26/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 162 a 170

© DA.


162

Quarta-feira,
24 de Março de 2021

    A Bartoli canta Raupach.
    O momento é forte, é solar.
    Um minuto para as quinze.
    Raposa em serrania, livre.
    Sigo coleccionando elementos afins: faço bem & faço-o bem.
    Revoada primaveril de ar/aves/árvores atentas.
    Vivaldi pela Stutzmann.
    As coisas bem-feitas felizmente abundam, não é possível contrariá-las, delas a pujança viceja feraz & feroz.
    Voz de Cecilia & Nathalie, como (ou)vimos – adiante.

163

    Dois homens rebentados como cavalos-de-corrida na retaguarda. Conversam na saleta do mais velho. Conhecem-se & colaboram há uns trinta anos. Fizeram coisas más no segredo sem deuses da clandestinidade oficiosa. Nem sequer enriqueceram. Foram afinal tão peões & tão descartáveis como aqueles que atiraram à lama – e até, não-raro, para a cova.
    O cancro abençoou agora o mais novo dos dois. Aos sessenta anos, é punição justa. O mais velho serve-lhe whisky irlandês de tripla destilação. Fumam cubanos. Aproveitam mal o instante porém, pois que a amargura os rói a ambos. O novo regime é tão peçonhento quanto o precedente – mas novos ratos há para o velho queijo. O mais novo suicida-se logo à noite. O anfitrião é discretamente abafado no sábado que vem, durante a transmissão em directo de Ascot.

164

    Vou hoje ver uma pessoa que por muitos anos escutou, apreciou & assimilou música de primeira-água. Emulo-a, como posso & sei, nessa autodidáctica. Saio de casa daqui a pouco nesse propósito. Há lá fora sol para todos. Estarei ausente do meu Gato um par de horas. Custa-me deixá-lo sozinho, não está habituado, não sei se sofre. Órgão por Mendelssohn. Está a dar na máquina. Há coisa de uma hora, deu The Psychedelic Furs e Morphine. A musa-música é feliz & graciosamente infinita. Hoje como sempre-para-sempre.

165

    Como esperava, a luz dá-se hoje em verniz democrático, melhorando a terrenidade de tudo em que (se) dá. Esmaltado arvoredo a reflecte & areja, sendo cor total a ventilação dinâmica. Trabalharam além uma leira de terra, sulcos vivos mostra ela ao sol, pronta a receber para depois dar de si.
    Estátuas geminadas vigiam o jardim em que as plantaram de mútua solidão. Termina hoje a penúltima semana do mês corrente. Amanhã diremos: Em oito dias será Abril. Roda-perpétua, este jogo tão indiferente a seus jogadores. Da fricção entre tempo-interior (psicológico) & tempo-exterior (cronológico) é que resulta a tentativa artística.
    A luz dá-se em verniz etc.

166

    Noite nova.
    Plena hora.
    Ar macio.
    Olhar antigo.
    Em outra dimensão (há quatro décadas bem contadas), entro no quarto da tia moribunda. Volveu-se miniatura de si mesma, a pobre. Também a casa é afinal casita. No psiché também altar, vota-se à imagem da Rainha Santa uma jarra de porcelana com rosas. As flores passaram de vivas a secas – mas sem passar pelo estágio da murchidão. São agora perfil fóssil na
    Noite antiga.
    Hora vã.
    Ar exausto.
    Olhar velho.

167

    No próximo Verão, não estarei no Lobito com Augusto Gonçalves. Nem no Silva com Ernesto Lucas. No próximo Verão, estarei acompanhadamente só: de seus nomes acompanhado só. É mesmo assim.
    Tenho algum tempo. Tenho que jantar, também. Desliguei há pouco o rádio. Sabe bem sossegar o quarto. Não tenho porcelana nem rosas. Para ter uma & outras, escrevo: porcelana, rosas.
    No passado Verão, escrevi sozinho – mesmo assim é que deve ser.

168

Vi o rosto da pessoa de que V. falei na entrada 164.
Sangue do meu sangue, da minha árvore ramo maior.
Há entre nós, ora, certa solenidade de teatro:
é montado o drama, em tragicómico fulgor.

Finíssimo dúctil fio nos lia ainda, assim é.
Meia-hora é quanto temos, por semana, pós tantos anos.
Moços fomos, a moços não voltamos, ora decanos.
Daniel ambos somos – mas só ele é José.

169

Zito Job Coluna Barão, exegeta & hermeneuta,
descende de capitão lá da conquista de Ceuta.
Também: Elói-Zé de Santamaria Carvalho,
em química herói & em física, um alho.

Andei com ambos na escola.
Um trio nós eramos, e bom.
O Zito, deu-lhe p’ra cheirar cola.
O Elói é engenheiro, acho que na Telecom.

170

    A zona é pródiga em manchas pantanosas, muitas partes do ano sufocadas por névoa espessa como cal. As casas são de madeira & poucas. Não vive por aqui quem é temente a miasmas & fantasmas. Os que vivem, falam pouco dos outros & nada de si.
    Uma doença prolongada custou-me a infância mais metade da puberdade. Os meus pais levavam-me para lá no Verão. Depois, ambos morreram. Deixei de ir, convalesci, melhorei, fiquei quase bem. Arranjei trabalho, casei-me, descasei-me, mudei demasiadas vezes de código-postal. Voltei aos pântanos, paguei ao carpinteiro, tenho casa no último sítio a que chamarei casa.



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Canzoada Assaltante