17/09/2020

VinteVinte - 53 (primeiros dois romanos)


 

53.

 

ALGUMA ARTE EPISTOLAR

EM MONTRA PRÁTICA

 

Coimbra, quinta-feira, 14 de Maio de 2020

 

I

 

Fábricas em ruínas, detritos cinéreos, derruídos impérios.

Céus baixos, opressivos, apoucando a nossa vida.

Não é fácil conviver com tanta atenção.

Poemas, fraudes, televisores, números, desarborizações.

Infanticídios, tratados, nudismos, clãs, rumores.

Doença da não-singeleza, moléstia da não-beleza.

Difícil: evadir-se a atenção da malevolente fealdade.

Ubíquo, o porco é vitorioso, mormente o humano.

 

Não abro linhas-de-crédito a roedores-carreiristas.

Nem a velhice acho que mereçam.

Rejeito imagens que de apodrecida enxúndia manam.

Refiro-me a merda – sem metáfora maior.

Falsos heroísmos, esmolas públicas & publicitadas.

Não espero o Verão nem dele o antónimo.

Não subi as escadas pétreas, disse-lhes Não.

Dir-lhes-ei Não até que feneça quem diga ou escute.

 

Antigamente, numa saleta com lareira, houve música.

Livros desciam das estantes altas: confirmavam o lume.

O eu-corpo há muito desertou esse cárcere.

Era cárcere, não havia lume nada, nem leitura, nem casa.

Estive depois nas noites cartografadas a dedo.

Crer não é poder. Poder é saber não-querer.

Músicos filarmonizavam ao grande calor-d’Agosto.

Opas escarlates escoltavam a padralhada gorda.

 

Pus-me a saber mesclar essências.

Frequentei mais funerais do que baptizados.

Derredor a bola-orbe, a congelada co(s)micidade galáctica.

Feiras, ciganadas, churrascadas, devotos-marianos.

Folclorismo militante, curricular, néscio, democrático.

No estaleiro-hipocrático? Uma alegria generalizada:

areflexias, apneias, lavagens gástricas, flumazenilo-SOS,

velhotes em perpétua sonolência, esse calado delírio.

 

(Escrevo-te esta carta sem dinheiro para o sêlo.)

 

II

 

Já se não fala só da pandemia viral. Já se atenta noutras insignificâncias. Tufão nas Filipinas. Demolição de uma das centrais nucleares plantadas na Alemanha. Não querem, parece, repetir Chernobyl e/ou Fukushima. Um pai muito envelhecido recebe a visita da filha. Fedor fétido: financiamento público da banca privada. Crianças amestradas pelo consumismo. Estentóreas fiscalizações. Ubiquidade-paradivina do senhor Presidente da República. Bonacheirismo-porreiraço do senhor Primeiro-Ministro. Grave encanecimento do senhor Ministro das Finanças, talvez por sobreposição da presidência do EuroGrupo, entidade que desconheço com valentia. Tudo brincadeira, tudo por brincadeira – diz a Morte. E diz bem, como sempre.


Sem comentários:

Canzoada Assaltante