26/10/2020

VinteVinte - 91 (I a IV)

 

91.

 

JUNHO A JULHO

 

Coimbra, terça-feira, 30 de Junho de 2020 (I)

Coimbra, quarta-feira, 1 de Julho de 2020 (II-XVI)

 

 

I

 

Outros melodramas afinal simples prosperam na caloraça vigente. Junho morre à meia-noite, mas o sequente primo-dia juliano já não é vivo aniversário natalício da senhora minha materAvó, Cândida Leite, há muito morta, pacificada, esquecida. Estes pelas ruas a não podem recuperar, que a tiveram jamais.

Estetas & patetas com-vivem. Filigrana áurea & lixo rasteiro. Toscanini & Karajan. Sofisticação & lenda. Lêndea & sabão. Não importa nem conta. Cada um sabe de si. Nada o abriga. Nada o obriga. É tudo idei’adentro, cada idei’ a cada bicho.

 

II

 

Morrendo Junho & nascendo Julho, li madrugada afora as cartas de Vincent a seu irmão Theo. São papéis ominosos. Fizeram com que só me deitasse ao sono perto já das cinco. Lapijei sublinhados.

Hoje, ninguém escreve cartas, só correio-electrónico. Perde-se um infinito filão de ouro íntimo, assim. A Sévigné & Van Gogh, todavia, não são perdidos.

 

III

 

Pintores anónimos como pastores, reses as telas.

Em tempo resgatável só por arte, adormecidos.

Nuvens em cinza acartonam paisagens ex-amarelas.

Flores enegrecidas estiolam aos dias compridos.

 

E cumpridos.

 

IV

 

Homens & mulheres abonados de anos já de estante

falam comigo sobre António Patrício, primeiro,

& de Manuel Valadares, logo depois, enquanto eu

digiro ainda a madrugada ledora (Vicente a Teodoro).

Fora deste núcleo de comunicação, o primo-dia juliano

joga ao abafa-luz em espécie de auto-estufa.

Madame Curie é evocada em radium, então.

O tempo & o Tempo a raio-X, como ainda sempre.

 

Na cozinha, onde até tão tarde-cedo li V. a T.,

ferve agora a trinca-de-arroz para a passarada.

O Menino-Gato dorme a sesta sobre macia manta.

Domesticidade vibrátil aqui-ali, pensando além-quando.

Museologia & prospecção: rostos, chávenas, dedadas, giz.

Ultravermelhoinfravioleta etc.

Infinda possibilidade dédala, por assim dizer.

E uma que era Lídia entre salgueiros berma-fluviais.

 

Ecoam ainda as botinas sacristas morcego-eunuco,

vulgo Salazar, na grande oportunidade esbanjada pós-1945.

A República arde a cinza fria, monturo ignorante & ignorado.

Jornais escritos ainda em Português doutrinam afinal poucos.

Já a trinca-de-arroz arrefece para ser dada.

Lapsos de sol encharcam os cortinados.

O Gato sonha, emite gemidos parahumanos.

A liberdad’interior é insofismável, é-o decerto.

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Canzoada Assaltante