17/04/2021

PARNADA IDEMUNO - mais quatro de ontem, 6.ª-F.ª, 16 de Abril de 2021: 260 a 263

© DA.

260

    Escrevo esta carta, contigo na mente (I), que (te) não remeto nem remeterei.

    Querida:

    Disponho tão-só do meu corpo para levar a cabo a minha vida. Não creio em alma mas em mente. Não embarco em espírito mas em presença. Tenho toda a razão do mundo: a minha razão do meu mundo. Toda a gente tem toda a razão do mundo: razão dela, mundo dela.
    Hei cometido (e mais cometerei) erros-palmatórios. Quem não idem? Padeço de um amor que me não fala. Padeço de outro que me fala de mais. É comigo. Não é contigo. Nunca será contigo. Mas já foi contigo – ou contíguo a ti.
    Continuo a intolerar o luto. Continua, o luto, a estilhaçar-me a infância – e olha que deveras fui feliz na infância, eu nem era para vir-me de literaturas. Tenho Amados Mortos, que em Vivos amei a sério.
    Já cri – e não me dei bem com tal. Em ti, por exemplo. (Como tu em mim, bem o sei.)
    Eu nunca teria vindo para a Poesia se ela não fosse, por assim dizer, do caraças. Sabes bem que a má (a poesia, a minúscula) me chateia. Assim idem sabes que a Boa me vivifica, me atira aos ares como o meu Pai me fazia enquanto a minha Mãe fingia ralhar-lhe Olha-o-Menino.
    Não devassei o Oceano Atlântico para ir ver & saber do Rui. Morreu-me lá longe, mais não padece. Levei porém recados ao Jorge, meus & do pai, talvez algum cento de escudos também. A Mãe, amãe-a. O Pai, amei-o. Tenho ora um gatito claro, penugem leve-leite-creme.
    Sei completamente o que digo & o que (não) perco.
    Recebo todos os dias, mesmo sem marcação.

Parnada Idemuno

261

    JMFJ, op. cit.:

    “Temos um corpo e não somos corpo
      uma alma uma liberdade e não somos alma
    ou liberdade.”

262

    Vez nenhuma há em que eu, passando ali à Rodoviária, na Fernão de Magalhães (Coimbra, senhores), não ouça (até fisicaverbalmente) a Senhora-minha-Mãe soprando-me
   
     – Lá está a República a vender arrufadas.

    A República era a mulher de avental & blusa escarlate-virente. Tinha banca de arrufadas na dita gare. Tal como a minha MaterTi’Avó, irmã do Pai da minha Mãe, tinha banca de arrufadas na gare/Estação-Velha. Mas esta, que era Maria dos Santos & cuja voz se ouve em off no filme Capas Negras protagonizado por Amália Rodrigues & Alberto Ribeiro, morreu sem outra descendência que a destes versos, em (p)rosa embora.

    Vez nenhuma – disse.
    Voz alguma – digo.

263

    Sei o mal que causa o amar um corpo
    pelo corpo,
    não a voz imaginada
    que nos à nascença historia o
    amá-lo,
    que sinónimo é, logo pois nascido, de
    perdê-lo.

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