20/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 664

 

© Susan Abbott

664

Segunda-feira,
19 de Julho de 2021

    Noite de temporal no filme. Casas de madeira de sofisticada construção. Madeira com cantaria, aliás. Árvores resistem nos elementos em moção – todavia, dois contentores foram já tombados pelo vento, parte das entranhas escorreu obliquamente para a calçada. Pela aurora, tudo ficará limpo, arrumado, devolvido à norma. Numa cozinha, mãe & filha partilham as tarefas. Já jantaram há muito, preparam o chá, os dois pires com fatia de bolo-inglês cada, seguem para a sala-de-estar, a filha liga o rádio, faltam dez minutos para o folhetim, acaba amanhã, a corda do enredo será hoje levada à máxima tensão. Tem como pano-de-fundo uma vilória piscatória no século XIX. Haverá ou não isso a que chamam crime-perfeito? Em outra sala-de-estar da mesma rua, um cavalheiro esfumaça de seu cachimbo. Já leu & releu o jornal, dobrou-o com cuidado, deu-lhe assento no topo da pilha à direita da poltrona. Acaba por não servir-se de um conhaque final, abandona o cachimbo no cinzeiro de porcelana, vai deitar-se, o quarto é no piso superior. Desta casa saiu há muito, batendo a porta, a mulher do fumador de cachimbo (“Ceci n’est pas une pipe”). Há muito: 1972, na semana entre o Natal & o Ano-Bom. Águas-passadas que, neste caso, ainda movem moinhos. O abandonado costuma chorar ao deitar-se, parece ajudá-lo a adormecer, tal ritual. A casa de mãe & filha é a cor-de-rosa. A do desquitado é a verde. Na amarela, a família é completa: homem, mulher, duas meninas, dois rapazes já púberes.
    Vão de andaina os anos: em renque, em fiada desfiada, sobre andas, em trajo e/ou velame completos, carreiros meãos & salinos, levando o pescado a terra. Já fui desta rua. Já não sou, já sou um não-desta-rua. Não tenho estado quieto: já dei 57 voltas ao Sol, não é brincadeira, 57 voltas ao carrossel-carrosSol.
    A mesma rua, novo filme – ou precisamente o contrário. O casal (ambos em segundas-núpcias) acabando mal: na casa escarlate, um tiro na cabeça da mulher, por cuja sobrevivência alguns hão-de considerá-la miraculada. Por homicídio-na-forma-tentada, o homem apanhou dez anos, seis dos quais chegou a cumprir. Uma vez solto, não volveu a casa, que fôra arrematada por um casal mais velho & muito mais manso. Noite seguinte, dia anterior.
    Vento dando-se chuva em arvoredo, música dessa fusão, de ponta a ponta a ponta da rua. Certa similitude claustral de árvore-coluna-árvore-fonte-árvore-átrio-árvore-céu. (Já-noite ou noite-ainda? Importa?) Contentores virados, esventrados, repostos no lugar, tudo limpo & lavado.
    (Mas talvez isto esteja escrito, perdão, fotofilmado, à sombra do prestígio do não-experimentado. É equívoco, é esquisito, é estranho, é estrangeiro. Verei no que escreverei.)
    É rua a que pode chamar-se terra-de-ninguém no sentido de entre-trincheiras-inimigas: pois cada vizinho é mais de si vizinho que do oponente, e trincheira cada pessoa com seus mortos, seus feridos, seus tão solitários vivos, sua fatia de bolo-inglês.

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