01/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 510 a 521


 

510

Sábado,
26 de Junho de 2021

    Tenho por estes dias praticado dem’h’ora, uma certa constância diversa da de rotina. Trato de coisas que havia que tratar – algumas das que (pois são várias) bem capazes de consumir mais tempo do que vou-ali-e-já-não-sei-se-venho. O caminho nem sempre é rectilíneo, mas também nem sempre é ínvio. Uma pessoa encontra encruzilhadas. Pode aproveitar o cabedal da experiência para escolher bem – ou menos mal. Estou aqui com este paleio porque sim. A coisa vai ou há-de ir – resta ajudá-la que vá bem. O universo é eterno & infinito. A vidinha humana, não. Anda-se por aqui um bocadito, chega-se a uma das encruzilhadas, escolhe-se, é-se escolhido, colhe-se, é-se colhido. Etc. Toda esta “sabença” é velha & revelha. Em apurado resumo: trato do que tenho a tratar, depois se verá com que resultados. Sem pressa nem dem(h)ora.

511

    Li tal artigo sobre um homem-escritor que deixou obra de interesse & relevo. Português, figura do século XX. Hoje-em-dia, com o barulho-das-luzes da internet, as obras-em-papel vivem outros enredos. Ao que parece, aparece ainda alguma coisa válida de vez em quando. A massificação do lixo, todavia, enche as montras & os mostruários. Já me incomodou mais que assim seja (porque de facto assim é). Cheguei a publicar as minhas coisas em modo-livro (seis) – mas não me parece que tão cedo (ou alguma vez mais) alguma editora (a sério) se interesse (a sério) pelo que escrevo. Claro que não me refiro a essas chancelas que por aí abutram/avultam à rapina de umbigos-sem-talento. É negociata – o vaidosito quer ver-se publicado? Fácil. Mande o texto, a gente imprime, o senhor compra-nos xis exemplares à cabeça, depois até lhe organizamos uma apresentaçãozinha/beberetezinha de lançamento para os desgraçados seus familiares, amigos & demais acólitos da sua vidinha. Claro que respondi sempre Não, foda-se! a tais sereias vendilhonas. Vou publicando as minhas coisas no blog, é de borla, não paga impostos & não dá receita. Fica ela por ela. É um bocadito triste – mas também a vida é um bocadito triste, e a gente vive-a na mesma.

512

Ainda algum tempo quer vir a tempo.

Recolhi provisões, estou por dias.
É um habitáculo limpo, a luz o designa.
Presto uma algo diversa atenção ao momento.
As circunstâncias são claras, não dúbias.

Tal como prefiro, desperto cedo, apronto-me.
Há ocupações fixas, há tempo-livre, há tempo-livro.
Articulo tudo guardando o pecado, perdão, o pescado, perdão, o recado possível.
(Onde escrevi recado, pode ler-se recato; e regato.)

513

Domingo,
27 de Junho de 2021

    Primeira luz. Muito cedo. Noite, ou grande parte dela, feita cinematógrafo. Enredos recortados com marcante nitidez: personagens, motivos, acções, reacções, o diabo. Agora, como sal em água morna, esse imaginário dissolve-se sem ajuda. Resta a realidade, cinema também.

514

    Horácio Artur do Vale Ronda, (de) há muitas décadas, frequentou esta vizinhança. Morava na zona oriental, mas era de seu gosto visitar-nos a norte. Vinha a ¾ da manhã, tomava o aperitivo com os homens das oficinas, almoçava com algum aposentado como ele, partia no autocarro das 15h00m. No último ano, habituou-nos a ficar-se para a merenda. Às sextas, até jantava. Apanhava depois o táxi, tudo com uma certeza de relógio. Bebia bem – mas jamais alguém o viu torcido. Deixou saudades até terem de esquecê-lo os que depois dele morreram também. Sou dos que ainda o recordam, o que me parece não ser nada mau sinal.

515

Ou então singrar sem sangrar de mais
no curso dos anos ainda contáveis, talvez.
Ser um barco, ser de si mesmo arrais.
(Modo de dizer, metáfora de quando em vez.)

516

Segunda-feira,
28 de Junho de 2021

    Decerto te não recordas, meu bom Luiz Ismael Hilário Limão, de uma (in)certa conversa nossa no curso da que te disse da bondade de um senhor então muito doente. Morreu ontem. Noticiaram-mo há pouco. Não sei a que horas dessa véspera irremediável. (Sim, é redundante chamar irremediável a qualquer forma ou medida de pretérito.) Morreu, enfim. Enfim, levam-no. Dói-me esta nova. Fui ao casamento deste senhor. Foi a 20 de Maio de 1973, domingo. A noiva era (ainda é) de olhos lindíssimos. Ele era um noivo elegantíssimo. O Pai dele & o meu eram amigos-frater-peitorais, dúvida nenhuma. Triste nova, Luiz Limão.
    (Mui triste nova, Ismael Hilário: apurei entretanto ter tal meu amigo & senhor, Carlos Alberto Pinho Dallot, falecido entre as 11h30m & o meio-dia de ontem, domingo também, 27 de Junho de 2021. Somos veramente farrapos da Inconsútil Malha, Amigo.)

517

Terça-feira,
29 de Junho de 2021

    De ora a dezassete minutos (quando se derem as dez, pois), começa a cumprir-se o serviço fúnebre em tenção de meu Amigo Beto D. Segue-se cremação, segue-se a saudade por um homem bom, gentil, discreto, homem de sua mulher & pai de seu filho. Jaz em paz. Mais me não resta que dizer assisada & acertadamente a propósito.

518

    De Osbert Sitwell (op. cit., pp. 251):

    “My heart did not beat with the heart of the herd: for the first time I realized this, and the painful roads to which it might lead me. Herdsmen I admired, even when their opinions were wrong; sheepdogs seemed the wisest of animals, but the herd found no abode in my heart, even though I might love each member of it separately.”

519

    Tiara Augusta & Lúcia Gramática foram internas do Orfanato das Clarissas do Desagravo. De terníssima idade postas na Roda, saiu Tiara Augusta aos treze para servente-de-sopeira em uma casa de médico da Elísio de Moura; Lúcia Gramática saiu aos quinze, tendo podido indeferir a ordem para entrar na Ordem. Lúcia foi para uma casa de lavoura na zona de Pombal, por lá lavourando até se lhe madurar o cabedal. Tiara ainda serviu oito anos em a casa do doutor, mas liberou-se casando com o honesto Ernesto Pedrosa, mecânico de pesados em Santa Luzia. Como são vivas ambas ainda, ainda há mais história – mas eu também não posso sabê-la toda, por mais que invente, perdão, avente, perdão, tente.

520

    Nos homens também – mas menos. Nas mulheres, bem mais. O quê? O tragidrama de fugir de deidade a de idade. Não há (be)atitude que vède tal fuga.

521

    No primeiro poente sem Beto (mas eu ainda o não sabia primeiro), contei oito luzes laranja-lume do lado oriental & seis rubro-cereja do ocidental. Anilava-se a ponto de violácea a luz respirável – e eu, a uma janela alta, perfazia a minha irrisória aritmética iluminista. O mundo é bonito. Em a zona da Cidade em que então eu permanecia, é particular calma aquela hora pré-lunar. Amarelos (não-fortes), verdes (sempre variados), muito branco, alguma dedada azul, o exotismo de uma frontaria violeta. Sim, bonito mundo. Para minha acrescida prazenteirice, pouquíssima gente na tela do visível. Uma rapariga acoplada ao telemóvel, algum praticante aeróbico suando as toxinas do seu dia-de-trabalho, algum binómio velhota-cachorro, pouco mais. O trânsito rodoviário mesmo, irrelevante. Uma carrinha-marca-de-gelados, uma ambulância sem pressa, o autocarro novo esplendendo de icterícia, um joaquim-alves-barbosa-agostinho biciclando na mais descuidosa pacatez deste mundo. Domingo velho, noite nova. Há quantos lustros ando eu literascrevinhando afins “apontamentos-de-reportagem” (como dizia o finado & inefável & imperturbável Raul Durão, lembrais-Vos?)? Há lustros muitos, decerto.

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Canzoada Assaltante