15/09/2020

VinteVinte - conclusão de 51 (II a V)


    II 

    Conheço cifras que morrem comigo. 
    A mundo algum farão falta. 
    Ao piano, no hotel, por castigo, 
    Manuel António da Silva Malta 
    espera há horas a fugaz amante 
    que lhe jurou etern’amor no restaurante. 

    III 

    Agora já não se fala nisso, pouco importa. É certo que Luciana quis fugir do marido, o bom, o manso, o remediado Silvério das Peças. O pai dela ajudou o genro a convencê-la a voltar para casa. Já na plataforma ferroviária, Luciana, bilhete na mão para Lisboa, estava prontinha. Filho & filha? Resolver-se-ia tudo depois. Vai esperando sentado, Manuel António, aproveita e toca aí o As Time Goes By

    IV 

    Aqui há uns anitos, conversei algo demoradamente com um rapaz de nome curioso & precisamente onze meses mais velho do que eu: Eleutério Maria Inverno Morais. Versámos assuntos sem futuro, por mormente literários. 
    Recordo-o agora por nada ter mais de especial que fazer. Na cozinha, a sopa vai fervendo sem hora marcada. O Gato adormeceu na manta preta. Boy George canta Mr. Strange na máquina-audiovisual. 
    Não sei se Eleutério é ainda vivo. Não temos amigos nem conhecido comuns. Conhecemo-nos num casamento há muito desfeito, como é de lei: o de Sílvia Maria Ventura Reis com Marcelino José Alemão Conde, em 1987, 15 de Agosto, um sábado. Fui a essa boda por ser amigo do pai do noivo, que Eleutério não conhecia. Ele foi por ter namorado no liceu com a noiva, que eu não sabia quem era, só me lembro dela de branco com o ramalhete mentiroso de laranjeira. 
    Sopa fervida, gato despertado. Adeus, Eleutério. 

    V 

    Meu País de meus Pais, 
    és bonito & letal como o mar, 
    conheço-te de cor a côr, 
    daqui te não saio – nem tu me sais. 

    Uns poucos mortos te me ligam parturientemente, 
    nomeio-os no deserto em que ter nascido se torna, 
    sinto pena de ti como se quase fôras gente 
    que eu houvera conhecido na taberna. 

    A mensagem é implícita, ando a lê-la. 
    Olho o céu congelado, pirilampado de luzes. 
    Aquele luzicu faz ali de estrela: 
    a tristeza é legal, mas olha, não del’abuses. 

    Fui já de casa-completa, ninguém faltava: 
    nem em corpo, muito menos à palavra-dada. 
    A tal sucedeu o que sucede à chuva pelas sarjetas: 
    números todos resto-zero, borracha sobre as lápis-letras. 

    Meu País de meus Pais 
    Etc.

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Canzoada Assaltante