14/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 124 a 129

© Mário Eloy


124

Sábado,
13 de Março de 2021

    Não é obrigatório estabelecer comunhão (= comunicar), seja com quem for, por dá-cá-aquela-palha. Antes o silêncio a tudo pondo em-pratos-limpos. Antes não dar-com-os-burros-na-água, sobretudo se águas-de-bacalhau. Antes bracejar alto-lá-com-o-charuto.
    O parágrafo anterior é apenas divertimento. Não é comunicação. Complicar & simplificar encontram-se em vãos-de-escadas que fedem a mijo – nem todo de gato.

125

    Luzia deveras luzia, ela sim, toda de luz.
    Esplêndida moça, grácil raparig’ameninada.
    Olhá-la era ver derredor mais nada.
    Luzia, cândida rosa, Luzia Maria de Jesus.
    Não sei que seja (des)feito dela. Sei que outrora se casou com um rapaz do Minho, ouvi que se descasou sendo já mãe de três ou quatro mamões, mais não sei. Há boatos. Um, que fez vida em Lisboa nas tabernas cujas noites duram décadas. Outro, que se amasiou de um engenheiro da Câmara de Penela, irmão do presidente vitalício da mesma. Tretas, tudo tretas. Gostaria de sabê-la bem, recasada ou não, rica ou remediada. Tem na minha lembrança um lugar de favor. Gosto dela luzindo. Sombra lhe não deito, mal lhe não quero, bem sim.
    Vem, sim, à lembrança sua passagem.
    Era, sem andor, seu andar de imagem.
    A luz a cegos voluntários oferecia.
    Santa & boazona, boazinha & Luzia.

126

    Uma saída feliz – aquela para lá das colinas, essas derradeiras que raiam ao horizonte a foz da montanha. Íamos no Peugeot 404 azul que o Ramiro Parteiro emprestara ao filho. Este, ao volante, ia muito concentrado na tarefa. Ao lado dele navegava o Ícaro Mota. Atrás, éramos o João Joca, o Bimbas Mateus & moi. Lá fomos para bandas de Aveiro. Fizemos Ílhavo, as Gafanhas, ainda rolámos o nosso pedaço. Na volta, almoçámos na Malaposta. Era para ter sido na Mealhada, mas foi na Malaposta. Vimos gajas fugazes atracadas a outros, que nem Peugeot tinham. Vimos a fímbria azul do mar sob um sol verde, ferrete o sol duro. À passagem por Portunhos, desatou a chover. Arribámos a Ançã, fomos a casa do Godolito, o bravo Lito do FerryAço. Bebemos vinho, comemos presunto, queijo, broa & nozes. Nisto, fez-se noite. Bebemos café com cheirinho na Cidreira. O J.J. ficou na Póvoa do Pinheiro, o Bimbas em Antuzede, o Ícaro ficou na Adémia dizendo que ainda tinha de ir à cera, o Mirito & eu no Loreto. O século era outro, o milénio também. E só eu & o Bimbas estamos vivos. Já não saímos nem somos felizes.

127

    Esta teria sido uma boa noite para passear. É fria, vivificante, limpa. Não pode ser de passeio: continua o mundo em a prisão-preventiva chamada confinamento. Parte do serão, usei-o ouvindo: Vivaldi, Händel, Bach, Paredes (o filho). Ele ainda há caminhos em casa. Modos de ir, ficando. E modos de ir ficando.

128

Território aberto ao nevão de seis dias íntegros.
Solidez escura da mata esparsa sarapintando.
Fria antiguidade impiedosa deste mundo.
Com as altas fundas silveiras estelares: partilha.
Uma pessoa pode aqui existir sem algemas.
Plantas & minérios trabalham em cumplicidade.
Cada animal é por aqui verso cursivo.
Nada que enganar-se, nenhum pagamento.
Uma noite, à face do lume domesticado, fala-se.
O abrigo abriga quatro, desde Janeiro aqui estão.
Conta um o que ouviu no entreposto central.
Um afogado que andava ao salmão, parece.
Deveria ser caloiro nestas solidões, em solidão se foi.
Assim vamos todos – sentencia outro.
Mais salmão sobra – um terceiro.
Eu sou o quarto, e calo-me.



129



Destes dias, ao menos se guarde algum testemunho.

Sobra-nos tinta, papel nos não falta ainda.

Temos de mais deixado andar, correr, fugir, não-ser.

Tão exíguo o rasto é de doentes sem raízes.

Semblantes esmaecidos, muitos há a janelas quebradas.

Em arredores portuários, figurinos ao frio se inclinam.

Não acusemos a sorte, a falta dela, dela a indiferença.

Seja a demora o que nos pensa.







Sem comentários:

Canzoada Assaltante