09/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 100 a 104


100

Domingo,
7 de Março de 2021

    A cada terça-parte de cada dia, é-nos concedida essa inocência chamada sono. Dividida pois em três, a existência dorme em vulnerável perdoável ingenuidade. Com os anos, tenho aprendido mais um pouco dessa arte tão involuntária quão inevitável. A parecença (o parentesco, mesmo) do sono com a morte tem milénios de fortuna no filão literário. Penso hoje que o cinema é, também, a materialização dessa imaginação – ou imagem-acção. Anteontem & ontem, dormi em moção, por assim dizer. A espectacular lógica do absurdo impôs-se-me sem resistência possível minha. Assisti a essas películas em modo de alter-eu. Inocente, vulnerável, perdoado – fui de novo astro-útero-nauta, digamo-lo. Nada – felizmente – recordo de tais enredos com muitos pés & muitas cabeças. A manhã nova repôs a realidade em o sítio curial. Pus-me logo provendo às triviais necessidadezinhas do quotidiano – higiene, alimento, café forte, tabaco maravilhoso. A luz estabelecia a cartografia óptica. À distância-poente, a ânsia do mar invisível. Bem mais perto, o país das garagens, dos gerânios da vizinha, do lixo humano deixado a coalescer imundícies em coalizão imunda. Nada perdi de quanto poderia deixar escrito. Um trecho de parede precisava de ser lixiviado a preceito & a pano. Assim procedi. A limpeza pôs-se logo cheirando. Arrumei tarecos de louça, talher de amestrado metal, peças de fruta em peanha, mercearia até então dispersas. Tinha uma mensagem na maquineta infoaudiovisual. Respondi ao comunicante. Já circa meio-dia, fui tomado de uma urgência sem pressa: a de, pela multienésima vez, ler aquele soneto do Pessanha em que ele pede à mãe que não ande mendigando por esses casais. A máquina atirou-me entretanto uma mensagem mais. Também a esta respondi. Troquei gentilezas, nada de grave. Devo entretanto ter adormecido, sonhando escrever que durmo.

101

    Recordo a mansão toda em granito
    exposta ao sol-d’inverno na infância.
    Já então de recordar era perito,
    então não havia ainda distância
    do porvir ao volvido em transumância.
    Talvez V. esteja falando da alva da década de 70/XX. Sim, por aí. A aparição da grande casa demora-se-me. Jamais vi alguém nela entrando ou dela saindo. Ou seja: nem de fora a frequentavam fantasmas. Era uma construção do XIX. Sólida como um desgosto vitalício, concreta como o papel em que a escrevo – assim era. Resistia ao frio daquela parte do mundo com a obstinação dos seres longamente desejados. De propósito, nunca investiguei o clã que a habitou. Quem me levou a tais bandas, aliás, a levar-me não torna. É verdade que estive a uma unha de vai-não-vai para proceder a sós a tal revisitação. Não o fiz. Há meio-século que me sou esse rapazito ante granito. Trabalho ora mais para o mármore.

102

    Outra verdade tão portátil para mim quão a minha sombra mesma: à medida que aumento o pecúlio escrito, mais o palavreado me sabe a silêncio de espelho. Um homem não fala quando raspa a barba – mas pode pensar na eventualidade de escrevê-lo de maneira tal que o silêncio se faça ouvir.

103

    A Vila, em outro inverno. Há trinta anos, digo. Desertava-se muito cedo as ruas gélidas. Eu tinha lá casa, trabalho, demora. Trinta anos, parece mentira. Da pedra subia fumo. Todas as famílias tinham alguém emigrado. O mor do censo era de velhos. Cuidavam dos netos como do gado – sabiam o que faziam. Eu também, talvez, então.

104

Vou com o Armando de carro na noite de Janeiro.
Não sabemos se aonde vamos os amigos dele estão ou não.
É por uma estrada de pinhal litoral, o mar é cerca.
Temos a cassette dos Deep Purple no California Jam/1974.
É noite sem lua, sofrível o frio, não somos velhos.
Chegamos, as pessoas estão, é uma casa encarnada.
Há na esquina um estabelecimento de café com bilhar.
Juntamo-nos ali, vêm vinho, queijo, bolos-de-bacalhau.
O Armando & os amigos falam o que têm a falar.
Entretém-me o filme da sessão nocturna.
É aquele clássico da narração póstuma, Sunset Boulevard.
Revoada de gente café adentro: ensaio de cavaquinhos em pausa.
O filme termina com aquele grande-plano, tudo bem.
O Armando paga a despesa de todos, tudo bem.
Na volta, sinto-o contente com a vida.
Não terá muito: nem de vida, nem de contentamento.
Vou ao funeral dele no Março seguinte.
Espatifou-se naquele mesmo carro contra um pinheiro.
Foi em noite com lua, frio maior, velhice chegada.




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Canzoada Assaltante