11/10/2020

VinteVinte - 75 (tudo)


João




75.

 

NÃO ASSIM TÃO POUCO

 

Coimbra, segunda-feira, 8 de Junho de 2020 (I)

Coimbra, terça, 9 de Junho de 2020 (II-III)

 

I

 

J. Trent Bentley, de Vauxhall, deixou de aparecer. Foi deixando aos poucos, até que de vez o fez. Sem ele, as nossas noites volveram-se antigas à nascença. A tertúlia tornou-se inviável. Tomámos a última bebida, saímos à vez. Ninguém se despediu.

O futuro não trouxe pena nem alívio. Foi o que foi enquanto foi. Deixou de ser. É tudo. Claro que precisámos de envelhecer para que estes parágrafos vissem a & viessem à luz. Não, nem mágoa nem remédio.

Trent era o nosso maior. Sem ele, a nossa evidente menoridade fez-se gritante. Preferiu cada um a solidão mais decente possível. Assim foi. Não nos mentimos. Também não foi desistir. Foi deixar. Deixar-nos de. Deixarmo-nos.

Então, deixámo-nos de nós, um eu tomou conta de cada um. Desconheço que ele será o eu de Trent Bentley, que veio de Vauxhall & seguiu para onde não sei, não soubemos.

Heinrich M. Thaler era outra loiça. Manteve-se com aqueles a que, com acertada propriedade, chamava seus. O cenáculo funcionou sempre, entendendo por sempre a data do óbito do derradeiro comensal, que foi August P. Scheiber. Veio a lume o Magno Dicionário Europeu. Viu a luz o Relatório da Próxima Guerra Continental. Foram traduzidos autores da Arménia à África Branca, de Xangai a Odessa, de Trondheim a Tavira. Thaler não deixou nem herdeiros nem seguidores. Scheiber também não.

Nós lemo-los a todos – mas pouquíssimo escrevemos de nosso. E esse pouquíssimo, julgo-o cruamente hoje, antes houvera sido nenhum.

 

Diversas afinidades para com o mundo imediato foram as sentidas, vividas & praticadas por a plêiade de senhoras que os papéis encadernados mantêm sob a designação de Ateneu Insular G.O.M. – sigla de God Only Matters. Devotas eram, todavia, a um credo não-institucional. Isto é: não ligado a qualquer prática eclesial doutrinada em vigor. O deus destas damas era literário, personagem urdida colectivamente em livro dinâmico. Seis senhoras, sete dias da semana. Faziam assim: a senhora Segunda-Feira escrevia durante a manhã pós-dominical; à tarde, passava a limpo; à noitinha, um criado ia levar a produção nova à senhora Terça-Feira – e assim consecutivamente até à noite do Sábado. A tarde de cada Domingo era dada à leitura conjunta dos seis capítulos. Rasurava-se, emendava-se, aprimorava-se, combatia-se a eventual incongruência que pudesse desequilibrar a estrutura. Não havia então fotocopiadoras nem informáticas. Tudo era uma vez só. Todos os livros manuscritos delas esperam edição. O melhor de todos, na minha opinião, é o de 1917 – mas Bentley sempre quis mais ao de 1924.

Gostávamos todos muito de vê-lo rir muito, havendo achado graça a algo ou alguém. Ameaçava desmanchar-se-lhe a grande compleição: em acordeão de riso, o largo ventre refegava de ondas de banha, era um pândego contagioso. Depois, também ele deixou de aparecer – se não mesmo de ser –, dorme hoje não sabemos onde: ou, se, com quem.

 

II

 

A bom dia, boa porfia. Acordei proverbial, ao cabo da breve noite – pois não eram dadas as cinco quando me levantei. Aproveito o embalo de Madame de Sévigné:

 

“Car que faire en un lit, à moins que l’on ne dorme?”  (*)

 

(*) Em carta à filha, Madame de Grignan, de quinta-feira, 2 de Novembro de 1673. Segundo o Editor (Flammarion), a interrogação era paráfrase de La Fontaine, Livre II, Fable XIV: “Une lièvre en son gîte songeait. Car que faire en un gîte, à moins que l’on ne songe?”.

 

Sonhei com o João da Bininha, um Amigo mui referencial da minha vida. Nasceu a 22 de Junho de 1963, morreu (em Londres) a 23 de Agosto de 1998. Ele pedia-me que confirmasse, junto de pessoas com quem estava, a existência portuguesa de grupos de rock-progressivo nos anos 70-80/XX. Eu disse: “Tantra” – e ele soltou uma alegre interjeição triunfal. Despertei aí. O sono não foi angustiante: acordar dele é que um pouco, sim.

 

Já enviei hoje a minha mensagem de pão & arroz à passarada deste canto do mundo. É cedo ainda, faltam catorze para as seis. O gato Menino & eu povoamos a cozinha há cerca de uma hora. Tenho a Sévigné, ele tem a bolita de espuma amarelo-alaranjada. Já brincámos. Ele já repousa, cansadito & feliz: com que Bininha (não) sonhará ele, ele que nunca teve outros seres que não as pessoas desta Casa?

 

(E o dia já está ganho: às 5h51m, o melro veio ao pão, encontrou, pegou & levou.)

 

Ilha do Príncipe Eduardo, Canadá.

S. Duguay desaparece de vista social.

D. Beamish sabia tudo.

O paraíso só o é se não humano.

 

The Dalles, Oregon. Setembro, 1984.

Surto de salmonella, 751 intoxicados.

Foram os Rajneeshees, claro.

Seita tóxica, claro – como todas, claro.

 

James O. Isaac, 2-10-1956 / 4-11-1978.

Charles Mill Lake, Ohio.

Judy Bruce, 2-11-1978. Ó Larry, sacana de merda.

Dois mortos só mais de 20 anos depois vingados.

 

Arquivos são por vezes remexidos, despertando não os mortos, mas, deles, algo que quer viver ainda. Projectos que tiveram, agendas telefónicas cujos números não atendem se chamados, diários adolescentes cuja caligrafia trai a solidão que é a essência de cada existência, humana ou não. (Belynda Tiller, RIP, portanto.)

 

(Fonte: episódios de Medical Detectives / Forensic Files, S7/E7, S7/E8, S10/E5, S10/E6.)

 

III

 

Acabei saindo hoje ao mundo de fora. O mapa chama-lhe Coimbra – eu chamo-lhe Pátria Local.

Menos gente. Demorei-me pouco. Por uma nota de cinco, comprei cinco livros no antiquário. Tomei café numa esplanada deserta. Comprei tinta para a caneta preta (esta mesmo).

Não senti especial libertação. Na verdade, já confinar-me eu me confinava antes desta gregária comédia viral-global.

Vi algumas pessoas em situação de miséria. Mais do que pobreza, miséria. Vi & ouvi, numa fila de atendimento-à-vez-&-só-com-máscara, uma mulher antipática como a fome. Trovejava ela lugares-comuns sem miolo nem espelho. Ouviam-na velhos que esperavam a vez para levantar a pensão de reforma. Impertinente, desbocada, inútil mulher. Era daquelas que fatigam a democracia. Consegui alhear-me dela, todavia. Chegou a minha vez, fui atendido por uma funcionária de bom atavio cívico-profissional, desandei de assunto tratado para o próximo a tratar. Tão cedo, não saio sozinho às ruas.

Uma vez em casa, ingeri qualquer coisa sem história nem bibliografia. Fiz café, que tomei de pé olhando da marquise o ocidente. Saudades da chuva. Impôs-se-me a sesta, a que obedeci sem esforço nem contrariedade. Despertei para uma realidade quieta. Vagueei, não abri um livro. Não projectei. Existi apenas, o que não é assim tão pouco.   


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Canzoada Assaltante