos & cada um(a).

Na ressaca gélida de um Janeiro sem festas?
Foram jantar fora Penélope Filinto & F. Larparente.
Penso que se entenderam bem & sem esforço.
Penélope falou de seu irmão Jonas a Filipe.

Mónica, Artur, Gervásio, Ilda – de vez em quando.
Um Julho no litoral – centro do País, tudo cinza.
O jardim-parque, com espelho-de-água, é manso.
Ainda os vândalos estão por nascer da imundície.

Cemitérios & maternidades são estádios-olímpicos.
Como correm tais jogos, sabemo-lo todos, ó malta.
Sidónio era afinal triste, mas mau a sério.
A morte foi para Eva um arco-íris na noite.

Relógio de gare, ferrovia circular do massacre.
A mulher do bolo-de-Ançã, sua voz cristalina.
Poucos mais nomes, Penélope, nem o de Verónica.
É-se sozinho na calçada, oxalá chova a sério ainda.

179

    Há uma noite profusamente fotografada que continua no álbum. Toda a gente é viva. Os músicos não morreram. Os cantores não morreram. O público todo está vivo. A ementa é caldo-verde, chouriço-assado, broa, vinho. Famílias trouxeram de casa bolos & pudins. Folhear o álbum é (com)paginar o tempo dessa noite-perpétua. Crianças hoje mães são ali tão-só filhas. O mesmo é dizível dos meninos. São 37 os anos queimados. Talvez mais ardam – a começar pelo álbum mesmo.

180

Não, não penso nisso.
Isto foi dito por Brandão.
Não creio em intuição.
Isto disse Ema disso.

181

Ao tempo das cheias, semelhava a existência mais larga.
A proporção tangível valia ao corpo a acção compreensiva.
É inexacto o cotejo brusco, segundo o qual é menos amarga,
só porque sim, a matéria já vivida que a ora viva.

Certo é porém que comezinho não era então o quotidiano.
Cheias em tempo de cheias – e quatro estações ao ano.
O milagre cíclico dava ao viver certo aparato ritual
– esta é pelo menos a perspectiva de um então infante em Portugal.

182

    Sim, interessam-me Philip Larkin (UK, 1922-1985) & Harold Pinter (id., 1930-2008). São obreiros do tipo de literatura que mais me apraz: o bom tipo.

183

Publicações periódicas na prateleira inferior.
Dois pratos pintados à mão na imediata superior.
A cave, arejada por janela alta, faz de oficina.
Adaptou-se um roupeiro a estante robusta.
Rol de preciosidades resgatadas à lixeira:
Caixa de correio encarnada muito ferrugenta;
Funil de folha alto & fundo para óleos-pesados;
Placa de matrícula RPT-200-121;
Tábua-ementa de tripé com os pratos-do-dia 5-9-1967 (3.ª-f.ª);
Coleira de cão com chapa metálica (Fiel);
Em esferovite pintada a laranja, as letras P, F & R;
Um boné verde com xadrez castanho-cinzento;
A Ilha do Tesouro da Colecção Fruto Real;
Torneira de bidé muito lascada.
A cave & seu espólio pertencem ao n.º 17 da Rua Hermenegildo Alano.
Este Hermenegildo Alano foi ilustre matemático do Colégio Astral.
Morreu no ano de nascimento do Poeta Philip Larkin (cf. 182).
A imprensa da época deu algum destaque a esse suicídio (“tresloucado acto”).
Sim, foi suicídio, Hermenegildo arrefecia de letal desgosto passional.
Sucede que o atraía a mulher de um colega, a loura & alta Donata.
Donata era porém esposa virtuosa, de inquebrantável virtude.
Repeliu o único avanço que o doutor Alano ousou fazer.
Fê-lo de maneira tão discreta quão cortante.
Dilacerado, Hermenegildo pendurou-se pela garganta.
O marido de Donata ficou muito acabrunhado com o incidente.
Era próximo de seu colega, estimava-o, nunca suspeitou.
Também este professor deu nome a uma rua: Terêncio Barros.
No entanto, estas coisas não têm de ser grafadas em pedra.
Podem constar de uma qualquer revisteca mensal.
Dessa maneira, pode ser que mereçam a prateleira mais baixa.

184

    No Julho em que sobreveio o passamento de Manuel António, já eu residia com Mabília a quilómetro & ½ do mar. A casa era pequena, ao contrário do meu amor por ela. Perto de nós vivia o casal Nunes: ele, reformado dos Correios; ela, ainda patroa da Retrosaria Clássica junto à capela. Só por duas vezes Manuel António nos visitou. De ambas, ficou connosco uma semana. Na segunda visita, conheceu Dulcina, irmã de Mabília. Casaram-se no Outubro seguinte. Não deixaram prole. Nem nós.

185

    Minto nada quando alinhavo certas perdurações. São constâncias que me integram. Não me melhoram nem pioram. São como o meu nariz: está aqui a sul dos olhos, dispõe de um poder sensitivo, pode ser limpo e coçado.
    Uma dessas permanências é M.ª José, a Adoptada. Vivia com irmãos & irmãs infinitos num casebre apodrecido. Condoeu-se dela (só dela) um casal abastado à porta de cuja vivenda pontificava um painel de azulejos representando Santa Tereza, a muito venerada por Alexandrina da Conceição. Cinquenta anos (não menos) são passados. M.ª José vive bem, é casada com filhos. Morreram já os pais adoptivos. Dos irmãos biológicos, afinal finitos, não restam senão quatro: três homens, uma mulher. Costumo ver um destes, o António. Dizemo-nos sempre os bons-dias.
    É mais fácil perdurarem os mortos, porém. São de cartografia mais cómoda, por assim dizer. Por assim dizer, vêm-me comer à mão. É o caso de Victor Veríssimo, o Tita. Sumiu-se aos 16 anos, sumiu-o um mal do sangue. Recordo-o assim: um pardal louro. Era mais velho – vencendo-me portanto nas duas únicas corridas de olímpico esplendor: a do nascimento & a da morte.
    Muitas outras durações me habitam, podendo eu, para V.ª mor comodidade, coluná-las em verso:

O homem vendedor de livros porta-a-porta.
Esse homem em pura solidão no monte.
Esse homem sentado comendo nozes a sós.
O grau de pureza daquela solidão a meus olhos.
A festa de crianças cegas na escola do bosque.
Algumas delas, espanholas; a maioria, de cá.
Nessa mesma instituição, o tanque insuflável.
Aulas de natação para os de nós mais pobres.
A morte do Manuel G. na linha-do-comboio.
Vinha com a bicicleta pela mão, algo o enganou.
Depois de um passar, vinha afinal outro ainda.
A grande nódoa escarlate no lençol que o escondia.
A casa sem porta nem janelas na encosta do cemitério.
A família inúmera (mas uma só) que nela dormia.
Eram de Cabo Verde, não se quedaram muito por ali.
Ao lado da casa, o poço com a galinha morta.
Quando mataram o porteiro do Centro de Formação.
De caçadeira, na noite de 31 de Março para 1 de Abril.
Pensámos ser peta do Dia das Mentiras.
Não era: muito sangue no chão, uma poça coagulada dele.
O passarinheiro em frente ao Café Santa Cruz.
Os passaritos em torno dele como vapor colorido.
Em semicírculo, o ajuntamento apreciando a cena.
Mais nós quatro irmãos, hoje dois só: o Fernando & eu;
Adeus, Jorge; Adeus, Rui.

186

Herdamos dos mortos tudo o que ficou por dizer.
Agora sabemos o dizível, a fala necessária.
Para nada benigno nos serve tal saber.
Antes a sólida ignorância do que a sabença precária.

187

    Ana Luzia Torresvedras Alfaiate vai à lavandaria, depois à padaria. Vai fazendo os recados que a si mesma incumbiu. Não é real o que não tem loja aberta. Orquídeas de neve pura acontecem além daquele muro amarelo. O gaio-azul é por ali costumeiro. É real cada manhã vir por milagre. Não há problema ser simples o milagre. A simplicidade agrada a Ana Luzia. O hermetismo diverte-a. Nasceu no ocaso da ditadura, não chegou a sofrê-la mesmo a sério. Um emprego regular que pague certinho, sem ondas nem restinga.
    José Abel Belo Maduro, seu namorado, diz-lhe não haver verde como o verde dos olhos dela. E ela acredita, sente-se escolhida, ser bonita é simples, menos simples é encontrar fora o olhar que nos vê dentro.



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Canzoada Assaltante