07/10/2020

VinteVinte - 71 (só VIII & IX + uma citação nemesiana)

 

71.

 

EMBORA RECORDAR POR ESCRITO

NEM POR ISSO DESMEREÇA ESQUECIMENTO

 

Coimbra, segunda-feira, 1 de Junho de 2020

 

(...)


VIII

 

Recordo

 

Pardo & parado, o céu baixo como um insulto imerecido; a cam(p)a de Antónia rangendo no escuro do quarto ao lado, quando no meu já a humidade da claridade se imiscuíra como uma rata cega. Era a sufocação de um Maio que já então não voltaria a ser-nos mau.

Sim.

Sim, recordo

 

Tempos-anos em que anoitecia desde manhã, que tarde nascia. O dia, esse vinha sem diferença, essa que se pensa para melhor – como se, um dia, novidade fosse melhoria.

 

E de ter pensado que

 

Se nunca a compreendi, foi por não ter nascido para compreender mas para durar quanto tempo pudesse, nem Deus sabe para quê, não se compreende, Celeste, mas mais recordo que

 

Uma vez quis escrever destino e quando fui ler tinha posto um a entre o s & o t – e é que deixei ficar assim por me parecer que acertara, mesmo a trouxe-mouxe, na mouche.

 

IX

 

O vento-matino vem levado das laranjeiras, é doce respirá-lo quando ele toma o rosto à pessoa, da velha abadia o brônzeo repicar convoca das almas a transumância êxul.

Gente das mercadorias abastece desde as quatro o mercado-mor, homens fortes sob sacos robustos cambaleiam, mulheres correm de águas lixiviadas as lájeas cuja memória diz passos de gente que já passou.

Afora, muda na esquadra o turno de polícias. Às sete, já as casas-de-pasto não medem mãos, servindo grandes pães prenhes de toucinho, carne guisada, iscas, sardinha frita, presunto corado à sombra do fumo.

Janela em mansarda quase muito alta: toda a noite vingou nela o fanal do estudo. Alguém esteve adindo ao prazer da leitura o proveito da retenção, a fortuna da aprendizagem, a viagem ao imo da cabeça de outros que, antes, o mesmo fizeram por o inverno, perdão, o inverso.

Bonita matina a do Junho velho à nascença. Velho – porque não deste de VinteVinte hoje iniciado, outro sim, outrossim Junho mas de perdido ano.

Eu morava então no sopé de certo monte suburbano. Cheirava docemente a bolachas novas pela tardinha, perfume fabril emanado por centenas de formigas de bata verde. Já não.

A manhã cresce com a sapiência involuntária dos frutos. Sol & nublação ’inda convivem, surda guerra abafadiça. Quê? Não, não saí hoje de casa, afinal sempre não saí. Sim, hei outros planos. Assim venham outros dias.

 

(“Passo a vida a reduzir ao perto de que fujo o longe que me causa.”

V. Nemésio, Jornal do Observador, p. 402.)

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Canzoada Assaltante