01/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 191 & 192 (quarto & quinto quarteirões estróficos de 3.ª-f.ª, 30.3.2021)

© DA.

191

Este arrastado domingo espúrio chamado Confinamento, sabeis?,
há um ano encarcerando as aves que julgávamos ser, um ano
atirado ao monturo das horas desasadas, um ano soturno
que nos ensinou a contar mortos sem ser pelos dedos, tabuada
triste que a tantas famílias fez dádiva de roubo em cinza,
não devo por mim dizer que penei mais do que tantos outros, não
seria verdade, na verdade há muito me incrusto na lapa
dos fala-sós, escolha minha que ora não repilo, isso não, nunca
é demasiado cedo para persistir na via-sacra-própria, sim,
nem fátuo motivo lobrigo que a alternativa volta me cirandasse.
Os noticiários contam duas-mortes-duas a lamentar
nas mais recentes 24-horas-24, pergunto-me quem seriam,
como se chamavam, que idade ainda perfizeram, se amaram,
se viram o mar & as amendoeiras-em-flor, se procriaram,
se votaram à esquerda ou à direita, se preferiam Camilo a Eça ou
vice-versa, se idem Verdi a Wagner, Sporting a Benfica, Académica a União,
Sartre a Camus, Hopper a Magritte, Dali a Picasso, esquimó a pinguim.
Amanhã, quarta-feira, um dente mais da roda há-de trincar a luz,
sai à rua quem tem que fazer, outros hão-de furar a clausura,
não alimento espera, esperança ou sequer expectativa,
tenho por norma ir andando mesmo sentado ou dormindo,
nascer não volta a ser, morrer tem tempo, é d’aguentar-os-cavalos,
eu?, umas vezes Verdi mas outras Wagner – e Bach, sempre.
Neste sentido sigamos todavia: Antes confinados do que finados.
Não é, para já, a pior condição, não nos faltando viço & ensejo.

192

A poente da aldeia houve o forno da cal, muito lá se laborou.
Das ruínas do mosteiro, até pedra escrita foi saqueada.
A nova geração fez aqui a primária, pirou-se logo que pôde.
Água vertical não cai já da fraga velha, só quando chove.
Nisto estamos, a desertificação alastra, o litoral atrai muito.
Eu não juntei ainda fortuna a suficiente para ali me finar, perdão, fixar.
Agradar-me-ia a casita que foi dos Patrícios, ’inda meus primos.
Tem poço, leira com laranjeira, figueira & chão de horta.
Dizeis (e bem): – Mas tu não sabes amanhar terra que se coma.
É verdade. Não sei mas aprendo. Também não sabia tocar clarinete.
Não sabia mas aprendi a ponto de tocar na filarmónica da Paula.
Foi há um quarto-de-século, lá vai, até me comove lembrar tal.
Haveria de espalhar andorinhas de barro no pórtico caiado.
As andorinhas voariam, por assim dizer, em torno do nicho da Rainha Santa.
Para tal, convém que este livro se venda muito & bem.
Caso contrário, hei muito que confinar-me em este quarto mesmo.
Faz-me bem pensar por escrito no forno da cal, no arvoredo denso,
na fonte dos passarinhos à face da ferrovia abandonada,
nas alamedas criadoras de uma sombra densa como a água,
no luar de Janeiro fantasmando os rosais espontâneos,
na ermida do monte que confere à oração o cariz geodésico de Deus,
na genealogia paterna que ali me radica o sangue & o apelido,
nos indícios fósseis que inscrevem a imperecível eternidade do esquecimento.
Oro à Santa Rainha Isabel que tal graça me conceda. Caso não, hei que pensar
noutro livro, talvez uma charlatanice do tipo auto-ajuda-zen-&-coiso.

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Canzoada Assaltante