07/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 551 a 570


© DA.

551

Sábado,
3 de Julho de 2021

Escrever é fazer-Vos a folha. A V. como a mim.
Ser do ser, ente do ente.
Do ente, a mente doente é demente.
Não falo por V., falo tão-só por mim.

À amásia de António alcunhámos: Antonomásia.
E à mulher dele, mortinha por ser viúva, Madame Redundante.
Ambas de estupidez populosa, tipo tamanho da Ásia,
que é um hipercontinente do poente ao levante.

Pelo-andar-da-carroça da política correcto-sexual,
não tardam aí os desportos obrigatoriamente mistos.
Por exemplo: em futebol, a selecção masculina de Portugal
continua masculina – mas só com lésbicas & apalpa-m’istos.

Domitília Florida Garrido Salústia
chegou do Brasil com jé-zúice-dêusse-ná-bôcà.
Vem alugar o côno, ofício de angústia
que a faz parecer doidjinha & lôcà.

“A melhor coisa do Brasil é ser tão longe, meu…”
– diz isto o Tomé Alemão Frazão de Maçans.
Na Fórmula-1, se rebenta um pneu,
o melhor é fugir-se pelas barbacãs.

Tomé é egotista, tem aquele -me recorrente
da conjugação-pronominal-reflexa.
É de mente côncava & de asneira convexa,
mas nem é marra-paz, é diferente.

País africano de nome marisqueiro: Camarões.
(A Gâmbia quase dava para o trocadilho.)
Fazer humor com África dá hoje sarilho,
codilho que bem passo aqui p’los colhões.

Zé-Júlio Ernesto Penadacor Daramona,
aviador de coparetes & servidor de sonetos:
então não é que lhe passa pela mona,
mesmo sem filhos ou filhas, ’inda ter netos?

O Zé-Júlio é homenzarrão, de carão bonito.
Consta que o seu marsápio não é brincadeira:
28-por-8-cabeça-de-pêssego-&-cospe-torneira,
já muito mulherio se viu com ele aflito.
(E até um rapazito…)

Escrever é folhear-Vos
etc.

552

    A eternidade (ou éter-idade), se calhar, existe, mas olhai: não é assunto que nos diga respeito, não-senhores.
   A existir, existirá pela ubiquidade, implicando todavia esta uma velocidade humanamente inconcebível, além de, no plano humano também, fisiologicamente intolerável.
    Há séria possibilidade de os electrões serem ubíquos, tal & tão doida é deles a correria orbital ao puxão magneto-gravítico do núcleo-átomo. Sim, podem os elementos ser eternos & ubíquos – deuses, portanto.
    Nós, não.

553

Dou-me bem com
&
dou-me bem a:

sapatos italianos
café santomense
chá moçambicano
rigor alemão
pontualidade britânica
suão africano
salero andaluz
bebedoria irlandesa
bravura vasca
teimosia catalã
doçura galega
erva-brava beirã
aurora nórdica
&
a
Língua Portuguesa.

554

    A minha poesia, de tão velha, fede já a mijo-de-pernas-a-baixo. De nariz suspenso sobre ela, cheiro-a sem esforço mas com repulsa. Não importa: vou seguir criando-a. sem ela, a nenhures iria ou chegaria eu – nem com molho-d’alcachofra. Sexualmente falando, ninguém tem nada que ver com esta minha realidade, a qual consiste em, no lugar da antiga grande & glande pujança, ser hoje um caso dermatológico: isto agora é só peles.
    Ora, a minha poesia, a minha dermatologia
etc.

555

    Varia mais o sujeito do que o objecto, julgo eu, no que ao conhecimento concerne.
    A idade é um factor taxativo & inclemente, no processo. É de seu natural a catedral durar mais que seu arquitecto, seus pedreiros & seu bispo. Já nem falo das ovelhas.

556

    Na hipermercearia, deparei-me hoje com N. & Z. Bravas sexagenárias, bonitas como bípedes rosas, muito bem-formadas, de trato fácil, firme, franco, formoso. Fui-me depois às compras por aqueles corredores, aquele fácil labirinto de artigalhada necessária. Comprei os seguintes versos:

Aveia de ver cavalos bebendo de lagoa ao entardenoitecer;
Caderno quadriculado de meu Professor Elias perfumado;
Uma sacada de pêras (daquelas boas de cozer
com açúcar-amarelo, canela & de hortelã um punhado).

557

Peço-te, amor, um pouco de glicose.
De azoto ureico, já te peço nada.
’ind’ há quem co’a creatinina goze:
e até co’a alcalina fosfatase.

Tu não queiras, amor, ver-me de uratos,
dá-me sódios-potássios-cloros-cálcios.
Proteínas-totais, p’ra mim são mato(s).
(Você sofre dos pés? Então, descalce-os.)

Osmolalidade piora co’a idade.
Albumina, ó clara-d’ovo-frito.
Bilirrubina dá totalidade,
Creatina cinase faz-me aflito.

Manda-m’um mail, já não há telegramas.
Suores d’amor eu tenho dos felídeos.
Faz-me hemograma mas com leucograma.
A caminho, dá-me os triglicerídeos.

Meu tempo é já pouco, ó rosto amado!
Conta pois meu tempo protrombina.
Também meu tempo de tromboplastina
se perde parcial mas activado.

Viva o poema, viva, viva, viva!
Viva até o D. Colesterol Total!
Viva a Proteína C Reactiva!
Amor, sou o teu laboratorial.

558

    Ele era triste devagarinho, ensopava tabaco & queimava vinho.
    Escrevo “era” porque já não é: fene’fale’ceu, felizmente para ele. Refiro-me a Jesualdo Brinca Calvo Mont’Alvo, ex-53 anos, ex-fuzileiro-naval, ex-marido da potente Eustácia Apara de Viarco-N.º2, ex-editor de folhetos pró-monárquicos – ex-tudo, enfim.
    O último Jesualdo a que tivemos direito (digo-Vo-lo de coração condoíd’amarfanhado) foi o de lamentável (e lamentosa, carago, e quão lamentosa!) hipocondria. A cada momento, ei-lo de antenas aflitas ao morse da tensão & da frequência cardíaco-arterial. Dizia-se desoxigenado, vítima de conspirações pró-republicanas que visavam tão-só a sua/dele/Jesualdo eliminação de modo monóxido-carbonário. Achava-se sem gosto – mas nunca sem olfacto, atenção. Queria respirar o ar do Rei, abrir os brônquios à passagem da Rainha. Obscureceu-se-lhe a tez. Cansava-se tossindo & tossia de tão cansado. Finalmente, enfartou-se-lhe o miocárdio, deixou de lhe pupilar a EDP-neurovascularcerebral-&-coiso-&-tal. Morreu como um justo: que igual é, o morrer, ao do injusto.
    Cabaz à sua calma.

559

Vi o Manuel Fernando conversando
com o Manuel Luiz, cedo finado.
O Paulo, aos 27, lá foi andando
– e o Riquexó também não foi muit’atrasado.

    Tenho perdido (& tenho-me perdido de) amigos de mais. Alguns deles chegaram-me mesmo a Amigos – a maiúscula sempre iça o sentido a outro patamar. You know ce que je veux decír.

560

Vejo-te p’r’aí de beiças purpurinas.
Escurecem-se-te de sangue as guelras.
Menos arterial que venoso, vais às meninas,
ó venenoso urinador de relvas.

Fizeram-te estátua & tudo, mas nem caca
vales de verso falsamente pátrio.
Vou a tua casa cagar no átrio:
e já nem mulher tens, que era uma vaca.

(Mam’ó!)

561

    Todos os invernos frequento cursos-de-verão que me ensinam a falar sozinho & a ouvir ninguém.
    Sim: a cada inverno, um curso-de-verão.
    E sou sempre desaprovado com a maior distinção.

562

    Nenhuma mulher nua, por mais lavada, me deu jamais a sentir o frémito que me dá a andorinha riscando o penúltimo azul do entardenoitecer português.
(Está dito, está dito.)

563

    Cafrarias, judiarias, mourarias, lusitanarias & demais americanoporcarias – bem nas tintas me estou para elas.
    O meu caminho não é étnico nem determinado pela cor do meu acne.
    Porque sou culto, honesto & bem-formado, não subscrevo religião nem fedor-superstição.
    A tua bondade é para mim seita.
    E o teu renome é legião.

564

    Lauronano:

    É por um bonito entardenoitecer que (finalmente) te escrevo. Faço-o – por ter falado hoje de ti a uma pessoa que te conhece & te muito estima. Com essa pessoa, ainda falas – comigo, não. Mal nenhum. Preciso é saúde-&-força-na-verga.
    Falávamos – essa pessoa & eu – de tempos facultativos, id est, universitários. Arrepiou-nos a ambos o vislumbre de quão verdes eram nossos anos então (mas o grande Paredes er’ainda vivo). Tossicámos autocondoìdamente (ponho acento-grave no advérbio – contrariando embora as emendas de 1973) – para não equivocá-lo de doidamente). Fomos felizes por segundos com essa tristurinha de agora-velhos. Foi bom. Eu disse o teu nome. A pessoa lutuou-se de imediato à associação da Fernanda. Assim foi.
    Essa pessoa gostamos muito de ti.

    Sempre, desde Sempre,

    P.I.

565

    Há espelho acima do urinol vertical no tasco que mais vezes frequento. A ele confiro, de cada vez, os versos que acabo de mijar, perdão, compor. Reitera-se-me também, a ele também, o enrugar galináceo da minha pescoceira. Os óculos, de já anacrónicas dioptrias, oferecem-me um olhar castanho-pardal que faz sorrir superior os de azul-joaquim-jorge-adriático. Nunca demoro muito tal namoro. Sacudo a pequena tripa exposta, derramo a cueca de irreprimível gota final, retorno à escrita. E, como no maravilhoso desenlace em discurso-directo-remate d’O Suave Milagre,

    – Aqui estou.

566

    O Delfim empregou-se em papelaria, casou-se com a Branca, descasou-se ao cabo de a ter emprenhado três vezes (duas abortivas), deixou-a sozinha com o filho, foi à boleia para a Escandinávia numa volskwagen-pão-de-forma de hippies alemães, morreu numa sarjeta ali perto do velódromo-de-inverno onde os nazis & os colaboracionistas de Vichy ajuntaram para a morte o magote hebraico. O filho não quis saber, mas eu sei que lhe doeu – mais lhe doeu, enfim, ser de Delfim órfão em vida.

567

Dassaev, Belanov, Mikhailichenko, Blokhin.
Tomaszewski, Lato, Prohaska, Krankl.
Maier, Müller, Beckenbauer, Breitner.
Stuy, Cruijff, Krol, Jongbloed.
Amancio, Juanito, Gallego, Gordillo.
Litmanen, Larssen, N’Kono, Milla.
CR7, Eusébio, Vítor Baptista, Jordão.

E Diego Armando Maradona.

568

    Metido em trabalhos & em camisa-de-onze-varas.
A justiça tarda a chegar, mas a chagar não.
Deixa o touro em paz, ele não te quer de caras.
Força-de-vontade – e de mijo a tesão.

569

    Amadureceu já o Sábado a ponto de agora-só-se-for-por-palhinha. Está-se bem de mangas-curtas, o refresco é brisado. A vinte metros de onde escrevo, achei no chão uma nota de 50-euros-50 no dia 26 de Julho de 2017, dia para mim duplamente feliz, por razões bem cá só minhas.
    Comprei este lápis nos chineses: mas a afiadeira, na Papelaria Marciano, lusa.
    Preparo-me para o retorno ao seguro dormitório. Para demais coisas me preparo – mas não de mais. Há autorias que ainda não li, outras que não reli ainda. Livros que ainda não escrevivi. Gente que ainda não conheci – a par de alguma que já não reconheço.
    (O Blecas, coitado, veio pedir-me um copo. Paguei-lho. Já me fizeram o mesmo – com a diferença, subtil mas grossa, de eu jamais ter pedido. Muito menos a Vós, que me leis, com o canto da beiça escarninh’encarniçado. Este Vós não é o do Leitor-Meu-de-Sempre: é o Vós de quem, cona valendo, piça muito menos.)
    Tenho mais lápis & mais afiadeiras – mas uma vida só, pelo que é nela que digo o que & quanto (& a quem) tiver a dizer.
    (Mam’ó!)

570

Foi este, hoje, um bom Sábado. Graças a um Amigo
(cá está a tal maiúscula – cf. 559), comprei
determinado artigo medicamentoso, a cujo postigo
espero mi’respi’rar outros anos. Foi sim bom o dia. Eu cá sei.


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Canzoada Assaltante